por BERNARDO OLIVEIRA
Antônio Candeia Filho foi compositor, instrumentista e portelense desde a infância. Seu pai, Antônio Candeia, integrou a escola de samba Vai Como Pode, que deu origem à Portela em 1923. Integrou a segunda geração da Escola, junto a baluartes como Monarco, Casquinha, Manacéia, Catoni, Norival Reis, entre outros. Em 1953, com apenas 18 anos, ganhou o primeiro dos cinco sambas que venceria na Portela. A partir de 1957 se tornou policial militar com fama de truculento e arbitrário, chegando a prender o próprio irmão de criação, segundo o testemunho do compositor Waldir 59. Em 1965 levou um tiro em briga de trânsito que o encerrou em uma cadeira de rodas, evento que alterou profundamente sua visão de mundo e sua música. Foi gravado por dezenas de artistas, emplacando sucessos na voz de Clara Nunes (“O Mar Serenou”), Cartola e Marisa Monte (“Preciso me encontrar”), Elizeth Cardoso (“Minhas Madrugadas”) e Paulinho da Viola (“Filosofia do Samba”), entre outros. Pouco antes de sua morte em novembro de 78, publicou, em parceria com Isnard, o livro “Escola de Samba — A Árvore que Esqueceu a Raiz”, denunciando a interferência de “influência externas” nas Escolas de Samba.[1] Ainda hoje é reconhecido como um personagem decisivo na preservação das tradições ancestrais da cultura negra no Brasil.
No entanto, um olhar mais atento revela que, mais do que um tradicionalista ou um defensor das “coisas nacionais”, Candeia foi um artista capaz de olhar para o futuro e reinventar o samba de muitas maneiras. Em 1975, preocupado com os rumos excessivamente comerciais das escolas de samba, fundou o Grêmio Recreativo Arte Negra Escola de Samba Quilombo (GRANES Quilombo). A iniciativa agregou o apoio imediato de compositores da envergadura de Nei Lopes e Wilson Moreira, que escreveram dois sambas antológicos para a agremiação: “Ao Povo em Forma de Arte” e “Noventas Anos de Abolição”. Por outro lado, recebeu críticas negativas de jornalistas como Sérgio Cabral, pois “os integrantes da Quilombo deveriam usar a sua energia para tentarem modificar suas próprias escolas.” Afeito à polarizações simplórias, o ambiente cultural carioca titubeava diante de um personagem tão idiossincrático: ora o o compreendia como profeta, ora como niilista. Como lembrança pelos seus 80 anos, lanço uma pergunta: entre essas duas perspectivas, o profeta e o niilista, não haveria a possibilidade de pensarmos um outro Candeia?
Através do manifesto do Quilombo, Candeia assinava sua carta de intenções:
“Não sou radical. Pretendo, apenas, salvaguardar o que resta de uma cultura. Gritarei bem alto explicando um sistema que cala vozes importantes e permite que outras totalmente alheias falem quando bem entendem. Sou franco atirador. Não almejo glórias. Faço questão de não virar academia. Tampouco palácio. Não atribua a meu nome o desgastado sufixo -ão. Nada de forjadas e mal feitas especulações literárias. Deixo os complexos temas à observação dos verdadeiros intelectuais. Eu sou povo.
Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem. Quero sair pelas ruas dos subúrbios, com minhas baianas rendadas sambando sem parar. Com minha comissão de frente digna de respeito. Intimamente ligado às minhas origens.
Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais: não me incomodem, por favor.
Sintetizo um mundo mágico.
Estou chegando…”
O manifesto marcou o início de um projeto revolucionário que, em sua opinião, se fazia necessário: o combate a todas as formas de degeneração do povo negro em geral e do sambista em particular. O método para efetivar este programa em nada modesto, tomaria como ponto de partida o cultivo das tradições negras, especialmente a música brasileira de matriz Africana, como o jongo, o afoxé, o maculelê, o batuque da capoeira, etc. A fundação do GRANES Quilombo constituía um dos pilares desta “revolução”, acompanhada de outros elementos que Candeia cultivava através de declarações proferidas de maneira firme e didática, bem documentada por Leon Hirzsman no curta-metragem . Essa naturalidade assertiva e, ao mesmo tempo, pedagógica, por vezes adquiria uma tonalidade ideológica problemática, que alguns estranhavam como sendo xenófoba e, eventualmente, “racista”. De alguma forma, a reputação de Candeia se consolidou a partir do vigor com que se expressava, para o bem e para o mal. Se hoje os arautos do “samba de raiz” o consideram um exemplo a ser seguido, isso decorre da paixão com que defendia seus argumentos e do rigor com que compunha suas canções.
Sou da opinião de que essa fala vigorosa, essa convicção com que ele se dirigia a todos aqueles que o cercavam, fizeram dele um personagem controverso. Mas não explicam sua obra, influência e importância na história do samba. Me distancio dos argumentos aparentemente sectários, para além das palavras e das aparências, e me proponho a encarar a matéria propriamente dita, isto é, a música. Percebo, então, uma saudável e polêmica confusão, estimulada talvez pelo próprio Candeia. Tomemos Raiz, seu segundo álbum autoral, seu trabalho mais expressivo se adotarmos como critério não o vigor de seu discurso ideológico, mas o seu ímpeto criativo, sua capacidade de remodelar as tradições musicais que se dispunha a preservar e defender das “influências externas”. Lançado em 1971 pelo selo Equipe, o disco se chama, estranhamente, Raiz, embora o seu segundo título, escolhido para a reedição de 1976 pelo selo Padrão, fosse mais condizente com o conteúdo: “Filosofia do Samba”.
As letras de Candeia são diferentes de tudo o que o samba produziu até hoje, não somente pelo forte conteúdo poético e político, mas, sobretudo, pelo modo prodigioso com que ele operava sobre a forma e os nexos da poesia, entrelaçando palavras incomuns e criando deslocamentos semânticos independentes da língua culta. Um exemplo: em “Filosofia do Samba”, o seguinte verso: “pra cantar samba, não preciso de razão, pois a razão, está sempre com os dois lados”. Trata-se de uma nítida referência à razão objetiva científica ou filosófica, realocada em um sentido coloquial. A razão universal substituída por um encontro entre duas “razões” subjetivas, que debatem entre si como se estivessem em um botequim. Como bom partideiro (portador da capacidade de se exprimir no Partido Alto), especializou-se na arte do improviso, desenvolvendo um talento particular para incorporar palavras estranhas ao corpus lírico do samba sem parecer pedante ou exagerado. A exemplo de “Outro recado”, presente em seu primeiro disco de 1970 (“No recado que eu mandei a ela, eu dizia francamente o nosso amor chegou ao fim/Mas repercutiu profundamente em meu subconsciente, pois não podia ficar assim…”) ou no clássico “Dia de Graça” (Hoje é manhã de carnival, ao splendor/As escolas vão desfilar garbosamente…).
Por fim, destaco a concepção musical e os arranjos. Especialmente neste quesito, Raiz é um álbum que possui alguns paralelos com o caráter experimental dos discos de João Nogueira, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Roberto Ribeiro durante a década de 70: percussões gravadas de formas não-padronizadas, timbragens que variavam de faixa para faixa, aspectos incomuns se levarmos em consideração os discos de samba gravados hoje. Mas permanece como um exemplar único de ousadia formal e diálogo com tradições afro-diaspóricas overseas. Reparem, por exemplo, em “Saudação a Toco Preto”, uma das gravações mais originais de toda a música brasileira: maculelê rasgado, tema religioso, mas executado com a contribuição de uma sessão de metais no estilo do funk norte-americano. O resultado estimulou mais a imaginação da chamada MPB do que dos sambistas propriamente, regravada mais tarde pelo compositor carioca Pedro Luis. Possivelmente influenciada pelo mesmo movimento Black Rio que supostamente pretendia combater[3], “Imaginação” é um soul existencial muito semelhante aos que Tim Maia gravou em seus quatro primeiros discos, embalado por uma cama de teclado Hammond, cascata de cordas, solos de violão, bateria e contrabaixo “aveludados”. Nota-se também o emprego de efeitos de estúdio na bateria em “Vem É Lua” e no samba-canção “Quarto Escuro”, procedimento incomum no samba da época. Destaque para “Minhas Madrugadas”, a clássica ode à boemia, parceria com Paulinho da Viola. Mistura de ritmos, letras sagazes e arranjos inteligentes fazem de Raiz uma obra-prima artística (e filosófica) de primeira ordem.
Mas o que teria ocorrido com a reputação de Candeia? Por que, apesar de exprimir uma perspectiva plural através de sua música, foi reconhecido como um aguerrido defensor das “coisas nacionais”, um símbolo de luta e “resistência”, quando seu trabalho como compositor não se propunha exatamente a “resistir”, mas se afirmou através de uma obra singular? Ocorre que a atenção aos ritmos afro-brasileiros renegados pela indústria cultural, folclorizado pelos intelectuais e precarizados pelos aproveitadores de plantão, identificava-se automaticamente com alguns dos discursos disponíveis na época, no caso, o nacionalismo e a valorização da negritude. Naturalmente, Candeia identificava-se com uma perspectiva que se confundia com o nacionalismo sectário de certas vertentes ligadas à academia e ao ambiente cultural, e usava o vocabulário e o aporte teórico disponíveis para justificar seu trabalho. Na opinião de alguns dos importantes intelectuais desta vertente — Sérgio Cabral e José Ramos Tinhorão, por exemplo —, o ato de resistir implicava no ato defensivo da preservação, não no ato positivo da criação. A prática, a música e a agitação cultural promovidas por Candeia assemelhava-se mais à uma proposta de reconstrução, recriação, remodelação do legado, do que na sua preservação. À moda de um tropicalista, Candeia deglutiu as informações que o cercavam e revivificou os ritmos afrobrasileiros, inclusive dispondo à sua maneira da música norte-americana da época. Como Tim Maia, como Tom Zé, como Pedro Sorongo, entre muitos outros.
Assim como, nos idos de 1940, o Terreiro de samba foi transformado em “Escola”, com o objetivo de revestir o samba de uma legitimidade considerada necessária, o pensamento do sambista nos últimos 30 anos agarrou-se a uma perspectiva fundadora, aparentemente radical, porém frágil e irrefletida. Não há nem nunca houve “samba de raiz”. O que ocorreu foi a reprodução impensada de mecanismos ideológicos em favor de sobrevivência e posicionamento social. Mecanismos que buscaram atrelar o samba de Candeia a uma história que o separaria, por exemplo, do movimento Black Rio ou do pagode paulista dos anos 90. Levou tempo até que o samba e o sambista pudessem se imiscuir “pelos salões da sociedade”, onde entrou “sem cerimônia”, como cantou Cartola. Algo semelhante ocorre hoje com o Funk Carioca. A busca por respeitabilidade perante uma sociedade racista e classista se constituiu a partir da fundação de uma “história” mitológica, pois foi preciso abrir o passado nebuloso a golpes de machado, o que nem sempre resulta em bom veredito. Como este não era, definitivamente, o caso de Candeia, vale resgatá-lo em seus 80 anos com as feições de um gênio criativo que não enxergava fronteiras, nacionais, estéticas ou culturais.
[1] Pouco antes, em carta a Carlos Teixeira Martins, presidente da Portela nos idos de 1975, escrevia: “Escola de samba é povo em sua manifestação mais autêntica. Quando se submete a influências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura de nosso povo. Essas influências externas sobre as escolas de samba provêm de pessoas que não estão integradas no dia-a-dia das escolas. Não é mais possível continuarem os integrantes da escola sem acompanhar de perto tudo que se passa na Portela”.
[2] “Veja, eu era muito amigo do Candeia, ia na casa dele todo dia. Quer ver uma coisa engraçada? Quando se fala em raiz, sempre citam o seu nome, não é? Mas você sabe o que o Candeia gostava muito de ouvir? Aquela ‘Take five’, do Dave Brubeck. Ele era maluco por essa música. O cara pode ter um estilo, mas ele é influenciado por tudo que está aí. Você não pode restringir seu universo. (Guinga, em entrevista produzida por Thales Ramos e Emiliano Mello, com foto de Bruno Villas Bôas para o blog “O Samba”. Link: http://osamba.wordpress.com/2007/03/22/41/)
[3] Uma das maiores entusiastas de Candeia e do Quilombo, a jornalista Lena Frias, publicou em 17 de julho de 1976 o artigo “Black Rio – o orgulho (importado) de ser negro no Brasil.” Procurava documentar de forma crítica a penetração dos Bailes Black na Zona Norte e nos subúrbios cariocas, geralmente embalados pelo funk e o soul norte-americanos.