“Não há algum engano, já que és brasileira?”
Luciana Toledo, fonoaudióloga paulista, até queria que fosse um engano. Por que uma brasileira teria de se inscrever num exame de proficiência linguística aplicado a quem não tem o português como língua materna? A funcionária da Universidade do Minho, que fez a pergunta por e-mail, não via sentido naquilo. Nem a paulista. Mas esse exame era (mais) uma exigência do órgão que poderia emitir a cédula profissional para que Toledo exercesse em Portugal o trabalho de fonoaudióloga (ou terapeuta da fala, como se diz em terras lusitanas).
Ao longo do processo de validação do seu diploma da USP, Toledo já tinha sido avaliada por três professores da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico do Porto. Saiu da experiência com a nítida impressão de que parte da banca estava contrariada por conceder-lhe a equivalência curricular. Tinha chegado lá, no dia da avaliação, sem saber que conteúdo seria cobrado, num processo em que sobravam pedidos de documentos e laudos. Sempre faltava alguma coisa. “O processo minava minha resistência. Um dia eu voltei à universidade e chorei. Mamãe tinha acabado de morrer.” Com dó, a pessoa que a atendeu na universidade telefonou para alguém e esse alguém disse para a pessoa que havia milhares de profissionais na fila, aguardando a cédula de terapeuta da fala.
Depois de passar pelo crivo acadêmico, de apresentar laudos, ela teria de fazer uma prova como se o português não fosse sua língua materna. E não só. Precisava alcançar nota máxima em tudo: compreensão oral, fala, redação e interpretação de textos. Era junho de 2019. Toledo havia se mudado para Portugal em 2016. Provas de eficiência em língua testam um profundo conhecimento de gramática. Áudios não são repetidos. Se a gente perde o que a outra pessoa diz no meio de uma conversa numa conversa com alguém que fala com o mesmo sotaque, imagina em outro sotaque?
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Depois de morar quatro anos em Portugal, conquistei uma certa fluência mas, no início, precisei de intérpretes. Primeiro, pela dificuldade com o sotaque, depois por perder referências usadas em certas conversas, algo normal quando se é estrangeiro. Então veio o pior momento: quando você jura ter compreendido, e está enganada.
“Como eu ia saber que maçanita é vaso sanitário?” comentei certa vez em casa, entre indignada e surpresa com a nova palavra.
Minha filha mais velha veio em meu socorro.
“Mãe, estavam falando de uma sa-ni-ta!”
Eu não acertaria tudo.
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Antes de chegar a Portugal, Luciana Toledo atendia num consultório concorrido no bairro de Perdizes, em São Paulo. Fez isso durante 23 anos. Nunca faltaram pacientes. Até a crise que abalou o Brasil entre 2014 e 2016. Em seis meses, ela perdeu sete pacientes. Enquanto isso, Márcia, sua única irmã, preparava a mudança para Portugal levando junto o único sobrinho e a mãe, que passaria temporadas entre os dois países. “Minha família é um ovo”, resume Toledo. A tristeza tomava conta. Antes que o ovo fosse embora, Alexandre, o marido, filho de uma portuguesa, fez a proposta que mudaria o destino dos dois: vamos também? Um casal sem filhos tem mais liberdade, ele disse, se não desse certo, voltariam. Dona de um rico currículo de especializações com cinco pós-graduações, ela pensou “pode dar certo”.
Mas, para trabalhar, ela precisava do registro, e, para o registro, precisava da prova. Conseguiu enfim, em 2019, fazer o exame, que achou bem difícil. “O ritmo era muito acelerado, uma voz de homem grave que dificultava a compreensão. Tive que focar em palavras-chave para tentar entender o contexto”, diz. Mas ela entendeu palavras-chave, contexto, acertando tudo. Quando veio o resultado, nenhum erro. Toledo enviou tudo para a entidade responsável pela emissão do registro profissional das terapeutas da fala em Portugal, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Contratou advogado. Ele redigiu uma ação administrativa impecável. E nada acontecia.
Quando Luciana Toledo me concedeu a primeira entrevista, no início de 2021, ela já havia remetido os resultados quase dois anos antes. Tinha perdido as esperanças. “Jamais atuaria em distúrbio articulatório, quando alguém tem língua presa, por exemplo, porque o meu sotaque, que não é o padrão aqui, geraria distorções. Mas a Fonoaudiologia é um campo vasto. Tratamos deglutição, problemas vocais como calos e fendas…”, explicou, na ocasião.
Menos de uma semana depois da nossa conversa, ela me enviou uma mensagem. O registro tinha sido deferido. Só faltava pagar a taxa. “Estou em choque ainda!!!!”, escreveu.
Seu feito cheio de exclamações parecia inédito porque, entre outros motivos, desde então nenhuma brasileira conseguiria mais se inscrever em um exame como aquele. O procedimento era tão irregular que Luiza Braga, de 38 anos, recebeu o dinheiro de volta depois de ter feito a mesma prova. “A universidade me informou que havia um engano”, conta Braga. Só dois anos depois, em novembro de 2022, ela seria chamada para uma nova prova de português, aplicada pela ACSS, sabendo que todas as suas colegas brasileiras vêm sendo reprovadas por não dominarem o português europeu. O resultado dela ainda não saiu.
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Ficou conhecido como O Estatuto do Indigenato um conjunto de regras impostas por Portugal às colônias africanas ainda na primeira metade do século passado. Uma das condições para que os locais ascendessem “à condição de cidadãos” e tivessem mais direitos era o conhecimento da língua. Há mais exemplos pinçados de documentos históricos no capítulo “Lusofonia revisitada e a crítica da celebração”, de Cristine Gorski Severo e Alexandre Cohn Silveira da publicação Línguas em português (Universidade do Porto Press). Os autores argumentam que a língua sempre esteve vinculada “a uma série de normas comportamentais e culturais, em sintonia com a política lusófona”, criando hierarquias sociolinguísticas que “ainda são reforçadas e naturalizadas em políticas linguísticas contemporâneas”.
O estatuto da ACSS que vem negando às brasileiras a condição de trabalharem como terapeutas da fala não está escrito. “Eles informam que devemos solicitar a cédula por via administrativa, mas é mentira. Ninguém conseguiu. A gente gasta dinheiro e tempo à toa. A minha prova oral foi uma entrevista com duas terapeutas que me perguntaram basicamente o que eu fazia em Portugal, quanto tempo pretendia ficar, se já havia trabalhado no ramo e se conhecia os protocolos”, conta Dharana Rodrigues, de 38 anos, que criou um grupo de WhatsApp com pelo menos cinquenta fonoaudiólogas na mesma situação depois que ela, Juliana, Viviane, Thaís, Flávia, Michele, Lígia e muitas outras foram reprovadas na entrevista e no teste escrito.
A justificativa, segundo a resposta da ACSS para as candidatas, é que as diferenças do português falado em Portugal e no Brasil impedem uma “correta, adequada e fidedigna avaliação” do paciente, colocando em risco sua vida. Se a lógica é essa, como fica a comunidade brasileira que vive em Portugal? E quanto às variações do português falado em Portugal continental e ilhas? Procurada, a ACSS não respondeu à reportagem. Há evidências científicas justificando a decisão de barrar as brasileiras? A reportagem tentou esclarecer a dúvida com a Sociedade Portuguesa de Terapia da Fala (SPTF), uma entidade científica. Paula Correia, presidente da SPTF, repetiu o argumento da ACSS. Considera “imprescindível a necessidade do domínio da língua materna dos falantes da comunidade, neste caso, o português europeu”, porque as diferenças entre as duas variantes da mesma língua “têm grande impacto ao nível da comunicação”.
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José Saramago, um dos principais escritores portugueses de todos os tempos, dizia que havia várias línguas em português. Ao viver em Portugal, aprendi a amar a diferença entre “as línguas portuguesas” e deixei de implicar com o “mais pequeno” que os portugueses falam o tempo todo, embora eu prefira “menor” por ser uma palavra mais pequena. Em muitos casos, o português europeu recorre a palavras compridas, como o-fe-re-cer, enquanto eu prefiro as curtas, como dar. O português europeu usa palavras que soam mais poéticas às vezes. Viajar na carruagem do comboio não parece o mesmo que entrar no vagão de trem, sem mencionar o lume da lareira que, aposto, é menos quente do que fogo. Também me apraz escrever apraz, porque penso num agradar cheio de paz, assim como apetecer, um querer mais calmo que me apetece usar. Os portugueses não jogam coisas no lixo como nós. Deitam fora como quem se desvencilha dos restos com alguma relutância. Há usos curiosos que podem gerar confusão mas que não vão matar ninguém. Em Portugal, se alguém te perguntar “sempre é possível chegar na hora?” de algum evento, você vai pensar “claro, basta sair com antecedência”, mas o que a pessoa quer saber é se ainda dá tempo de chegar na hora.
Uma das primeiras coisas que meu bom vizinho de Braga, Jorge Alberto Silva, me disse, quando cheguei em Portugal em 2017, foi “não te preocupes em trocar palavras”, porque ele percebia perfeitamente o que eu e minha família dizíamos. Ainda que a recíproca não valesse o tempo todo, relaxei. Jorge e sua mulher, Prazeres, cresceram assistindo a novelas brasileiras e ouvindo versões brasileiras do estúdio Herbert Richers. A dublagem (ou dobragem) chegou tarde em Portugal.
Talvez nenhuma onda migratória do Brasil para Portugal tenha sido tão intensa quanto a cultural. A superioridade técnica das telenovelas brasileiras foi, por muito tempo, uma referência para os profissionais da área. A dramaturgia levou para além-mar nossa oralidade, em mais de duzentas produções transmitidas entre 1977 e 2000. As novelas brasileiras chegavam a mobilizar 92% dos televisores ligados em Portugal, muitos em lugares públicos, já que tevê em casa era um luxo inacessível para muitos entre o fim dos anos 1970 e início dos 1980. O último capítulo de Gabriela, Cravo e Canela, chegou a suspender os trabalhos legislativos. A cultura de massa, no entanto, nunca foi bem-vista pelas classes dominantes. Não seria diferente em Portugal. A elite portuguesa estava mais interessada em identificar-se com valores europeus, e já reservava aos imigrantes um “olhar com certo desdém, esquecidos da sua emigração”, escreveu Isabel Ferin Cunha, uma das principais estudiosas do país sobre imprensa, rádio e tevê. Gabriela, segundo Ferin Cunha, explica o surgimento de “uma nova sociedade e estilos de vida, bem como uma outra imagem da mulher”.
O escritor português Valter Hugo Mãe, em seu livro Contra mim, oferece-nos uma descrição menos acadêmica daquele tempo, evocando memórias de sua infância numa pequena aldeia do Norte. “De súbito e certo modo, a 17 de maio de 1977, Sónia Braga (assim mesmo, com acento agudo) inventou a mulher. Aquelas pessoas que víamos com alguma suspeição, admirando sem saber como seriam debaixo das roupas severas, eram afinal de sinuosas curvas, os peitos livres, o lado farto das mãos. Comentava-se por toda a parte acerca do perigo que chegava do Brasil.”
O perigo estarreceu boa parte do país e não só o menino Valter, mas encontrou ressonância numa classe média emergente que ansiava por liberdade enquanto rompia com os valores conservadores de quase meio século da ditadura salazarista (derrubada em 1974). A ficção produzida no Brasil preencheu essa expectativa. Levou para dentro da casa dos portugueses debates sobre corrupção e política, conflitos geracionais, famílias patriarcais e a emancipação da mulher com um estoque de imagens sensuais num país controlado “pela moral católica conservadora”, explicou Isabel Ferin Cunha.
Na virada do milênio, as novelas ficaram mais ousadas. Em meio a essa avalanche de cenas de sexo, Portugal recebia uma nova leva de brasileiros de origem mais humilde que viam o país como porta de entrada para a comunidade europeia, muito mais próspera. A presença de brasileiros ilegais tornou-se tão ostensiva que virou questão de Estado. Em julho de 2003, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentou um acordo com o governo português para acelerar a legalização de pelo menos 30 mil imigrantes, um processo que não avançou muita coisa. Brasileiros já eram vistos como problema pela sociedade portuguesa.
Foi bem nessa época que brasileiras se tornariam pivôs de um escândalo internacional numa das regiões mais isoladas de Portugal. Em Bragança, pequena cidade em Trás-os-Montes, a vida imitaria a ficção quando quatro mulheres entregaram um abaixo-assinado às autoridades pedindo providências contra prostitutas brasileiras. A pressão deu certo. Uma rede mafiosa foi identificada, casas da noite, fechadas, e seis pessoas condenadas. Uma fugiu. Uma das denunciantes declarou à tevê que “um casamento era destruído por semana” pelas brasileiras que, segundo ela, usavam drogas, bebidas e até macumba para seduzir os homens. “Muitos querem parar de ir, mas não conseguem”, dizia a mulher, convencida da inocência do marido.
O caso Bragança esfriava quando, meses depois, ganhou a capa da revista Time. Tráfico de mulheres, uma aldeia pacata invadida por prostitutas brasileiras, jornalistas e curiosos, uma sociedade polarizada entre defensores das mães de Bragança e das trabalhadoras do sexo compunham o argumento dramático da continuação de uma novela real, agora sob o título Europe’s New Red Light District – How the global sex trade turned a small town upside down.
O cientista social José Machado Pais enxergou no evento um campo inédito de estudos sobre a sexualidade dos portugueses. Dedicou-se por cinco anos à pesquisa. Seu livro Enredos sexuais, tradição e mudança – As mães, os Zecas e as Sedutoras de Além-Mar resgata o episódio que incendiou debates pró e contra brasileiras, pró e contra “as mães de Bragança” que também sofreram seu quinhão de ofensas. Ninguém saiu impune, nem a Time, acusada de uma teoria conspiratória envolvendo americanos. Contra as brasileiras, surgiu também quem defendesse o mercado nacional de prostituição para as portuguesas, mas a favor houve quem argumentasse que Portugal já importava tanto do Brasil – novela, música, jogadores de futebol – que poderia seguir importando o resto.
Assim como as brasileiras de Bragança caíram no radar de gente que já estava incomodada com a segunda onda migratória de brasileiros para Portugal (a primeira foi a dos anos 1980), as fonoaudiólogas também integram um contexto maior: a terceira onda migratória de brasileiros, que só faz crescer desde 2017. Os brasileiros são a maior comunidade estrangeira em Portugal. Os dados oficiais de 2022 indicam a presença de mais de 230 mil, número bem subestimado, pois muitos têm dupla cidadania e circulam com identidade europeia.
Parte da comunidade brasileira só conseguiu visto de residência em Portugal porque encontrou emprego – grupo que cresce ano após ano. O caso das fonoaudiólogas é diferente. Elas estão legalizadas, muitas inclusive com cidadania portuguesa, mas não possuem autorização para exercer suas profissiões. Sem a cédula profissional, não podem emitir laudos, assinar nada, condenadas à clandestinidade profissional. Mas elas estão inteiras nesse fenômeno recente, que é a nova leva de imigrantes do Brasil, os “novos brasileiros”. Eles têm atraído a atenção da mídia, mais interessada em distingui-los dos imigrantes do passado e destacando quem chega com dinheiro, diploma ou experiência. Às vezes os três. Junte-se a isso o interesse crescente de ingleses e americanos pelos encantos de Portugal, vendido por campanhas de marketing como o paraíso da aposentadoria, e chega-se a um mercado imobiliário aquecido demais para a realidade dos portugueses (não é à toa que o governo português recém-anunciou medidas para frear a tendência).
O psicólogo da Universidade de Harvard Gordon Allport, famoso pelo livro A Natureza do Preconceito, percebeu, ao estudar sociedades impactadas pela Segunda Guerra, como a discriminação se multiplica quando recursos valiosos se tornam escassos. Portugal é um dos países mais desiguais da União Europeia, com uma das menores rendas. A simples ideia de que gente de fora “veio concorrer comigo ou tomar o que é meu” está por trás de movimentos xenófobos mundo afora. Em Portugal não seria (muito) diferente.
Antes dessa terceira onda imigratória, as fonos brasileiras não encontravam obstáculos. A língua não parecia pôr ninguém em risco. No grupo de WhatsApp das fonoaudiólogas, há pelo menos três que chegaram antes da nova onda migratória e conseguiram trabalhar. Uma goiana de 48 anos, em Portugal desde 2008, me contou como conseguiu sua cédula em 2015, mas não quis aparecer na reportagem. “Fiz o pedido, paguei 60 euros. Eu ligava toda semana para saber quando ficaria pronto. Um dia, a senhora, que já me conhecia, me telefonou dizendo que estava concluído. Não tenho do que me queixar. Levei sessenta dias.”
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O escritor irlandês Oscar Wilde cunhou uma frase que se tornou um clássico da implicância entre países que falam inglês: “Nós e os americanos temos muito em comum, mas sempre haverá a barreira da língua.” Parece falar de Brasil e Portugal.
O acordo ortográfico da língua portuguesa foi um esforço para reduzir uma parte dessa barreira. Assinado em 1990 por Portugal, Brasil, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, começou a valer em 2009, mas tornou-se obrigatório em 2015, uniformizando a ortografia de 98% das palavras usadas. O acordo admitiu a coexistência de grafias distintas de algumas palavras (como expectativa, no Brasil, e expetativa em Portugal), suprimiu mudas nos dois países – como óptimo, acção e exacto – e ajudou a reduzir os erros ortográficos no ensino de português em Portugal, porque os miúdos, digo, as crianças, já não as escreviam, contaram-me professores do idioma. A mudança afetou cerca de 600 palavras, pouco num universo de 110 mil, porém de uso frequente.
Alvo de protestos dos dois lados do oceano, o acordo foi tachado de “golpe político” e “atentado contra a soberania nacional” em Portugal. Intelectuais de referência protestam até hoje. “Nunca entendi porque tanta celeuma”, declarou certa vez o escritor angolano José Eduardo Agualusa. As editoras portuguesas, enfatizou então, são as principais beneficiárias, porque o acordo “facilita a entrada de livros portugueses no imenso mercado brasileiro”.
Professor há 39 anos, Alberto Matos ensina português para estrangeiros numa escola pública de Braga, Norte de Portugal, onde estudam crianças de mais de cinquenta nacionalidades. Ele vê com naturalidade as mudanças no idioma. “Já não ensinamos a conjugação do vós para os estrangeiros, porque fica mais simples usar o vocês. As gerações mais novas também não usam mais vós”, diz o professor, que ajudou Luciana a se preparar e descobriu que nem ele tiraria dez em tudo. “Fiz uma parte do teste, fui considerado usuário avançado e não tão fluente na escuta,” contou o homem nascido e criado em Portugal.
É bom lembrar que o Brasil também bateu o pé ante acordos ortográficos anteriores, boicotando tentativas de unificar o idioma. Portugal implementou uma reforma ortográfica em 1911 da qual o Brasil não participou. Depois veio o primeiro acordo (1931) que não convenceu, seguido de outro que também malogrou (1943) e uma convenção (1945) que não produziu efeito algum, graças ao Brasil.
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As fonoaudiólogas se dizem vítimas de preconceito linguístico, tese com a qual muitos portugueses concordam. “Se nossa língua tem projeção global, é graças ao Brasil, e não a Portugal, mas Portugal nunca reconheceu isso”, disse o professor Alberto Matos. “O caso de cidadãos brasileiros discriminados por razões linguísticas em Portugal é recorrente, e esse preconceito tenderá, acredito, a intensificar-se com a chegada de mais cidadãos brasileiros com formação superior”, escreveu Margarita Correia em sua coluna no Diário de Notícias, em novembro de 2020, adivinhando o futuro. Sua opinião deflagrou um intenso debate. Comentaristas trataram de desfiar na internet uma certa mágoa recíproca, com uns e outros defendendo que línguas evoluem, uns dizendo que portugueses são discriminados no Brasil desde sempre, e outros afirmando que brasileiro fala errado o tempo todo. A reportagem enviou e-mails para Fernanda Vidal, que tem sido o contato das profissionais brasileiras no núcleo de Certificação e Qualificação na ACSS, mas não obteve retorno.
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Luciana Toledo não sabia, mas, naquele janeiro de 2021, outra brasileira também recebeu a cédula profissional, depois de trilhar uma trajetória muito parecida com a dela. Hoje, a carioca Raquel Oliveira atende crianças brasileiras, quase todas autistas, em Leiria, região central do país. Raquel também integra uma equipa de saúde especializada em intervenção precoce na infância, identificando crianças em risco de terem o desenvolvimento prejudicado por atraso na fala e síndromes, e definindo a estratégia para as famílias e as terapeutas que assumirão os casos. É um serviço público gratuito que tem levado Raquel – uma profissional de 51 anos e 18 de prática no Brasil – para dentro das casas portuguesas, onde é recebida com espanto e acolhimento na mesma medida, conta.
Dia desses, enquanto avaliava um menino de 3 anos com autismo, Raquel o ouviu dizer cachorro, em vez de cão, como fazem os portugueses. A mãe explicou então que o filho começara a falar havia pouco tempo graças aos vídeos educativos do tio André, um educador brasileiro que mantém um canal no YouTube com mais de 250 mil inscritos. Raquel sugeriu que um adulto ficasse por perto para o miúdo saber que em Portugal se diz chávena, e não xícara, por exemplo. A terapeuta portuguesa do menino já havia chamado a atenção da família para o “problema” de deixá-lo aprender brasileiro, relatou a mãe, mas a família estava tão feliz em ver o miúdo falar pela primeira vez que o português, brasileiro ou lusitano, não fazia a menor diferença.