Colapso dos estoques de pescado. Destruição de recifes no fundo do mar. Desperdício de milhares de toneladas de peixe todo ano. Ameaça às populações que vivem da pesca artesanal. Essas são algumas das possíveis consequências da volta da pesca de arrasto autorizada por uma liminar concedida por Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, em dezembro passado.
A decisão do ministro permite a pesca com redes de arrasto numa faixa de 12 milhas náuticas do litoral do Rio Grande do Sul, que cobre uma área total de 13,3 mil km². Essa modalidade de pesca estava proibida desde 2018 por uma lei gaúcha que instituiu medidas para promover a pesca sustentável no estado. Elaborada em discussão com pescadores, pesquisadores e a sociedade civil, a lei foi aprovada por unanimidade.
A liminar beneficia grandes embarcações que fazem a pesca industrial de camarão-vermelho, camarão-ferrinho e outras espécies. A proibição da pesca de arrasto gerou um prejuízo de 300 milhões de reais ao setor pesqueiro, de acordo com levantamento do senador Jorginho Mello, do PL de Santa Catarina. É de lá que vem a maior parte das embarcações que exercem esse tipo de atividade no litoral gaúcho. O senador foi quem levou o PL a contestar a constitucionalidade da lei, alegando que os estados não podem legislar sobre águas que estão sob responsabilidade da União.
Escolhido para relatar a ação direta de inconstitucionalidade no Supremo, o então ministro Celso de Mello negou o pleito do partido e manteve a pesca de arrasto proibida. O PL recorreu, mas Mello se aposentou em outubro, e a decisão coube a seu substituto, o primeiro ministro nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro para o STF. Nunes Marques concedeu a liminar suspendendo a lei gaúcha. O caso ainda será analisado pelos demais ministros, em julgamento sem data prevista.
A decisão de Nunes Marques se alinha com a pauta de Bolsonaro. Em 2019, o presidente disse que pediria a revogação da lei ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB). “Parabéns ao nosso ministro Kassio Nunes por essa feliz liminar”, comemorou Bolsonaro numa live em dezembro. “Um abraço a todos, vamos pescar aí, pessoal!”
A liminar beneficia também os interesses de Jorge Seif Jr., titular da Secretaria de Aquicultura e Pesca, vinculada ao Ministério da Agricultura. A família de Seif é dona de uma grande frota de embarcações de pesca industrial e atua há décadas no setor em Itajaí, polo pesqueiro catarinense. Conhecido como o filho Zero Seis de Bolsonaro, o secretário foi o personagem que mais apareceu nas lives do presidente em 2019 e 2020 (no ano passado, dividiu o posto com o atual ministro do Turismo, Gilson Machado).
Na pesca de arrasto, uma rede é lançada a partir de um barco sobre o fundo do mar e arrastada, às vezes ao longo de horas. Tudo o que está na frente acaba sendo capturado. As redes são feitas para aprisionar camarões, com malhas diminutas, mas acabam pegando muito mais do que os crustáceos. Não bastasse, a pesca de arrasto ainda pode devastar recifes de corais e outras formações oceânicas, além de matar organismos que dependem delas.
“É um tipo de pesca com uma seletividade muito baixa, que não se mostra capaz de separar o que é de interesse comercial daquilo que não é. Por isso, gera um grande volume de descarte, o que acaba comprometendo os estoques de pescado”, diz o oceanógrafo Martin Dias. “É também uma pesca muito pouco eficiente do ponto de vista ambiental.” Dias atua como diretor científico no Brasil da Oceana, uma ONG internacional que se dedica à proteção dos mares.
O cientista é autor de um relatório lançado no ano passado pela Oceana que avalia o impacto da pesca de arrasto no Sul e Sudeste do Brasil. Segundo o documento, entre 2000 e 2018, foram descartadas nada menos que 218 mil toneladas de peixes e outros organismos capturados involuntariamente pelas redes. Isso correspondia a 40% do total pescado (551 mil toneladas). Os números da pescaria de camarões se revelam ainda mais dramáticos. “Para cada quilo de camarão que vemos desembarcar, há até 10 kg de outros organismos que foram descartados no mar”, afirma o oceanógrafo.
Muitos dos animais desprezados são indivíduos jovens de espécies com interesse comercial que deixarão de ser capturados nos próximos anos, o que pode comprometer a sustentabilidade da pesca, alerta Dias. “O impacto que o arrasto gera no ecossistema compromete a capacidade de pescar novamente no ano seguinte.”
Essa modalidade é proibida em países como Japão, Indonésia e Arábia Saudita. Na América do Sul, o Chile veta a atividade em 98% das águas de sua zona econômica exclusiva, e o Peru a aboliu numa faixa de 5 milhas náuticas a partir da costa. Na União Europeia, o arrasto é vedado em águas com profundidade de até 800 metros. Martin Dias alega que não se deve enxergar a proibição como algo exclusivamente restritivo, já que ela costuma levar à recuperação dos estoques pesqueiros. “Quando você protege essas áreas, gera benefícios para a própria pesca.”
Nunes Marques evocou os interesses dos pequenos pescadores locais para justificar sua decisão. “Com a proibição da pesca nas 12 milhas marítimas, [tais profissionais] tiveram suas vidas afetadas e provavelmente perderão sua principal fonte de renda”, escreveu. O argumento do ministro não se sustenta, na avaliação do deputado estadual Zé Nunes (PT-RS), presidente da Frente Parlamentar em Defesa do Setor Pesqueiro da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. “O pescador artesanal é uma vítima dessa modalidade de pesca. Ela é feita principalmente por embarcações ligadas à indústria, com grandes sistemas de arrasto.”
O deputado cita o exemplo da Lagoa dos Patos, onde cerca de 7 mil famílias vivem da pesca artesanal. “A pesca predatória de arrasto na costa prejudica demais a entrada de tainha, camarão, bagre e outras espécies que são muito importantes para esse ecossistema e para os pescadores artesanais que moram em toda a orla da lagoa”, afirma o parlamentar. Ele está por trás de um recurso protocolado junto ao STF que questiona a decisão de Nunes Marques. Procurado pela piauí, o ministro não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
A lei gaúcha que proibiu a pesca de arrasto se baseou num estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). A pesquisa – um trabalho de modelagem computacional baseado em variáveis ecológicas – concluiu que a interrupção da pesca de arrasto levaria, em dois anos, a um aumento de 709% na disponibilidade de pescado. “Com a volta do arrasto, a recuperação fica comprometida”, diz Martin Dias. Além disso, a retomada impede que os pesquisadores avaliem se a proibição surtiu os efeitos desejados. “Perdemos a possibilidade de entender como os recursos pesqueiros iam se comportar no médio prazo”, lamenta o biólogo André Aroeira, que trabalha com políticas de gestão pesqueira.
A decisão de Nunes Marques, no entanto, ainda não motivou uma corrida dos grandes barcos catarinenses ao litoral gaúcho. “Logo que saiu o posicionamento do ministro, algumas embarcações tocaram para cá, mas a liminar ainda não está valendo”, explica Ivan Vasconcellos, presidente da Federação dos Sindicatos da Pesca do Rio Grande do Sul. A atividade só voltará de fato depois que a Secretaria da Pesca aprovar um plano de retomada sustentável do arrasto. O projeto está sendo elaborado com representantes do setor e o governo espera aprová-lo ainda neste mês.
A piauí teve acesso a uma série de áudios de Seif Jr. enviados a um grupo que reúne empresários da pesca de arrasto. Neles, o secretário orienta os pescadores a terem paciência, pois a decisão de Nunes Marques será revertida se a pesca de arrasto for retomada sem um plano de sustentabilidade. “Ou vocês esperam mais trinta dias ou vão se foder para todo o sempre”, afirmou. Em outro trecho, Seif Jr. se mostra ainda mais alinhado aos interlocutores: “Ou a gente se organiza, ou nós vamos perder o que conquistamos. É melhor esperarmos mais uns diazinhos, depois vamos ser orientados [sobre] como tem que fazer com a rede. E pronto, vocês trabalham em paz, sem ninguém acusar vocês de destruir a natureza.”
Em nota, Seif Jr. negou que a retomada do arrasto privilegie os interesses da pesca industrial. “Enquanto secretário nacional, não promovo essa divisão entre quem depende da pesca para sobreviver. Ao contrário, entendemos que há espaço para todos – pequenos, médios e grandes –, que têm igualmente um importante papel social e produtivo.” Ele afirmou ainda que todas as modalidades de pesca podem ser modernizadas e sustentáveis, e que está tomando providências nessa direção. “O que não cabe, sob nenhuma ótica, é um estado se autodeclarar legislador do mar territorial brasileiro – como observado no Rio Grande do Sul –, situação derrubada pelo STF.” Na mesma nota, a secretaria informou que, após a elaboração do plano de sustentabilidade, a pesca de arrasto artesanal e industrial será retomada com regras mais rígidas, como a obrigatoriedade de os pescadores utilizarem dispositivos de escape para a fauna sobressalente que acompanha os pescados.
“Não sabemos ao certo o que esperar desse plano”, diz Martin Dias. O projeto deveria, em tese, ser submetido a comitês de gestão que foram extintos pelo governo e que tinham legitimidade para tratar do assunto. “Parece que a aprovação vai acontecer unicamente dentro da secretaria.”
*Reportagem atualizada às 20h23 para incluir trecho da nota enviada pelo secretário Jorge Seif Jr.