Victor Henrique Woitschach, mais conhecido como Ique, anunciou no dia 25 de outubro sua despedida das charges de política. Cartunista há mais de quarenta anos, ele fez fama com as caricaturas de políticos que publicou em vários jornais e revistas, especialmente no Jornal do Brasil, onde trabalhou por quase três décadas. Nos últimos anos, sem emprego fixo, ele vinha divulgando suas charges nas redes sociais. Até que, diante da escalada da crise no Brasil, ele decidiu parar. À piauí, ele explicou os motivos por trás da decisão.
Em depoimento a Luigi Mazza
Eu já estava isolado em casa antes da pandemia. Um isolamento que, em parte, era por motivos econômicos – a crise no mundo da arte é violentíssima há bastante tempo, mesmo antes do Bolsonaro, e para sobreviver fui dando cambalhotas. E fui ficando deprimido. Para me concentrar nos meus trabalhos, me recolhi, deixei de gastar dinheiro indo para a rua. Fui forçado a um retiro sabático, mas passei a ter mais problemas de saúde, porque dentro de casa a cabeça fica girando, sem a reação do mercado. E aí veio a pandemia. Aquela sensação de estar sozinho, isolado, passou a valer para todos. Quando as pessoas se isolaram dentro de casa, em 2020, até brinquei com meus amigos: parecia corrida de Fórmula 1. Eu só vinha tomando volta dos outros carros, mas aí veio esse desastre que obrigou o carro madrinha a entrar na pista e a realinhar todo mundo no ponto de partida.
Hoje moro na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, mas nasci em Campo Grande (MS). Foi lá que comecei minha carreira de chargista. Acho que entrei para a profissão por causa do meu temperamento. Sempre fui contestador, não aceito resposta sem argumentar. Além disso, tive os estímulos certos. Meu pai era um cara à frente do tempo: era caminhoneiro, mas falava quatro idiomas e assinava revistas internacionais para que a gente pudesse ler. Por isso eu quis ser desenhista. Aos 15 anos fui trabalhar no Diário da Serra fazendo tirinhas, e em pouco tempo me arrisquei nas charges políticas, desenhando o prefeito, um vereador da cidade… Passei a me enxergar no Ziraldo e em todo o pessoal do Pasquim, que eram os meus ídolos, os heróis da resistência. Foi assim que me descobri chargista.
Aos 21 anos me mudei para o Rio de Janeiro. Pouco depois de chegar, fui contratado como desenhista pela DeMuZa, a empresa que Dedé, Mussum e Zacarias criaram depois de terem se separado do Renato Aragão. Trabalhei num filme deles, Atrapalhando a Suate. Essa foi minha escola de cinema, de roteiro, de tudo o que eu gostava na vida. Ali eu mergulhei no caldeirão do Asterix. Queria simplesmente beber aquilo e sair mais forte.
Em seguida, cheguei aonde queria chegar: no Jornal do Brasil. Conheci o Lan, meu grande amigo. Quando ele teve problemas de saúde, me indicou para ficar no lugar dele. Ele apareceu com um atestado médico de um ano e me disse assim: “Você tem um ano para se virar.” Com vinte e poucos anos eu me tornei o principal chargista do Jornal do Brasil. Acabei ganhando dois Prêmios Esso, em 1990 e 1991. Sou o único chargista que recebeu esse “Oscar” do jornalismo. Trabalhei no JB durante 26 anos, somando todas as minhas passagens por lá. Fiquei até o fim do jornal impresso, em agosto de 2010.
Quando o Jornal do Brasil acabou de vez, pensei que eu conseguiria voltar ao mercado rapidamente. Mas, infelizmente, naquele momento o jornalismo já vinha se enxugando, largando pedaços vitais pelo caminho. Para que um grande jornal iria querer um chargista contundente, que incomoda, que cria problema? Nós fomos descartados.
(Arraste para a direita para ver mais charges)
Sem ter o respaldo de um Exército, fui para a trincheira sozinho. Nunca vou deixar de ser jornalista, e minha indignação sempre foi maior do que tudo, então segui minha vida como chargista independente. Eu sentia que minha missão era continuar dando aquele recado, chovesse pau, chovesse pedra. Fui fazendo charges e publicando nas redes sociais.
Acontece que as coisas não foram como eu planejava. As redes sociais recebem conteúdo gratuitamente e, em contrapartida, elas deveriam dar visibilidade proporcional à qualidade desse conteúdo. Mas não é isso que elas fazem. Elas ditam as regras e ponto. Acaba que um conteúdo relevante é tratado com menos atenção que uma dancinha de TikTok.
Com isso, acabei me encontrando numa trincheira escura, isolada no campo de batalha. Sem o respaldo da imprensa, fiquei dando tiro sozinho. Só atingia a bolha, criada por um algoritmo. Me deparei com uma invisibilidade impressionante: eu desenhava uma charge de política, mas só as mesmas pessoas viam. O que vou fazer então para aumentar meu público? Vou pagar a rede social para impulsionar a postagem. Aí eles acendem uma lâmpada na sua trincheira, e você fica mais visível por alguns momentos. Depois disso, mais tiros no vazio. É um jogo comercial em que você entra perdendo, sem chances.
No fim das contas, fui percebendo que meu trabalho de certa forma validava essa bandalheira que acontece hoje na política. Eu acabava divulgando esses bandidos por meio das charges, mesmo eles sendo retratados de forma negativa. Era hora de repensar tudo.
A verdade é que, como artista, estou exausto de lutar contra o moinho de vento – e sozinho. Na pandemia, tudo ficou mais sensível para mim. Pessoas que eu tinha como amigos me surpreenderam de maneira assustadora. Deixaram de ser minhas amigas não por causa de política, não porque votaram no Bolsonaro, mas porque passaram a ter um comportamento tão fascista quanto o do presidente. Essas pessoas saíram dos ralos, dos bueiros, mostrando quem são de verdade. Não sou radical, longe disso: sou maleável, sou carinhoso com as pessoas à minha volta. Mas com algumas coisas eu não consigo mais conviver.
Tudo isso foi se somando dentro de mim e me adoecendo. Eu precisava me preservar para sobreviver. Aproveitei a pandemia e me isolei ainda mais dessa galera que não me fazia bem. Fiquei na minha, enquanto a cabeça girava tentando achar uma saída que me permitisse continuar sendo artista. Fiz esculturas, pinturas, desenhos, projetos, amadureci muito como homem, como pai e como companheiro. Minha relação com a família se fortaleceu. Percebi que era hora de largar as charges. Embora eu seja apaixonado por esse trabalho, não estou mais conseguindo sobreviver com ele – nem economicamente, muito menos emocionalmente.
No final de outubro, publiquei uma mensagem de despedida nas minhas redes sociais. Mas eu já vinha fermentando essa ideia há mais tempo. A gota d’água, o momento em que tomei a decisão de abandonar as charges, foi o Sete de Setembro. É inimaginável que o presidente da República use helicóptero e dinheiro público para ir à rua rasgar a Constituição, pedir a prisão de integrantes do STF, incitar violência, e nenhuma instituição reaja à altura. Isso não existe. Ele está fazendo mal a milhões de pessoas, e nada acontece. Só negociatas e fake news. Foi o momento em que constatei que nós estamos à deriva, e que um grande acordão vai enterrar as denúncias e provas contra essa corja.
Ali eu me dei conta de que a charge, hoje, é inócua. Ela não funciona mais como jornalismo, como arte ou como instrumento político para absolutamente nada. Não tem alcance. Eu, na minha pequena trincheira analógica, era invisível. Pensava que estava dando tiros de canhão, mas na verdade só estava perdendo tempo. Me sinto lisonjeado com minha tribo virtual me aplaudindo, mas só isso não me preenche. Já que meu trabalho não está tendo efeito, penso que agora preciso lutar como cidadão. É hora de partir para outra trincheira.
Para mim, o mais importante dessa decisão é que ela deu um freio de arrumação na minha vida, na minha cabeça e na minha história. Por isso foi importante tornar isso público. Se eu não escrevesse uma despedida, volta e meia eu ficaria pensando: “E agora, faço ou não faço uma charge?” Acho que eu nunca sairia do lugar. Então eu precisava trilhar esse caminho de forma que eu não pudesse dar um passo para trás. Tinha que saltar e ponto.
Estou interrompendo um ciclo para começar um novo, que ainda não sei o que é. Mas só de fazer isso já me senti mais leve. No dia em que anunciei minha aposentadoria das charges, tive a primeira noite de sono ininterrupto em dez anos. Não acordei para tomar água, não tive nenhum pesadelo. Acordei no dia seguinte com uma sensação de euforia. Posso estar falando coisas desconexas, mas é que ainda estou meio tonto. É um momento de virada.
Estou finalizando um livro de charges e textos de humor que fiz durante a pandemia. Também tenho dois livros infantis para terminar, além de alguns projetos de escultura. O artista precisa se reinventar, e é isso que pretendo mostrar: minha arma agora é outra. Vou fazer 60 anos, tenho muita energia e estou muito focado. Acho que posso ser muito mais útil usando minha arte em prol da educação, da cultura, da luta contra o racismo. Tenho vontade, por exemplo, de fazer uma série de esculturas homenageando mulheres negras.
O que eu sei é que não há nada mais delicioso do que recomeçar. Foram 44 anos sendo chargista em tempo integral. Você já acorda pensando na charge que vai fazer naquele dia. No Jornal do Brasil, trabalhei sete dias por semana, sem folga, por mais de dez anos seguidos. Eu não tirava nem férias. Então esse stop mental foi importante para mim e para minha família. Eles são os mais afetados, acabam sofrendo tudo o que eu sofro. Às vezes eu ficava impaciente, irritado. Deixei isso tudo para trás.
A pandemia produziu muita tristeza, mas trouxe novos sentimentos e, para mim, a alegria indescritível de ganhar dois netos. Um deles eu ainda nem conheço. De quebra, é claro, nasceu também um avô. Um avô babão, que tem muito amor para dar e receber. Acho que, no fundo, a decisão de largar esse trabalho cresceu dentro de mim quando chegaram meus netos. Nessa hora, tudo mudou. É como se eu dissesse para eles: “Vovô chegou. Vamos pintar o sete, espalhando arte, cor, e muito amor nesse mundo. É isso.”