No alto da casa inacabada de tijolos, ele apareceu gritando por socorro. Foi o vizinho, o jardineiro Ivanei da Silva, que ouviu os gritos. Subiu as escadas correndo e se deparou com um menino de 11 anos, nu, preso dentro de um barril, com os pés e mãos acorrentados. “Só queria uma coisa para comer”, pediu a criança no vídeo gravado pelo jardineiro. Castigado pelo pai por comer sem pedir permissão, o garoto passou semanas de pé no barril, se alimentando de cascas de frutas e fubá cru. O pai foi preso por tortura, e a madrasta, uma cuidadora de cães abandonados, foi detida por omissão, assim como sua filha adulta. O “menino do barril”, como ficou conhecido desde que o caso foi descoberto, em 30 de janeiro, deixou o sobrado na periferia de Campinas (SP) e foi internado com desnutrição.
Dias depois, na casa de classe alta do vereador carioca Dr. Jairinho, na Barra da Tijuca, Henry Borel, de 4 anos, relatava em chamada de vídeo para a mãe, Monique Medeiros, que o “tio”, seu padrasto, tinha batido nele. Quem contou à polícia sobre a videochamada foi uma profissional que atendia Monique no salão enquanto ela falava com o filho. Segundo o relato, o menino pediu que a mãe fosse para casa e perguntou a ela se ele, Henry, atrapalhava a vida dela, conforme o vereador havia dito. A babá de Henry fez imagens dele mancando pela casa. Monique chegou a levá-lo ao hospital, mas alegou que o menino havia caído da cama. No dia 8 de março, ele foi levado de novo, mas já estava morto. Jairinho e Monique estão presos. Os dois alegaram que a criança caiu e se machucou. Os laudos mostraram mais de vinte lesões por espancamento.
Um levantamento feito especialmente para a piauí pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que em 2019, ano dos dados mais recentes do Ministério da Saúde, noventa crianças de até 9 anos de idade foram levadas diariamente aos serviços de saúde públicos e privados, vítimas de violência física, sexual e psicológica. São 32.647 casos notificados por ano, 90 por dia, quase quatro por hora – um a cada 15 minutos. A subnotificação é grande, oculta por falsas alegações que tentam justificar os machucados. São 11.322 casos de violência física, 14.231 de violência sexual e 7.094 de violência psicológica, de acordo com os dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), do Ministério da Saúde. Além disso, foram registradas 26.494 situações de abandono e negligência, a maior parte contra crianças até 2 anos de idade.
Os dados do Sinan não permitem saber quantas, das crianças agredidas, morreram. Mas os registros do DataSUS mostram que, em dez anos, 2 mil crianças até a idade de Henry (4 anos) morreram após sofrerem agressões. Desse total, 739 foram mortas dentro de casa. É mais um traço, segundo os especialistas, da proximidade do agressor com a vítima. Nos dados do Sinan, são poucos os registros que mostram onde ocorreu a violência, mas, em 77,25% das situações, foi na residência da criança.
[infogram id=”local-onde-ocorre-a-violencia-1ho16vojvg37x4n?live “]
Do menino torturado no barril à rotina de violência vivida por Henry Borel, duas histórias trágicas, em realidades tão distintas, mostram o cenário de desproteção das crianças do Brasil – a despeito de o país ter legislação poderosa de garantia de direitos infantis, como o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a Lei Bernardo, que impede castigos físicos. De acordo com especialistas ouvidos pela piauí, a grande diferença entre a morte de Henry e a sobrevivência do menino do barril, hoje em um abrigo, está na denúncia. O jardineiro de Campinas chamou a polícia – a mãe e a babá de Henry não. Embora os números sejam alarmantes, são poucas as histórias que resultam em punição dos agressores e são muitas as desculpas dadas por eles para justificar os ferimentos, como no caso de Henry.
No levantamento feito pela pesquisadora Sofia Reinach, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para a piauí, em 42,21% dos casos, os relatos de violência citam a mãe da criança. O pai representa 27,84% das notificações, os padrastos, 4,48%, e as madrastas, 0,63%. Outros 22,55% dos casos envolvem pessoas conhecidas da vítima. Reinach explica que, muitas vezes, a violência é perpetrada por mais de uma pessoa.
“Temos uma boa legislação, mas temos uma rede protetiva frágil. Quando a situação de violência é identificada pelo profissional de saúde, muitas vezes a ação para proteger a criança é muito frágil. E, dentro desse cenário, existe uma aceitação da conduta violenta contra a criança. Afinal, qual o limite entre uma palmada e uma punição severa?”, questiona Reinach.
A pesquisadora explica que, quando a família é acompanhada devidamente, há uma redução da violência contra o menor e do envolvimento dessa criança em situações de violência no futuro. Mas não se trata apenas de denunciar ao Conselho Tutelar, como já havia sido feito no caso do menino do barril, mas que não impediu a tortura que foi flagrada pelo vizinho. O acompanhamento tem de ser rigoroso e integrado com o sistema de saúde.
O antropólogo Benedito Rodrigues Dos Santos, consultor do Unicef para a Proteção à Criança e ao Adolescente, afirma que, à medida em que a criança cresce, recrudescem os instrumentos de punição usados contra ela. São usados instrumentos contundentes, esganadura, sufocamento, “um espancamento que vai se avolumando, com chutes e socos, e ainda há o risco de essa criança bater a cabeça”. Para ele, identificar os sinais de agressão “depende da percepção do agente de saúde, que precisa ter um olhar treinado para isso”.
“Os dados estatísticos, assim como as denúncias no Disque 100, mostram que a violência física é mais cometida pela mãe, por ser a pessoa em maior contato com a criança. Pais e padrastos vêm a seguir, em menor escala, mas são mais violentos.”
“A violência física não vem sozinha, vem acompanhada de uma violência psicológica”, afirma Santos. Isso faz lembrar como Henry era oprimido pelo padrasto, segundo seu próprio relato à mãe. O motivo de seu choro na ligação por vídeo feita para Monique era pensar, como havia afirmado Jairinho, que ele atrapalhava a vida da mulher.
“Sem mediação de conflito, sem condições de políticas públicas, o episódio de violência vai dando uma escalada de métodos. Essas dinâmicas têm uma tendência de durar muito tempo e ir recrudescendo.”
Se de um lado as pessoas não podem silenciar diante da violência contra a criança, de outro o Estado tem de estar preparado para acolher a vítima, tratar a família e investigar a denúncia. E é nesse ponto que o país falha miseravelmente.
“O Brasil é visto internacionalmente como um dos países mais perigosos para crianças, embora tenha uma das legislações mais avançadas do mundo. Existem várias falhas [no sistema protetivo]. Não temos delegacias especializadas da criança e do adolescente vinculadas a cada seccional de polícia. São poucos os estados que têm esse tipo de delegacia. E os Conselhos Tutelares são falhos, desestruturados. A maioria paga um salário mínimo para o conselheiro, muitos têm dificuldade até de acesso à internet. Há sobrecarga de trabalho, falta de estrutura e muita gente usando os conselhos como extensão de mandato político, de igreja ou partido”, relata o advogado Ariel de Castro Alves, que integrou o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e colaborou com a criação da lei que proíbe castigos corporais, a Lei Bernardo, em 2014.
Alves e os especialistas consultados pela reportagem destacam que dificilmente o caso de violência que resulta em morte é uma situação isolada. A violência cresce em escala e silêncio. As delegacias especiais da criança e do adolescente, com equipes multidisciplinares, são apontadas como um dos principais instrumentos para prevenir a violência doméstica. “E há outro problema: dos casos que chegam ao Disque 100, não existe certeza nenhuma de que sejam devidamente apurados. Em 85% dos casos de denúncia não se sabe se alguma providência foi tomada. E é bem possível que nenhuma tenha sido tomada. No caso do menino do barril, se não fossem os vizinhos, ele estaria morto”, afirma Castro.