Os escravos vieram cantando para o Brasil. Fontes históricas do século XVIII indicam que, nos navios negreiros, os capitães encorajavam a dança e a música entre a tripulação de cativos. Era uma forma de reduzir o risco de depressão e morte durante a viagem – ou seja, uma forma de evitar o prejuízo dos mercadores. Ao desembarcar, os africanos continuaram cantando.
Despojados de praticamente todos os pertences, foi na dimensão imaterial dos sons que os escravos puderam buscar algum sentimento de familiaridade e refúgio, numa realidade nova e geralmente hostil. E enquanto puderam cantar, podemos dizer que houve pelo menos a possibilidade de resistência. Pois quando cantamos algo profundamente auto-afirmativo ocorre. Cantar demanda um esforço consciente de concentração e foco, de organização dos sons em padrões consistentes de melodia. É preciso fazer vibrar o corpo inteiro e projetar essas vibrações para além de si, em um espaço acústico em contínua expansão. Tal processo nos posiciona no mundo, no tempo e no espaço – nos realiza de um modo único. Como escreveu Zé Miguel Wisnik, “o cantor apega-se à força do canto, e o cantar faz nascer uma outra voz dentro da voz”. O canto potencia o que há de presença na linguagem; não propriamente seus conteúdos simbólicos, abstratos, mas a substância viva do som, a força do corpo que respira. Ele nos revela e afirma como seres vivos habitando o mundo concreto, enraizados em nosso ser biológico, mas nos estendendo para além dele. É por isso que o canto foi, desde sempre, um meio de arregimentar forças. No caso dos cativos africanos, forças de resistência, que traziam um sentido de ordem, pertencimento e prazer à dilacerante experiência da escravidão. Que refundavam o princípio de unidade e soberania sobre um corpo que não mais pertence ao seu portador.
Sempre que escravos eram impelidos a realizar tarefas repetitivas e tediosas, preferiam fazê-lo ao som de canções, do mesmo modo como faziam seus pais e avós. Foi assim que trouxeram para o Brasil a exuberância musical do continente africano – um continente culturalmente marcado por uma profunda simbiose entre música e vida. “Uma aldeia que não possui música organizada, ou negligencia práticas de canto, percussão, ou dança comunitária, é dita uma aldeia morta”, escreveu o pesquisador John Miller Chernoff. Na África, raras são as ocasiões em que a música não está presente. Um complexo ritual de vida se realiza pela invocação contínua de cantos e danças. Na República do Benin existem canções específicas para quando a criança perde seu primeiro dente de leite. Entre os Hausas da Nigéria, jovens chegam a pagar músicos profissionais para que componham canções que ajudem a cortejar suas amantes ou insultar os seus rivais. Crianças ashanti cantam músicas especiais para não fazer xixi na cama. Remadores hútus, em Ruanda e no Burundi, irão cantar uma canção diferente conforme remam a favor ou contra a correnteza.
Com a vinda dos escravos africanos para o Novo Mundo, a música chegou integrada no próprio corpo. Trouxeram para as Américas uma nova vitalidade rítmica, um transbordamento musical. E os sons preencheram a paisagem com uma presença humana diferente. Espalharam “por nossas vastas solidões uma grande suavidade”, insuflando no país “sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor”, “suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte…”.(Joaquim Nabuco) Na lavoura da cana e nos cafezais, nas plantações de tabaco, colhendo algodão, cozinhando e realizando afazeres domésticos, ninando menino pequeno ou no trabalho de estiva nos portos, festejando os santos ou celebrando os mortos, os escravos cantavam. Na alegria ou na tristeza, de esperança ou de dor, o canto era sempre de júbilo. O júbilo de estar vivo, de possuir uma voz, e de poder cantar.