Cena de gravação da série Camila Baker, no Teatro Grande Otelo, em São Paulo Foto: Leticia Ribeiro
Camila Baker, outra vez
Montada diversas vezes ao longo dos últimos 30 anos, peça que foi do underground ao mainstream ganha versão em série de tevê
Quando o dramaturgo Emilio Boechat e os diretores Emerson Muzeli e Fernanda Telles decidiram transpor à tevê a peça Camila Baker, grande sucesso do teatro paulistano dos anos 1990 e 2000, perceberam a necessidade de alguns ajustes. Não só aqueles relacionados ao figurino ou à cenografia, mas, sobretudo, ao texto do espetáculo. Descrita por Boechat como uma peça “muito maluca”, as modificações serviram para tentar blindar o projeto de críticas em tempos de cancelamento, além de adequar a produção, liderada pela Academia Filmes, às discussões envolvendo raça e gênero.
A série já está em fase de edição, enquanto os produtores negociam com plataformas de streaming . Dividida em cinco episódios com cerca de 30 minutos cada um, Camila Baker gira em torno de uma famosa atriz que é tirada da década de 1960 para viver o Brasil contemporâneo, sem a fama e o glamour de outrora. Para tentar se restabelecer no mundo artístico, ela propõe encenar um espetáculo.
Para a versão televisiva, os roteiristas tiveram a parceria da Influência Negra, plataforma especializada em produção de conteúdo e assessoramento em questões de diversidade. Houve atenção, por exemplo, na representação de um personagem que pertence à máfia chinesa: ele não é chinês nem tem traços caricaturais como a troca da letra ‘R’ pela ‘L’. Deficiências físicas ressaltadas com piadas capacitistas também foram eliminadas.
Outro foco, talvez o principal deles, está na questão de gênero. Desde a primeira versão, Camila Baker é interpretada por homens, um desejo do ator Octávio Mendes, que concebeu a personagem e convidou Boechat para escrever o texto, que estreou em 1990. Depois dele, atores como Daniel Boaventura, Raul Gazolla, Caco Ciocler, Otávio Muller, Danton Mello e Marcos Mion representaram a protagonista. Na série televisiva, será a vez do ator Maurício Xavier. “Ela é uma diva que precisa se reerguer enquanto revisita suas próprias fragilidades e paixões”, afirma Xavier à piauí.
“Nós falamos sobre as diversas identidades, cis – trans, drag queen, cross-dresser – e também do universo da mulheridade para entender e contextualizar suas diversas possibilidades e as discussões em torno do feminino”, diz Robson Rodriguez, diretor executivo da Influência Negra.
A produção para a tevê mostra Camila Baker ensaiando a montagem do texto Mary Stuart, na versão do dramaturgo alemão Friedrich Schiller, que narra os últimos dias da rainha da Escócia e sua rivalidade com a prima Elizabeth I. Ela contracena com sua irmã, a invejosa Virginia, interpretada pelo ator Jefferson Schroeder. “Sempre evito dar um tom sedutor às minhas personagens, porque um homem, ao fazer uma mulher que seduz, pode sexualizar a imagem feminina. Mas a Virginia é sedutora”, pondera Schroeder à piauí.
Na série, o diretor teatral Ulysses Cruz interpreta a si mesmo, encarregado de conduzir Camila Baker e Virginia em cena. Ariscas e rebeldes, elas odeiam receber ordens. Em uma das filmagens presenciadas pela piauí, em setembro do ano passado, no Teatro Grande Otelo, no colégio Liceu Coração de Jesus, Camila desafia Ulysses ao rejeitar seus comandos.
Por meio da metalinguagem, portanto, aborda situações comuns ao meio teatral, nem sempre as mais louváveis. Camila é uma prima-dona e, entre martinis e bofes sarados, exibe um ego também tonificado. Seu egocentrismo a põe em conflito com a camareira, Dorothy (Carol Badra), que subjuga, e o filho, Wolfgang (João Pedro Zappa), que ignora. Há ainda Jessica (Laura Luz), outrora filha fora do casamento de Camila em montagens anteriores com o nome Jennifer e agora sua neta, e a Velha Roots (Débora Duboc), uma entidade, algo como “espírito do teatro”, criada especialmente para o seriado como uma homenagem ao ofício.
Na gravação acompanhada pela piauí, a estrela enlouqueceu Cruz ao refutar sua direção. “Camila, pode tirar essa roupa”, pediu ele, que planejava uma releitura contemporânea do romântico Schiller, enquanto Camila se agarrou ao estilo clássico. “Não vou tirar”, ela desafiou. “Vai tirar sim”, ele insistiu. “Não vou”, teimou Camila, para quem, no teatro que leva seu nome, a última palavra deve ser sua. “A arte imita a vida”, comentou nos bastidores o diretor ainda no set, ao evocar Regina Duarte e outras divindades artísticas. “Regina é super Camila Baker, e eu digo isso com carinho.” Ele dirigiu a ex-global no espetáculo The Lion in the Winter, em 2018. “Foi uma loucura. Todos os dias um drama, uma história, um problema. E é essa a matéria de que vive Camila Baker”, diz, complementando que Regina, no fim das contas, era “dirigível”. Procurada, Regina Duarte alegou motivos de agenda para não comentar o episódio.
Camila Baker teve orçamento de 5 milhões de reais, em um dos primeiros projetos contemplados pela Lei Paulo Gustavo, aprovada em 2023. O repasse é feito diretamente pelo Ministério da Cultura aos estados e municípios, que são os responsáveis por lançar editais (diferentemente da Lei Rouanet, que utiliza isenção fiscal). Em São Paulo, a avaliação dos projetos ficou a cargo da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do governo estadual.
As gravações duraram pouco mais de um mês, entre setembro e outubro. A piauí acompanhou o set no fim de setembro. Enquanto os realizadores terminavam os roteiros e selecionavam o elenco, produtores rodaram São Paulo em busca de um teatro alquebrado, assim como na história. Encontraram o set perfeito no Grande Otelo, alugado com custo de 30 mil reais. Amplo, com palco italiano e camarins à disposição, o local foi convertido em set de filmagem.
Para assumir o formato de série, os esquetes curtos e de riso fácil deram lugar a cenas temperadas por conflitos e dramas, que se encadeiam formando uma narrativa na qual os personagens buscam envolver o público. “Para mim, essa é uma história de superação: Camila e seus familiares precisam se entender e enfrentar desafios juntos. As pessoas vão ter empatia, vão torcer pelos personagens”, acredita Paulo Schmidt, sócio-fundador da Academia de Filmes.
“Camila Baker é uma série, não uma sitcom. É o que a gente chama de dramédia, mistura de drama e comédia, com uma história a ser contada, e personagens nuançadas, que evoluem”, explica Telles. Essa evolução, que torna possível o desdobramento da história em múltiplas temporadas, explica por que a diva volta não só bem comportada, como também passível de inflexões. De acordo com a Academia de Filmes, há roteiro para mais duas temporadas.
Embora grande parte das situações tenha sido criada por Boechat, a ideia inicial do personagem surgiu com Octavio Mendes. Recém-formado na Escola de Arte Dramática (EAD), o ator ficou extasiado com a performance de Bibi Ferreira em Piaf, a Vida de uma Estrela da Canção, espetáculo apresentado de 1983 a 1990. Influenciado pela história, decidiu criar sua própria diva.
“Na peça, a melhor amiga de Édith Piaf era Josephine Baker. Eu gostei desse sobrenome. Camila não lembro mais como apareceu”, conta Mendes, que pouco depois encontraria Boechat, um jovem estudante de cinema. Ficaram amigos e mantiveram contato. “Eu o achei engraçadíssimo. Comecei a compartilhar com ele meus roteiros, que os colegas de cinema achavam muito teatrais porque eram cheios de diálogo. Uma hora, ele [Mendes] disse que queria fazer uma apresentação sobre uma prima-dona chamada Camila Baker e me pediu esquetes. Eu não tinha, mas criei. E, enquanto escrevia, ele foi convidando outros atores para participar do projeto. Assim, surgiu a peça”, relembrou Boechat.
Boechat ia à casa de Mendes, na Rua Amaral Gurgel, no Centro, com certa frequência. Por lá, encontrava o ator Aldo Camolez, que compôs o elenco da primeira versão. “Emilio e Octávio [Mendes] começaram com essa loucura de fazer um espetáculo. Eu chegava e os dois liam as cenas para mim. Se eu não morresse de rir, elas eram reescritas. Boechat era uma profusão de ideias”, afirma Camolez. “A gente gostava de Monty Python [grupo de comédia britânico], daqueles esquetes nonsense. Esse era o ideal perseguido.”
A criação de Boechat se deu a partir de algumas premissas lançadas por Mendes: Camila Baker seria uma diva e a peça reuniria trechos tanto de sua vida pessoal como de montagens estreladas por ela. “Eu pedia: ‘Emilio [Boechat], quero uma peça de época, depois uma tragédia grega que misture Grécia e Egito’, porque Camila era uma grandíssima atriz, mas também era burra”, lembra Mendes aos risos. Nas primeiras montagens, Camila Baker havia transado com o pai, a mãe e o irmão, além de trocar favores sexuais por mimos de alto valor. Também era a suspeita sem qualquer álibi de assassinar um de seus maridos. Muitos desses aspectos foram revistos na série.
A estreia aconteceu no diminuto Auditório Augusta, com cadeiras de plástico e uma ruidosa arquibancada de madeira, alugado em troca de uma pequena porcentagem da bilheteria. A diversão parecia ser o objetivo do elenco, que foi tomado de surpresa ao ver na plateia, após algumas sessões, espectadores como Paulo Autran e Marco Nanini.
De boca em boca, Camila Baker caiu no gosto da classe, que ria de si mesma ao assistir ao espetáculo. Em seguida, a crítica descobriria a peça, alçada então a palcos mais requisitados: o do hotel Crowne Plaza e do teatro Maria Della Costa, aonde chegou com o apoio de Denise Fraga, que estrelava no local Trair e Coçar É Só Começar.
A repercussão era tamanha que Mendes, que viveu por dois anos e meio na pele e nos vestidos da prima-dona, era convidado para todo tipo de evento – sempre caracterizado como Camila Baker. “A Camila é que era convidada, acho que nem sabiam o meu nome”, lembra. “Como as pessoas me tratavam como diva, eu me comportava como tal. Dava a mão para ser beijada, recebia agradecimentos, ganhava flor.”
O sucesso não foi igual para todos. Boechat chegou a ter raiva de Camila Baker, porque parecia só ter esse trabalho no currículo: era o texto que mais lhe pediam para revisitar, embora tenha assinado obras como Luluzinhas, Três Mulheres Baixas e Eu Era Tudo pra Ela & Ela Me Deixou, entre outras. Mais tarde, fez as pazes com Camila, ao reconhecer a importância do projeto em sua vida.
A transição para a tevê é mais um capítulo da relação de afastamentos e aproximações entre o dramaturgo e sua maior criação. É também o retorno de uma protagonista em outra versão. Para Xavier, que a encarna nas telas, é a consagração da jornada do herói. “Ela recebe um chamado para a aventura e, na travessia, tem o apoio de outras pessoas até cruzar um limiar, se reencontrar e fazer a sua ressurreição como uma fênix, para que volte a um ponto onde o mundo seria melhor para todos.”
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