Devemos saudar o lançamento em DVD de . Quanto a isso não resta dúvida. Mas, diante do que aconteceu há dois meses, é difícil falar do filme e dos extras, deixando de lado Eduardo Coutinho e a tragédia que o abateu. Ao mesmo tempo, o que haveria para dizer sobre ele que já não tenha sido dito milhares de vezes? E sobre sua morte, o que poderia ser dito?
Uma maneira de sair desse impasse é evocar palavras do próprio Coutinho, ditas no encontro promovido pela Flip, em julho do ano passado – um bom momento para ele e para todos que participaram.
Em três trechos, em particular, ao se referir a , aos extras incluídos no DVD e ao seu método de conversar, Coutinho deixa transparecer sua lógica desconcertante, que nunca deixou de surpreender.
No primeiro desses trechos, ele comenta a entrevista de João Mariano, o camponês que, em março de 1964, atuou em Cabra marcado para morrer, fazendo o papel de João Pedro Teixeira, personagem central do filme. João Mariano reluta em falar, apesar da insistência do Coutinho. E quando finalmente inicia seu relato, Coutinho interrompe a filmagem com um gesto marcial do braço esquerdo.
Quando a filmagem é retomada e Coutinho aparece sentado diante de João Mariano, há uma caixa de microfone esquecida na mesa durante a interrupção, o que leva Coutinho à beira de um ataque de nervos.
“Esse é um dos casos em que quase me dá um arrependimento em ter incluído no filme,” disse Coutinho na Flip. E continuou: “Por que isso gerou um desentendimento, uma dúvida sobre o por quê aconteceu, sobre a resposta dele, pelo fato de que eu fiz o grande erro, coisa que eu nunca faço, de interromper uma cena por que o som está ruim. Eu não pergunto se o som está ruim. Eu delego isso. Isso não é minha preocupação. Então, eu interromper com o braço, daquele jeito…Não sei por que eu fiz isso, e por que eu deixei na montagem.
[…] mas eu acho, hoje eu acho que eu tiraria [essa sequência], por que, na verdade, o silêncio dele parece provocado por que eu o interrompi. Pode ser que isso atrapalhou, mas, realmente, ele tava lá, falando, mas sem vontade de falar no assunto por que não queria ser confundido de novo com aqueles caras que fizeram o filme. E ele tinha toda razão, por que se ele foi expulso do céu por causa do filme, ele tem que… Para um crente, nada é pior do que perder o céu. Entendeu? Então, ele tinha razão, e tinha outro troço que era bom no fato dele aparecer, é que aquele que faz o herói não é obrigado a ser herói. Então, ele fazia o João Pedro, que era o herói, e ele não era o herói. […] Então, acho que gerou uma …quando volta a cena eu olho para um aparelho de som que tá aparecendo, a caixinha de microfone, e eu olho pra trás furioso com o Saldanha [técnico de som], com a equipe, mas no filme aparece tudo, aparece microfone, aparece tudo e é para aparecer tudo. Então, aquela cena…eu acho que perturba. Tem gente que acha que ao interrompê-lo eu provoquei aquilo.”
Esse trecho é uma ilustração perfeita do pensamento contraditório do Coutinho. Ele começa dizendo ter “um certo arrependimento da cena ter sido incluída”, para alinhar, em seguida, uma razão mais do que suficiente para justificar a inclusão: o anti-heroismo do ator que faz o papel do herói.
E o que Coutinho deixa de mencionar é o extraordinário valor da cena como documento do estágio inicial das conversas que viriam a se tornar a marca da sua obra da maturidade.
Para os extras do DVD de , Coutinho foi ao encontro dos personagens mais de 30 anos depois da filmagem. Sobre essa gravação, feita em janeiro de 2013, Coutinho disse o seguinte na Flip:
“Eu praticamente nunca revejo os filmes que eu faço.[…] Eu não revejo por uma razão muito cristã: consumatus est, que é o que Jesus teria dito na cruz. Tá consumado, acabou. Então, não tem um troço: eu faria assim. Acabou, tá lá. Entendeu? É um fato definitivo que já passou. […] eu sei que é inútil, por que não vai se repetir, então não adianta. Se não foi extraordinário, eu não vou voltar, por que não vai ter de novo. […] Deu ou não deu. Foi ou não foi. O que interessa é o momento da filmagem.”
“[…] os personagens são seres quase de ficção a partir de pessoas reais que falam durante uma hora, você monta, fica sete, dez, cinco minutos e que são células ficcionais. Tanto que na vida real eu não volto a conviver diariamente por que eu não reconheço mais. Bem, eu reconheço, mas os personagens são tão melhores que as pessoas que não vale a pena. A rotina é insuportável, até para os heróis.
Então, voltei a filmar alguns personagens antigos […] por obrigação de fazer um extra para Cabra marcado para morrer […] Eu tinha que fazer o extra […] e fui procurar os personagens do Cabra que estão vivos: sete da família Teixeira e dois de Galileia.[…] E essa filmagem foi, realmente […].
Você tem histórias maravilhosas e são mal contadas. Cinema é isso: se conta mal, não adianta a história ser boa. Se você não tem nada para contar, mas conta bem esse nada, você é bom, você é maravilhoso. Tem caras que viajam o mundo todo, são assaltados no Egito, viram Deus na Índia e contam pra você, você fala: ‘Que saco!’ Tem caras que foram ao Sumaré, em São Paulo, ou foram à favela de… mas, sabe, viveram uma vida de… o carteiro, carteiro trinta anos e ele é maravilhoso falando da vida que é igual todos os dias. Então, saber contar é essencial e esses caras, desses filmes, eles são contadores de talentos variados, […]
O fato é o seguinte: desses filhos…O que interessa para o DVD que vai ser lançado é que esses filhos falam do passado, do presente, e como passaram esses anos todos […] E, um pouco, o que você pega do filme é que você vê pela Elizabeth e pelos filhos o preço que eles pagaram pela morte do pai e pelo golpe. […] E isso se chama o preço da militância e é de lascar. É de lascar, enfim, um irmão matou o outro, os dois morreram com menos de cinquenta anos. A filha mais moça tem mágoas profundas da mãe, enfim…
E, realmente, têm histórias, tem inclusive uma história que é contada por um cara de Galileia que é provavelmente mentira, mas que está no filme por que ele conta tão bem que é verdade que ele foi a Cuba treinar guerrilha. Os amigos dizem que não é verdade, mas para ele é verdade por que ele fala de Las Palmas, as escalas todas ele sabe. Ou então ele treinou vinte anos pra dizer como ele foi a Cuba, mas ele… ele foi a Cuba. Só que talvez ele foi a Cuba sonhando, mas é perfeito o sonho.”
Finalmente, o trecho em que Coutinho revela sua utopia, cuja definição encontrou no final de um livro de 700 páginas que deve ter lido em 1999 – A miséria do mundo, coordenado por Pierre Bourdieu.
Em um texto chamado “Compreender”, no final do livro, Bourdieu fala de técnicas de pesquisa e diz que
“a entrevista pode ser considerada como uma forma de exercício espiritual, visando obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida. A disposição acolhedora que inclina a fazer seus os problemas do pesquisado, sendo a aptidão a aceitá-lo e a compreendê-lo tal como ele é, na sua necessidade singular é uma espécie de amor intelectual: um olhar que consente com a necessidade, à maneira do ‘amor intelectual de Deus’, isto é, da ordem natural, que Spinoza tinha como a forma suprema do conhecimento."
“[…] achei isso extraordinário, entendeu?”, disse o Coutinho. “Essa coisa de você assentir com o mundo, concordar com o mundo. E não é dizer que, ah tão me torturando, sou a favor, consinto. É com o natural, os fatos naturais, e isso aí me parece extraordinário.[…] [Essa] é minha utopia, eu não tenho outras. Se eu tiver essa eu já tou ótimo. Se eu tiver uma, ou duas [obsessões], tá bom… Não precisa ter três.”
Levando em conta essa afirmação, talvez possamos considerar que a utopia do Coutinho foi “aceitar os fatos naturais” para poder “perceber e compreender”, nas palavras de Bourdieu, “toda uma parte de sofrimentos característicos de uma ordem social que tem, sem dúvida, feito recuar a grande miséria[…] mas que tem também multiplicado os espaços sociais que têm oferecido as condições favoráveis a um desenvolvimento sem precedentes de todas as formas de pequena miséria.”
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Coutinho dispensa elogios póstumos. Ele teve a rara fortuna de receber em vida a merecida consagração.
Seus filmes e personagens ficarão conosco. Mas ele mesmo sempre nos fará falta. Desde 2 de fevereiro, sentimos sua dura ausência e, passados dois meses, a dor persiste.
Nos últimos tempos, a fragilidade física de Coutinho se tornara preocupante e pequenos acidentes físicos viraram rotina. Embora fosse previsível que algo grave pudesse acontecer, o que ocorreu ultrapassou de longe nossa pobre imaginação.
É possível que a tragédia pudesse ter sido evitada. Mas para isso teria sido preciso recorrer a medidas extremas que o próprio Coutinho nunca admitiu. De certa forma, ele foi vítima da sua própria inércia.
Carregando a culpa própria dos sobreviventes, não cansamos de nos perguntar se poderíamos ter impedido o que aconteceu. Faltou-nos a determinação capaz de romper a barreira das conveniências, e de vencer graus variados de comodismo. O respeito à privacidade acabou contribuindo para o desfecho imprevisto.
Ficamos órfãos. Perdemos o amigo e colega que inspirou mais de uma geração. Coutinho aperfeiçoara a arte de nos desconcertar, como demonstra a pergunta que fez quando seu editor telefonou, naquela que seria sua última segunda-feira, para dizer que estava esgotada a primeira edição de três mil exemplares do livro de setecentas páginas dedicado a ele. Coutinho perguntou apenas: “Isso é bom ou é ruim?”
Ao longo das últimas décadas, Eduardo Coutinho desenvolveu a capacidade de recusar evidências. A pergunta feita ao seu editor indica a lógica de inspiração groucho marxiana que ele aperfeiçoou e exercitava como ninguém.
Coutinho foi um cineasta único que procurou acolher, aceitar e compreender o outro tal como ele é.
Se nos fosse dado o direito de guardar na memória uma única lembrança do Coutinho eu escolheria o do encontro em Paraty, durante a Flip, no ano passado. Ele parecia estar bem e, na medida dele, feliz.