No palco do Teatro Anchieta, em São Paulo, as atrizes Bete Coelho e Georgette Fadel repassavam pela última vez as cenas da tragicomédia Ana Lívia, antes de o pano subir para a estreia, em 10 de novembro do ano passado. Sentado ao lado da diretora Daniela Thomas, o autor da peça, Caetano W. Galindo, assistia compenetrado à atuação das colegas.
Ao fim da última cena, o grupo confabulou sobre um detalhe cênico. Na última hora, optou-se por uma pequena mudança – uma alteração sutil no posicionamento das atrizes em relação à iluminação, potencializando a dramaticidade do desfecho. (Não darei detalhes para evitar o spoiler). Com um retoque em cima da hora, a peça foi ao público. E a mudança funcionou. Pode parecer banal, mas para Galindo o episódio é um exemplo da coletividade criativa que permeia seu novo mundo. Ana Lívia é seu primeiro texto para o teatro. O autor estreante se prepara, agora, para ver a peça encenada em sua terra: a montagem fará parte do Festival de Teatro de Curitiba, uma das mostras mais importantes do país.
Tradutor premiado, escritor festejado e professor universitário há 26 anos, Galindo é um pacato homem de 50 anos, de vida regrada e semi reclusa, até então restrita aos livros, filmes e aos textos acadêmicos. Nunca foi próximo ao teatro, nem como espectador. Viu-se, no entanto, sugado por essa “selvageria criativa” aos poucos. Pegou gosto de tal maneira que não pensa em parar. De início, ele até se sentiu um quase estranho naquele ambiente efervescente. De cara, fascinou-se pelo processo produtivo e pela “turma do teatro”.
“A Georgette [Fadel] quebrou meu curitibanismo em cinco segundos”, disse, contando sobre um abraço afetuoso que recebeu da atriz, na primeira vez em que se encontraram. “É bocó, mas a minha imagem preferida para entender o impacto do teatro é: as pessoas do teatro dão os melhores abraços do mundo. Termina uma peça, termina um ensaio, e as pessoas têm uma necessidade de compartilhar felicidade, felicidade com o resultado, com o processo… É lógico que é um mundo de gênios, divas e astros, com disputas de espaço. Mas, ao mesmo tempo, eles vivem dessa dinâmica de produzir algo em conjunto. Isso é muito poderoso (…) É algo muito novo para mim, que sou curitibano e de letras, mas é muito agradável”, definiu. “Perigosamente agradável”, acrescentou.
O autor sentiu o peso desse fazer coletivo logo nas primeiras etapas, após entregar o texto original. De início, tinha imaginado uma peça com atmosfera mais densa, melancólica, meio beckettiana. Nas primeiras leituras com a equipe, no entanto, percebeu que a história tinha momentos com potenciais cômicos. A percepção foi acentuada quando as atrizes começaram a dar vida às personagens – Ana e Lívia. Em outras ocasiões, a diretora e as próprias atrizes sugeriram mudanças. Galindo embarcou nas ideias. Ao longo de todo o processo, reescreveu o texto onze vezes, fazendo adaptações, mudando cenas ou alterando a ordem de episódios. Para dar conta do trabalho, o estreante viveu na ponte aérea.
“Esse contato era muito intenso. Eu fui a São Paulo várias vezes, assisti a ensaios… Eu fiquei blocos de dias com eles. Reescrevia a peça no hotel para levar no dia seguinte. Foi mão na massa, mesmo”, contou Galindo. “A distância também é boa, porque se eu estivesse em São Paulo, teria ido morar dentro da sala de ensaio durante dois meses. E daí, babaus vida! (…) Teatro é um mundo muito viciante. Eu agradeço por estar em Curitiba, porque esses 400 km de distância servem de proteção”, disse.
O que levou Galindo ao teatro foi sua experiência como linguista e tradutor – principalmente por ser o principal especialista em James Joyce – laureado com o Prêmio Jabuti por sua tradução de Ulysses. No primeiro semestre de 2022, ele quase caiu da cadeira ao saber que Bete Coelho o procurava. A artista – a quem tinha como uma referência de “atriz intelectual, dos trabalhos complexos” – queria sua consultoria para a peça Molly-Bloom, baseada justamente na personagem de Ulysses. A consultoria foi além de conduzir palestras com os atores sobre a obra do autor irlandês. Galindo acabou se envolvendo no processo, ajudou a editar o monólogo, acompanhou os ensaios e chegou a palpitar na edição, ainda que timidamente. A peça estreou em agosto de 2022, encenada pela Cia. BR116.
A relação com Bete Coelho se estreitou. No fim de 2022, o escritor submeteu um romance de sua autoria à leitura da atriz. Tratava-se de Lia, que havia sido lançado em fascículos – um capítulo por semana – a partir de 2019, no jornal digital curitibano Plural, cofundado pelo jornalista Rogério Galindo, irmão de Caetano. A obra revela, aos poucos, fragmentos da vida da protagonista fictícia: a curitibana Lucília Paula Kappelhoff, a Lia. Coelho gostou do que leu. Foi aí que encomendou ao escritor um texto para teatro, que partisse de duas personagens femininas – duas atrizes. Entusiasmado, Galindo topou a parada.
“A Bete [Coelho] foi uma ‘leitora ideal’. Sabe quando a pessoa lê e faz aquele comentário que você esperava que alguém fizesse ou que nota alguma coisa que você espera que alguém note? Pois bem. Foi isso. A Bete disse que quando ela leu aquilo, ela pensou: ‘Ele vai saber escrever para mulheres’”, relatou o autor. Desde a infância , Galindo transita pelo universo feminino. Cresceu em um ambiente definido como “um universo de tias” (aquelas mulheres “doidas, esquisitas, curiosas e divertidas, que estão no meu imaginário”). Soma-se a isso o fato de ser casado há 21 anos e pai de uma menina. Olhando em retrospecto, ele avalia que esses ingredientes podem o ter impelido a partir de personagens mulheres.
“Nós [homens] somos básicos, previsíveis, até porque já fomos muito explorados pela literatura, pelo cinema… Homens escrevendo sobre homens há milênios. E essas coisas já foram muito bem feitas, inclusive. Então, eu que me considero parte dessa humanidade mais simples, mais reduzida e mais burrinha, vou lá investigar essa outra parte que é maior, mais fascinante e que é mais inabrangível. Eu acho legal”, filosofou, enquanto servia uma xícara de café à piauí. Em nova edição, com texto retrabalhado, Lia foi lançado em livro pela Companhia das Letras, em 5 de março.
Semanas antes do contato de Bete Coelho para consultoria em Molly-Bloom, Caetano Galindo já tinha se lançado em um desafio semelhante, a convite do diretor Felipe Hirsch, que preparava o espetáculo Lingua Brasileira, com o grupo Ultralíricos. A peça havia sido idealizada a partir da canção homônima de Tom Zé, do álbum Imprensa Cantada. Desde então, o negócio se tornou uma “bola de neve”. Galindo foi então colecionando participações em peças, em uma lista que inclui também Autorretrato e Fantasmagoria IV, também da Ultralíricos.
A montagem de Língua Brasileira rendeu ainda uma série de ramificações. Na esteira do espetáculo, Tom Zé lançou um álbum homônimo ao projeto, pelo Selo Sesc. Paralelamente, Hirsch começou a trabalhar no documentário Nossa pátria está onde somos amados. Galindo também quis pôr sua “pedrinha no projeto”. Propôs à Companhia das Letras escrever um livro de fácil leitura sobre a história da língua portuguesa. Com o OK da editora, redigiu a espinha dorsal de Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português em um intervalo de três semanas. A ideia era lançá-lo junto com o documentário, mas não houve tempo hábil. Publicado no fim de 2022, Latim em pó se tornou um sucesso editorial, já chegando à sua oitava reimpressão.
“O livro fecha esse um ano de projetos com o Felipe [Hirsch]”, resume Galindo. “Em um intervalo de dois anos, eu saí do nada para um envolvimento com cinco peças diferentes… e tô feliz pacas!”, celebra. Olhando em retrospecto, no entanto, quase não acredita na guinada de sua carreira. “Eu não tinha nenhum grande envolvimento nem como espectador de teatro. Eu li muito teatro, mas a gente está em Curitiba, a gente não está num grande centro teatral. E, em segundo lugar, eu saio pouco de casa, né?”
A um segundo olhar, no entanto, Galindo conclui que o teatro sempre esteve à espreita. Recorda-se, por exemplo, de na primeira infância ter assistido a uma montagem de Pluft, o fantasminha, levado pela mãe. Na sétima série, escreveu uma peça de teatro, sobre um “menor abandonado” (“tinha pretensões de ser uma denúncia social. Era uma catástrofe”). O primeiro texto que traduziu foi a peça Travesties, de Tom Sttopard. Na adolescência, namorou uma atriz. Na primeira edição do Festival de Teatro de Curitiba, junto com ela, conseguiu uma ponta como assistente do evento, só para conseguir ver os espetáculos de graça. Anos depois, quando sua mãe adoeceu com câncer, Galindo e o irmão traduziram The Odd Couple, de Neil Simon, para entretê-la durante o tratamento.
“Eu ia pouco [ao teatro], mas cada vez que eu saía, eu pensava: ‘Caralho, por que eu não vou sempre ao teatro?’. Aí, dois anos depois, eu ia noutra peça e dizia: ‘Porra, por que eu não vou mais ao teatro?’. Porque sempre foi uma coisa de ‘fio desencapado’ para mim”, refletiu.
Mal Ana Lívia estreou em São Paulo, Caetano Galindo começou a sonhar em ver a peça encenada no Festival de Teatro de Curitiba – que chega a sua 32ª edição. O autor conhece de longa data uma das curadoras do evento, Giovana Soar, mas não se atreveu a abordá-la. Quando ela disse que iria à capital paulista para assistir Ana Lívia, no entanto, Galindo sorriu com o bom prenúncio. Para delírio do dramaturgo, a peça não só foi incluída no festival – nos dias 26 e 27 de março –, como será apresentada no Teatro da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que fica a três quadras da casa de Galindo e que ele considera como sua segunda casa. Sem receio de qualquer clichê, o autor festeja.
“Pra mim, é tipo sonho, sonho realizado. Eu tenho total receio de que caia um Boeing na minha cabeça entre hoje e aquele dia [da estreia], porque parece tudo certo demais, tudo bom demais”, disse.
Paralelamente, Galindo deve engatar um novo texto para teatro, mais uma vez sob encomenda de Bete Coelho. Enquanto tenta dar conta de tudo, esforça-se por entender cada vez mais esse novo seu universo. “Acabei de aprender essa semana, por exemplo, que colocar as várias luzes na posição mais alta chama ‘enforcar’. Eu não sabia disso. Eu já anotei”, observa. Não que Galindo vá abandonar a vida acadêmica ou deixar Curitiba. Mas se vê cada vez mais de “um quase estranho” ao teatro a um profissional desse meio.
“A não ser que as pessoas desistam de mim, me deem as costas e me fechem as portas, eu acho difícil eu querer parar de fazer coisas com o teatro e para o teatro. Talvez eu nunca mais publique um romance na minha vida. Talvez eu nunca publique poesia… é bem provável. Mas eu não quero parar de fazer coisas para teatro”, concluiu.