Sábado, dia 19 de dezembro, às 16h30, o primeiro-ministro inglês Boris Johnson entrou em cadeia nacional de tevê para anunciar que o Natal estava cancelado. Uma mutação do vírus da Covid-19 com capacidade de contaminação 70% maior que a da versão já conhecida assolou Londres e o sudeste da Inglaterra, colocando a região em Nível 4, ou seja, muito grave. Na semana de 9 de dezembro, 60% dos novos casos registrados na capital inglesa foram causados por essa variação do vírus. O projeto de manter lojas, restaurantes e bares abertos e a possibilidade de juntar moradores de três casas diferentes por quatro noites sob um mesmo teto foi adiada por tempo indeterminado. Só entregas podem ser feitas. Cabeleireiros, barbeiros, cinemas, academias e clubes se preparam para fechar, sem data para reabertura.
Desde o início do ano letivo inglês, em 2 de setembro, meu caçula de 15 anos me diz: “Os casos continuam crescendo, a escola vai fechar.” Apaixonado por animes japoneses e jogos eletrônicos, ele até que está gostando da pandemia. Quando passamos a fazer a contagem diária de óbitos e novos contaminados por Covid-19, ele foi autorizado a ficar no quarto diante do computador sem limite de horas. Meu marido, que cursa doutorado em Economia Criativa na Goldsmiths University, faz o mesmo na mesa retangular de madeira clara da sala, que também serve como local de refeições para os quatro ocupantes do nosso apartamento. Depois de um primeiro semestre de bares abertos, escolas fechadas e quase nenhuma aula online para a rede pública do Reino Unido, o mantra do segundo semestre foi “fecha tudo, mas não interrompe a escola”.
Aqui na Inglaterra, os alunos da rede pública vão de terno, gravata e sapato preto para a escola. A rotina de lavar dez camisas brancas todo sábado ia muito bem até que duas semanas atrás, domingo, o caçula veio todo sorridente anunciando: “Mãe, o garoto que senta ao meu lado testou positivo para Covid-19. Não posso ir à aula amanhã.” Irritada com aquele estribilho, fui logo avisando: “só vai faltar à aula se tiver um comunicado oficial!” Para ter argumentos, entrei no site do NHS (National Health Service, o SUS do Reino Unido) para saber qual era a recomendação. O endereço eletrônico estava a meu favor: “Se você tiver contato com alguém que testar positivo e não apresentar sintomas nem receber uma ligação de um funcionário do sistema de saúde, prossiga com as medidas de distanciamento social vigentes.” Meu risinho de vitória durou pouco. Menos de meia hora depois a coordenadora do ano dele mandou e-mail cancelando as aulas por catorze dias. No dia seguinte, ela me ligou dizendo que cinco alunos do ano tinham testado positivo e não havia como manter os encontros presenciais.
Fora o caçula, que a partir daquele momento era obrigado a ficar no quarto por duas semanas, o restante da casa estava desfrutando de uma vida relativamente normal. Desde o dia 2 de dezembro, além de serviços essenciais, lojas, restaurantes, bares, cabeleireiros, barbeiros e academias estavam abertos. De máscara e álcool gel na mão se podia fazer tudo na cidade. Não era a atitude recomendada pela classe médica. Naquele segundo dia do último mês do ano, foram registrados 16.429 novos casos e 382 mortes no Reino Unido, de acordo com dados do governo. O que não significava um alívio significativo para os 23.741 novos casos e 375 mortes do dia 5 de novembro quando, por ordem do primeiro-ministro, bares, lojas e restaurantes fecharam na Inglaterra, Irlanda do Norte e no País de Gales por quatro semanas.
Mas o Natal tinha de acontecer. Havia uma pressão dos comerciantes e do inglês médio que não queria abrir mão de compartilhar com os familiares a mince pie (tortinha doce típica dessa época do ano) nem a fatia de peru com molho de cranberries.
Depois de quatro meses longe de um centro de compras, eu tinha ido com o marido ao Westfield, um dos poucos shopping centers da cidade, uma semana antes de o primeiro-ministro apertar o botão do pânico. Não foi uma experiência agradável. De máscara, entramos em quatro lojas de esporte atrás de uma bola de vôlei para presentear os filhos. Não encontramos o artefato, mas liquidações por todo o lado, muita gente, e prateleiras com muitos itens faltando. Deu aflição estar naquele lugar. Uma hora depois, saímos dali irritados. Naquela mesma semana também andei pelas ruas Oxford, Regents e adjacentes, popular polo de compras da capital inglesa. O movimento era assustador. Com exceção da Fortnum & Mason, casa de chá favorita da rainha Elizabeth II, as lojas também mostravam uma elegante decadência, com produtos em promoção fora de hora.
Eu parecia ser das poucas a estranhar. Os tubos de álcool gel das entradas dos estabelecimentos esvaziavam rápido e muita gente era vista com sacolas nas ruas. Naquele dia, peguei um black cab (tradicional táxi da cidade) para voltar para casa. Apesar de contente com o retorno das corridas, o motorista estava assustado. “Com o fechamento da city [centro financeiro da cidade], todos os motoristas de táxi de Londres estão concentrados no mesmo lugar, e o trabalho diminuiu muito”, me contou.
No dia 17 de dezembro as escolas inglesas entraram em recesso para as festas de fim de ano. Havia rumores de que a volta às aulas seria adiada como fizeram na Alemanha, porque os novos casos de Covid-19 estavam aumentando muito. Sábado, dia 19, choveu muito em Londres e acabei indo somente ao supermercado garantir o salmão de domingo. Estava em casa quando o primeiro-ministro começou o pronunciamento oficial ao lado do médico-chefe do Departamento de Saúde e Assistência Social, Chris Whitty (a figurinha mais popular das xícaras-presente de fim de ano), e do conselheiro científico do governo, Patrick Vallence. Depois de quarenta minutos de falas e perguntas de repórteres, era oficial que o sudeste da Inglaterra e Londres estavam em Nível 4. “Nem sabia que isso existia”, uma das brasileiras de um grupo de Whatsapp de que faço parte enviou. “Bojo [apelido do primeiro-ministro] acabou de inventar”, respondeu outra. A nova diretriz determinava que a partir da zero hora do dia 20 de dezembro somente lojas de produtos essenciais ficassem abertas. Viagens estavam proibidas, bem como encontros de pessoas que vivem em casas diferentes. Nada de misturar famílias no Natal. E nos outros pontos do Reino Unido, ainda em Nível 1 a 3, no dia do Natal, duas casas podem se misturar. Mas o encontro deve ser o mais curto possível. “A mensagem para as festas é mantenha os encontros pequenos, curtos, sem viagens e lembre-se que os vulneráveis continuam vulneráveis”, disse Vallence na televisão.
A má notícia é que uma mutação do vírus surgida em uma amostra recolhida em setembro na cidade de Kent e analisada em outubro está se mostrando 70% mais contagiosa do que a anterior. Até aquele sábado, a nova mutação já era responsável por 60% das novas contaminações por Covid-19 de Londres. “Esse pesadelo só piora?”, perguntou uma amiga que mora sozinha num bairro distante da cidade e estava de malas prontas para pegar o trem e ver os filhos no Norte da Inglaterra. Vallence, na tevê de novo, foi curto e grosso: “desfaça as malas e fique em casa.” Minha amiga estava inconsolável. “Vou ter de congelar as tortinhas”, choramingou. A notícia também me abalou. Pedi comida no aplicativo, coisa que fizemos bem poucas vezes nos últimos meses. Por segurança adotamos a opção de não ter nenhum contato com o entregador: o embrulho é deixado do lado de fora da casa e uma mensagem nos avisa que chegou. Assim nem precisava colocar máscara para receber o motoboy.
Algumas horas depois do pronunciamento, a França fechou as fronteiras com a Inglaterra. Decisão copiada por outros 39 países em 48 horas. Em dez anos, foi a primeira vez que os trens do Eurostar, que ligam Paris a Londres, pararam de circular. Logo, começaram a chegar notícias de que caminhões com frutas e verduras vindas da Europa estavam presos em Calais, porto francês. Em Dover, no lado britânico, caminhões não conseguiam retornar ao continente. Resultado: na segunda-feira os principais supermercados da cidade voltaram a ter filas constantes de mais de cinquenta pessoas nas portas. E os funcionários desses estabelecimentos não davam conta de reabastecer as prateleiras de frutas e verduras. Uma amiga que tinha alugado uma casinha para passar o réveillon na Escócia recebeu um e-mail do proprietário cancelando a estadia e oferecendo reembolso imediato.
De país festejado por ser o primeiro a vacinar no Ocidente, em dez dias, a Inglaterra virou o endereço a ser evitado. Meu WhatsApp nunca mais parou de tocar. Vieram mensagens de São Paulo, Bauru, Rio de Janeiro, Inhapim, Nova York, Berlim e Belém do Pará. A quem interessar possa, nossa vida não mudou muito. Temos seguido a regra e, apesar de transmitir mais fácil, essa mutação não é mais letal que a outra. Como, até segunda ordem, meus filhos têm pouco mais de duas semanas de recesso e teríamos de fazer quarentena na volta de viagens, descartamos os deslocamentos nos próximos dias. Há boas lojas para compras de comida perto de onde vivemos. Depois de cinco anos sem arrumar a casa para o Natal, montei presépio, coloquei luzinhas coloridas e enfeitei uma mesa com cartões com votos de boas-festas. Consegui comprar o último chocotone numa loja de produtos italianos em Notting Hill e estou torcendo para meu marido não inventar de ver o 2021 raiar perto do Tâmisa. Por mim, fico aqui em Maida Vale mesmo, 15 km longe do rio. No máximo ando até a Rua Portobello, aquela cantada por Caetano Veloso. Segundo um programa que considera a idade e os antecedentes de saúde de pessoas que vivem no Reino Unido e circulou nas redes sociais daqui nos últimos dias, devo ser vacinada entre 3 e 26 de junho do ano que vem. Tem mais ou menos 27 milhões de pessoas na minha frente na fila. O pesadelo segue piorando por aqui, mas tem data para melhorar. Que assim seja.