Era 2016, e a Olimpíada do Rio se aproximava. Outra oportunidade de participar do maior evento desportivo do mundo, só dali a quatro anos – ou, como sabemos hoje, cinco. Logo, aquelas classificatórias tinham um peso imensurável na vida do maratonista fluminense Daniel Chaves. Aos 28 anos, ele sonhava em participar dos primeiros Jogos de sua carreira. No entanto, por dezenove segundos, o atleta não se classificou, o que serviu de gota d’água para fazê-lo cair em depressão. O quadro se tornou tão agudo que, três anos atrás, Chaves tentou o suicídio.
De início, ele buscou ajuda nos remédios de tarja preta. “Não foi legal. Tomar aqueles medicamentos me deixava prostrado, por causa dos efeitos colaterais. Então parei de usá-los, mas não conseguia ficar estável”, relembra o corredor, que conheceu o óleo de canabidiol, também chamado de CBD, em 2018, por meio de um amigo que o utilizava para tratar dores resultantes de uma batida de carro. O primeiro que experimentou, bem caseiro, era distribuído por uma associação de Brasília. “Descobrir o CBD foi um avanço na minha vida. A partir daí, não venci 100% a depressão, mas me estabilizei psicologicamente e conquistei o índice necessário para ir à Olimpíada de Tóquio”, conta Chaves. O índice foi alcançado na maratona de Londres, quando ele chegou na 15ª posição, com 2 horas 11 minutos e 10 segundos – o índice mínimo é de 2 horas 11 minutos e 30 segundos. Só três brasileiros vão participar da maratona masculina – prova na qual o Brasil tem uma única medalha, o bronze de Vanderlei Cordeiro de Lima em Atenas 2004.
Aos 33 anos, Chaves é um dos poucos atletas olímpicos brasileiros que falam abertamente sobre o canabidiol, substância derivada da cannabis (a popular maconha), com reconhecidas propriedades medicinais, como as de combater inflamações, dores, náuseas, convulsões, neuropatias e ansiedade. Não que o maratonista seja o único membro da delegação a consumir CBD. Na verdade, o óleo nunca enfrentou grandes barreiras no universo desportivo. Ao contrário, foi recebido com curiosidade por boa parte dos atletas profissionais no mundo. Só que a maioria dos adeptos ainda teme tocar publicamente num assunto que é tabu há várias décadas.
No começo de 2018, a Agência Mundial Antidoping (Wada) deu o primeiro passo para mudar esse cenário: tirou o CBD da lista de substâncias proibidas no esporte. Os outros compostos da cannabis, porém, continuam vetados. Não à toa, Sha’Carri Richardson, velocista norte-americana favorita ao ouro em Tóquio, foi suspensa dos cem metros rasos por testar positivo para o THC, a parte psicoativa da planta, que exibe propriedades terapêuticas similares às do canabidiol, e outras mais, mas também causa a sensação de barato.
O episódio reavivou um debate antigo: por que seguir proibindo o THC se hoje os cientistas já sabem que o consumo da substância não influencia no rendimento dos atletas? Tanto é assim que até a Casa Branca, ainda em cima do muro sobre a legalização da cannabis em todos os Estados Unidos, vem tentando uma reunião com a Wada para discutir o afrouxamento das regras sobre o uso da planta por esportistas.
“Acredito que já na Olimpíada de 2024 o THC será permitido. Tomara, pois vai melhorar a qualidade de vida de muita gente. Eu sou a prova dos benefícios que a cannabis pode trazer quando ministrada na quantidade certa”, afirma Chaves. Com a pandemia, a procura pelo CBD aumentou no Brasil. Muita gente começou a buscá-lo para neutralizar a insônia e outros distúrbios psíquicos trazidos pela crise sanitária. Por causa disso, o maratonista já não conseguia encontrar tão facilmente o produto. O jeito foi apelar ao cigarro de cannabis. Não deu certo. Primeiro, porque o atleta caiu em tentação e extrapolou no consumo de baseados. Depois, porque guardou a erva de maneira errada, o que a deixou mais rica em CBN, uma substância depressora. Era a última coisa de que Chaves precisava naquele momento. O corredor resolveu, então, suspender os cigarros e sair novamente à caça do óleo de canabidiol. Quando não o obtinha, tentava segurar as pontas a seco mesmo. No início de 2021, optou pelo óleo full spectrum, que contém todos os compostos da planta. Se combinados em doses específicas, os princípios ativos da erva se tornam ainda mais potentes em termos medicinais.
“Eu não sabia que o armazenamento inadequado da cannabis facilita a oxidação do THC e o transforma em CBN. Também não sabia nada sobre posologia e modos de uso. Hoje vejo com clareza que o pior problema em relação à cannabis é a ignorância, a falta de conhecimento, de informação”, disse à piauí de um quarto de hotel no Quênia, onde pratica os últimos treinos antes de partir para Tóquio. Na África, o maratonista recebeu a visita de agentes antidopagem. Estava tranquilo, já que, meses antes, deixara o tratamento full spectrum para usar apenas o CBD. “Como a Wada ainda não permite o THC, fico apenas com o canabidiol quando estou às vésperas de competir. É uma pena… O THC não aumenta a minha performance, mas me ajuda a superar dores musculares e a relaxar após os treinamentos exaustivos.”
O tratamento de Chaves é patrocinado pela USA Hemp, empresa que produz desde medicamentos até sais de banho à base de cannabis. Criada em 2014 por uma família de Goiás que se estabeleceu nos Estados Unidos há 25 anos, a companhia reserva 500 mil reais por ano para apoiar atletas e doar produtos a brasileiros de baixa renda que necessitam de tratamento canábico. “A história de superação do Daniel nos inspirou tanto que vamos lançar uma linha com seu nome”, diz a matriarca Corina Silva, CEO da empresa.
Cada vez mais, empreendedores do gênero buscam patrocinar atletas de alto rendimento no Brasil como parte de um plano de marketing, uma vez que a publicidade explícita de produtos de cannabis está proibida no país, assim como o seu plantio (já importação, venda e uso são permitidos desde 2015 por uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a RDC 17/15). Motivar um esportista a relatar sua experiência positiva com a erva pode ser um golaço.
Foi o triatleta amador Fernando Paternostro quem colocou a USA Hemp em contato com Chaves. Ele também fez a ponte entre quase cem outros esportistas e seus patrocinadores. Sócio da Atleta Cannabis com Peu Guimarães, Paternostro oferece toda a assessoria necessária para os interessados em aliar o esporte à erva. No mês retrasado, a empresa patrocinou o reality show de jiu-jitsu The New Star, exibido no YouTube. Treze dos dezesseis participantes tomaram CBD. Dois preferiram não experimentar o novo hype do esporte, e um foi desaconselhado a consumir o óleo por fazer uso de medicamentos controlados.
“Tratar certos problemas com a cannabis deveria ser a primeira opção e não a última”, defende Corina Silva. “Mas isso não significa que a erva irá resolvê-los necessariamente. Não estamos falando de uma panaceia.” A empresária apoia o projeto de lei 399/2015, que prevê a regulamentação da planta no Brasil com propósitos medicinais, embora proíba o autocultivo, a fim de desincentivar o uso recreativo da erva. “Plantar em casa não vai ser suficiente. Ainda haverá a necessidade de produtos testados e certificados para o tratamento de patologias severas”, acredita a CEO. Já aprovado na Câmara, o projeto deve seguir para tramitação no Senado.
Nos Estados Unidos, o uso de compostos da cannabis no contexto esportivo, seja na forma de óleo, cigarro, pastilha, bebida, creme, pomada e mesmo biscoito, vem se normalizando rapidamente. Vários atletas norte-americanos já admitem consumir a substância, como Megan Rapinoe, eleita melhor jogadora de futebol do mundo em 2019, e de sua companheira de equipe, Alex Morgan. De tão encantada com o tema, Morgan até criou a Just Live, marca de CBD feita por e para desportistas.
Mike Tyson também investe milhões em plantações da erva e promove debates sobre o assunto, que é especialmente interessante aos lutadores de boxe e MMA, não raro acometidos por problemas neurológicos devido às recorrentes pancadas na cabeça. Estima-se que pelo menos 30% desses atletas desenvolvam algum tipo de demência ou disfunção psicológica, como depressão e agressividade.
Foi o que aconteceu com o ex-companheiro da empresária Rose Gracie, cujo sobrenome é internacionalmente associado à prática do jiu-jitsu (a família reúne inúmeros campeões e propagadores do esporte). “Vi meu então marido tentar o suicídio na minha frente. Ele lutava MMA na época e sofria de depressão. Quando conheceu a cannabis, passou a usá-la. Foi o que o salvou.”
Depois disso, Gracie fez parceria com uma marca norte-americana de produtos à base da erva e os colocou à venda em várias academias do grupo. A empresária virou uma espécie de consultora canábica dentro da própria família, que não estava muito confortável em relacionar o sobrenome de peso a algo que muitos enxergam como droga. “Fui estudando o assunto e conquistei aos poucos o respeito de meus parentes.” Ela planeja abrir uma ONG para tratar com cannabis os atletas e ex-atletas que desenvolveram patologias decorrentes da luta.
De acordo com Gracie, cerca de 70% dos lutadores nos Estados Unidos já utilizam a erva recreativa ou terapeuticamente. A Comissão Atlética do Estado de Nevada (NSAC), que regulamenta algumas das lutas mais vistas no mundo, se juntou à Comissão de Boxe do Estado da Flórida e, no início de julho, decidiu acabar com as punições aos esportistas por uso de qualquer substância presente na cannabis.
No Brasil, o Sindicato de Atletas de São Paulo (Sapesp) será pioneiro na implementação de pesquisas sobre a planta com o intuito de oferecer maior conforto e apoio aos lutadores. A previsão é de que os estudos comecem ainda este ano. O presidente da instituição, Rinaldo Martorelli, já está testando em si mesmo o potencial da cannabis contra enfermidades como a dor no ombro que carrega desde os anos 1980, quando foi goleiro do Palmeiras. “Eu não poderia oferecer aos atletas algo que não experimentei, né?” Ele toma 1 ml de CBD por dia há um mês. “Sinto que a dor diminuiu e que fiquei um pouco mais calmo.”
Num segundo momento, a ideia é expandir os testes para o time de futebol do próprio sindicato, o Expressão Paulista, formado por jogadores sem contrato que se mantêm em atividade enquanto esperam por um novo convite de trabalho. “Vamos usá-los no estudo justamente porque não dependeremos da aprovação de nenhuma equipe”, afirma o médico Renato Anghinah, professor de neurologia na Universidade de São Paulo e responsável por promover a pesquisa no sindicato.
O especialista aposta que, a partir de 2022, as discussões acerca da cannabis irão avançar no mundo inteiro. “Cerca de 40% dos pacientes que tiveram Covid-19 se queixam de cansaço crônico e déficit de memória prolongados. Há indícios de que o CBD pode ajudar a vencer tais problemas, com poucos efeitos colaterais, como diarreia ou sonolência, mas nada muito intenso. Por isso, a tendência é que se abra um campo de estudos muito grande sobre o uso da erva em síndromes pós-Covid.”
Anghinah também é diretor médico da HempMeds, produtora de insumos canábicos nos Estados Unidos, que exporta seus produtos para o Brasil. O neurologista adverte que a pureza da erva e a dosagem correta dos princípios ativos são fundamentais para o uso seguro do canabidiol e afins, especialmente quando se trata de esportistas preocupados em não cair no antidoping.
“As nossas máquinas já nem estão mais calibradas para dedurar o CBD. Sabe por quê? Porque o canabidiol está liberado”, diz Fernando Solera, coordenador da comissão antidoping da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Ele adverte, porém, que não se deve acondicionar o CBD em vidros transparentes. A incidência da luz transforma o produto, fazendo com que seu usuário acuse a presença de THC na urina. “O óleo ou as pastilhas precisam ser armazenados em frasco âmbar”, esclarece. “E, na hora de consumi-lo, não convém deixá-lo no copo enquanto se atende o telefone, por exemplo. Nesse meio tempo, pode haver alguma alteração na substância original.”
Hoje Chaves se considera um porta-voz dos benefícios da cannabis. Nascido e criado numa comunidade em Petrópolis, na serra fluminense, precisou bater um papo sobre o assunto com a mãe, que até então só relacionava a maconha a uma série de malefícios. “Ela sabe de toda a depressão que enfrentei. Contei que a cannabis me fez muito bem e que estou indo para a Olimpíada também por causa da erva.” Enquanto relatava isso à mãe, o atleta ia tirando os óleos das caixinhas e explicando como funcionam as diferentes versões do produto. “Ela se interessou tanto que está pensando em experimentar o canabidiol.”
A poucos dias de voar para Tóquio, Chaves já planeja a volta. Ele diz que depois dos Jogos, vai comprar um motorhome. “Meu sonho é rodar o mundo disseminando informações sobre a planta enquanto me preparo para a Olimpíada de 2024. Quero levar o CBD às favelas do Rio, por exemplo, e dizer que se trata de um remédio de verdade. As comunidades quase não têm acesso a essas informações, e o Estado, quando pega um morador de lá com alguma quantidade de cannabis, só pensa em punir. Ninguém pergunta se o cara precisa daquilo para ficar estável psicologicamente.”
O maratonista pretende escolher e adaptar o motorhome ainda neste ano para pôr o pé na estrada em 2022. Vai, primeiro, viajar pelo Brasil, promovendo debates em parceria com entusiastas do tema e associações de pacientes que precisam da cannabis. Em 2023, irá até a Patagônia argentina e, de lá, para o Colorado, nos Estados Unidos. Depois, botará o motorhome num barco e navegará rumo à Europa, onde pretende disputar sua segunda e derradeira Olimpíada, a de Paris, em 2024.