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Cães, gatos e coronavírus

Estudo pesquisou se cachorros e felinos domésticos contraem o Sars-CoV-2, se transmitem para outros cães e gatos, e se saram sozinhos. Só faltou um detalhe

| 16 out 2020_16h30
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No 55º episódio do podcast Luz no fim da quarentena, José Roberto de Toledo e Fernando Reinach respondem se gatos e cachorros podem se contaminar com o Sars-CoV-2. Ouça o episódio completo aqui.   

 

José Roberto de Toledo: Afinal, gatos e cachorros podem ser contaminados pelo Sars-CoV-2? Houve uma notícia aqui, outra ali, dando conta de casos esporádicos de infecção de bichos domésticos, mas faltava um experimento controlado para comprovar. Bem, não falta mais. Pesquisadores da Faculdade de Veterinária da Universidade do Colorado publicaram um estudo no jornal da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, uma publicação super respeitada, demonstrando que sim, gatos e cachorros não apenas são infectados pelo novo coronavírus, como desenvolvem anticorpos contra ele. A pesquisa fez mais uma descoberta importante, mas deixou duas questões fundamentais sem resposta.

Fernando Reinach nos conta quais dúvidas os pesquisadores responderam e quais permanecem no ar.

Hoje vamos falar sobre gatos e cachorros. O que você descobriu, um paper da Universidade Estadual do Colorado, nos Estados Unidos, que foi publicado pelo prestigioso jornal da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a PNAS, dizendo exatamente o quê?

Fernando Reinach: O problema é o seguinte: você tem essa dúvida, faz muito tempo, se gatos e cachorros são infectados pelo Sars-CoV-2, se eles transmitem, se eles saram, como é que é a doença neles, se eles infectam seres humanos, se seres humanos infectam os gatos e cachorros. E até agora tinham muitas notícias espalhadas, “ah, na China acharam um cachorro infectado”, mas ninguém tinha estudado isso direito.

Esses sujeitos resolveram estudar a doença em gatos e cachorros. E a razão é meio óbvia. De todos os animais com que a gente convive, os gatos e cachorros são os animais de quem a gente é mais próximo. O cachorro tem essa coisa de ser o rei da saliva, vive babando em tudo quanto é lugar, lambendo a cara das pessoas, mas ele em geral fica dentro da casa. O gato é um pouco diferente, mais distante, um bicho mais altivo, então ele não fica tão próximo. Ele lambe, mas não baba. Mas ele tem essa propensão, a não ser que você fique com ele trancado no apartamento. Ele gosta de sair à noite, cair na gandaia.

José Roberto de Toledo: Só para esclarecer, vamos fazer um disclaimer aqui antes de a gente continuar. Eu tenho um gato. Você tem gato ou cachorro?

Fernando Reinach: Eu tenho vários cachorros. Só que o cachorro não fica no apartamento. Eu tenho uma chácara e o cachorro fica lá. Eu acho que é uma tortura deixar um cachorro dentro do apartamento, mas isso não vem ao caso aqui. O fato é o seguinte: eles resolveram estudar direitinho como é a Covid em gatos e cachorros. E, para isso, eles usaram sete gatos e três cachorros. Esses são gatos e cachorros que vieram de fazendas de criação de gatos e cachorros. Da mesma maneira que existem lugares que criam macacos, que criam ratos, que criam camundongos para experimentos científicos, gatos e cachorros também são usados para isso. Os gatos são extremamente importantes nos estudos de neurofisiologia, são muito usados. Aí eles deixavam os cachorros e os gatos se acostumarem no laboratório por vários dias, anestesiaram levemente os bichos e implantaram embaixo da pele um chip que mede a temperatura e que manda, por rádio, para um computador.

Além disso, eles pegaram 300 mil partículas de Sars-CoV-2, que é mais ou menos a quantidade de partículas necessárias para infectar um ser humano, e colocaram no nariz de cinco dos sete gatos e nos três cachorros. No caso dos gatos, todo dia eles faziam um teste de PCR para ver se tanto no nariz quanto na garganta o gato tinha vírus. O mesmo teste de PCR que a gente faz para ver se a gente está infectado pelo vírus. Além disso, eles mediam, tiravam o sangue do gato todo dia, e faziam o teste sorológico para ver se tinha anticorpos contra a lança e contra os mesmos antígenos que a gente mede em ser humano. Eles viram que os gatos realmente se infectaram com o vírus. O vírus se instala na boca e na garganta do gato e eles produzem uma quantidade grande de vírus na saliva, que sobe ao longo do tempo e depois de uma semana e pouco baixa e desaparece. Muito parecido com o que a gente observa em seres humanos.

José Roberto de Toledo: Eles têm sintomas?

Fernando Reinach: Eles disseram que os gatos eram totalmente assintomáticos. Eles ficaram felizes na gaiola. E, na medida em que o vírus ia desaparecendo, e provavelmente por isso mesmo os anticorpos contra o vírus se desenvolviam nos gatos, eles ficavam com níveis altos de anticorpos e saravam. Eles fizeram mais dois experimentos muito importantes. Pegaram dois gatos que estavam produzindo um monte de vírus e colocaram na mesma gaiola com dois gatos sadios. E dois, três dias depois, os gatos sãos ficaram doentes, começaram a ter o vírus na garganta, desenvolveram anticorpos e depois sararam.

E, além disso, eles pegaram esses gatos que tinham sarado e que tinham bastante anticorpos e colocaram, de novo, mais vírus no nariz deles e acompanharam. E os gatos ficaram imunes, eles não pegaram mais a doença. Então é mais ou menos parecido com o que a gente acredita, apesar de não ter certeza, que acontece com seres humanos. Depois que você se infecta, é mais difícil pegar a doença de novo.

José Roberto de Toledo: Descobriram quatro coisas então. Um: os gatos, sim, pegam Sars-CoV-2 e multiplicam o vírus dentro do seu organismo; dois: criam anticorpos contra eles e acabam sarando sozinhos; três: e não tem recaída; e quatro: contaminam outros gatos.

Fernando Reinach: Exatamente. A única coisa que os ouvintes não vão gostar é que, no término dos estudos, eles sacrificaram os gatos para ter certeza que os gatos tinham sido infectados mesmo. E realmente viram na traqueia, em vários órgãos, que eles tinham sido infectados. Nos gatos que foram sacrificados, depois de trinta dias, se viu o tecido de cicatrização etc.

José Roberto de Toledo: Essa é uma questão importante, Fernando, que eu acho que o gato vai esclarecer. Mesmo os assintomáticos não tendo sinais nem sintomas externos, desenvolvem Covid-19. Não é isso? Porque se fica cicatriz…

Fernando Reinach: É que Covid é o nome da doença. Eles são infectados pelo vírus. Eu levo muita bronca da minha mulher, que é médica, porque ela acha que Covid é a doença. Então você tem que ter sintomas, porque a doença é caracterizada pelos sintomas. Então tem uma discussão aqui em casa e também nos meios médicos se uma pessoa totalmente assintomática teve Covid. Os médicos formalmente não gostam dessa ideia. Se você o pôs em um raio-X e apareceram sintomas, ou o cara teve tosse, febre, ele teve Covid. Mas vamos supor que o cara não teve nada como o gato, que não teve nenhum sinal nem sintoma, mas apareceram sinais na traqueia, nos tecidos do gato de que o vírus andou por lá.

Então, numa pessoa, você vai não vai dizer que ele teve Covid. A não ser que ele morra de alguma outra coisa, você faça uma autópsia e você fale: “teve sintomas que eu não consegui ver.” Os médicos usam Covid para a doença. E Sars-CoV-2, infecção pelo Sars-CoV-2, quando o vírus entrou e se instalou em você. Então o gato é isso aí. No caso dos cachorros, o resultado é um pouco diferente. Eles não fizeram todos os experimentos. Como tinham só três cachorros, eles colocaram o vírus dentro do cachorro…

José Roberto de Toledo: Eu acho isso, sinceramente, um viés inadmissível. Por que é que só comprou dois, três cachorros e sete gatos? O que eles têm contra os gatos?

Fernando Reinach: Eu acho que nos Estados Unidos é muito mais difícil fazer experimentos com cachorro do que com gato. É uma coisa cultural, a afeição da sociedade por cada animal varia. De qualquer modo, nos cachorros eles colocaram um vírus, viram que o cachorro pega a doença – ele produz vírus na boca e no nariz – só que numa quantidade menor do que nos gatos. Os anticorpos são desenvolvidos e ele sara. Mas eles não fizeram um experimento para ver se um cachorro passa para o outro. Nem fizeram o experimento para ver se o cachorro fica imune.

Essa é a principal falha do trabalho, não custava nada pegar mais alguns cachorros e fazer a mesma coisa que eles fizeram com os gatos. Eles não sacrificaram os cachorros também.

Agora o interessante é que a pergunta principal, que é “será que esses bichos, quando estão contaminados, transmitem para a gente?”, esse experimento não fez, porque você não consegue aprovar isso num comitê de ética. Porque seria você pegar um gato infectado e colocar no apartamento de uma família sadia e ver se as pessoas pegam Covid ou Sars-CoV-2. Então isso não pode ser feito, esse experimento não foi feito. O que eles poderiam ter feito, que é eticamente aceitável mas eles não fizeram, é pegar um gato sadio e colocar numa família em quarentena onde todo mundo testou positivo.

José Roberto de Toledo: Para saber se o humano passa para o gato.

Fernando Reinach: Para saber se o humano passa para o gato. Então essa parte ainda ficou em aberto. Mas como a quantidade de vírus produzida pelo gato e a quantidade de vírus produzido pelo cachorro é grande, a impressão que fica é de que, teoricamente, você pode se contaminar. Porque tem bastante vírus na saliva do gato, na saliva do cachorro, e a gente vive muito próximo desses animais. Eu acho que mais próximo dos cachorros do que dos gatos.

José Roberto de Toledo: Embora a probabilidade maior seja o contrário, porque você tem mais chance de se contaminar na rua e trazer para dentro de casa e contaminar seu gato ou seu cachorro, do que o contrário.

Fernando Reinach: Ou uma pessoa que, no desespero da solidão da quarentena, vai lá e adota um gato. Eu conheço.

José Roberto de Toledo: Tipo eu.

Fernando Reinach: Tipo você, Toledo.

José Roberto de Toledo: Também existe essa possibilidade, mas devo dizer que eu, o Toro e minha mulher estamos negativados.

Fernando Reinach: Bom, o fato é que é interessante, porque isso resolve um problema. A gente saber se os animais mais próximos à gente pegam ou não pegam é importante, e agora a gente sabe que pegam, tem que tomar os cuidados devidos. E tem essa discussão que sempre sobra em ciência. Morreram alguns gatos para você ter essa informação. Valeu a pena? É isso que as pessoas têm que pensar. O número de ratos que a gente mata para entender, e o número de macacos que já foram sacrificados para fazer a vacina é enorme. E essa informação custou a vida, sei lá, de cinco gatos. A maioria dos cientistas acha que vale a pena. Muitas pessoas que gostam muito de gatos acham que não vale a pena. Mas é bom lembrar que esses gatos e cachorros foram criados sem contato com seres humanos. Eles são como se fossem animais de laboratório.

José Roberto de Toledo: Existe alguma corrente na ciência para tentar substituir as cobaias animais por outras maneiras de fazer experimentos?

Fernando Reinach: Não. O que existe é que todo mundo aceita que, no passado, se tinha um uso excessivo de animais. E os cientistas ficaram muito ciosos disso e têm usado o mínimo possível. Então, você faz os experimentos em outros animais antes e esses animais que a gente gosta mais se tenta usar o mínimo possível. Os primatas, principalmente os macacos rhesus etc., não só são muito parecidos com a gente, mas são caríssimos de se criar. Mas eu acho que em muitos experimentos para testar drogas etc. é muito mais seguro você injetar primeiro num animal e depois em um ser humano.

José Roberto de Toledo: Todas as vacinas que estão em desenvolvimento passaram por um macaco rhesus antes, né?

Fernando Reinach: Todas passaram por macacos, todas passaram por ratos, e aí você injeta nos primeiros seres humanos. Então essa é a filosofia da coisa. Algumas coisas dá para substituir os animais, usar o mínimo possível, mas em outras não dá.

José Roberto de Toledo: Fernando Reinach, muito obrigado. Esse programa é dedicado à memória desses gatos heroicos, que deram sua vida pela ciência. E vamos em frente. Pelo menos agora sabemos que os gatos e cachorros também pegam Sars-CoV-2, não pegam Covid.

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