Algumas músicas causam tal impacto na vida da gente que se tornam um marco. Talvez pela capacidade que têm de expressar, de modo poético, o espírito de uma época, ou o alumbramento de um instante, ou alguma verdade que estava ali, dispersa. Quase como uma magia, muitas canções são, assim, a expressão de uma infinidade de sentimentos, emoções, impulsos, pensamentos, uma iluminação interior, ordem sutil no caos que se move dentro da gente.
José Carlos Capinan, quando compôs Movimento dos barcos, deu voz a uma geração, ao estado de espírito de uma época, que assumia a mudança e a transformação como filosofa de vida. E era a minha geração. Ansiávamos por mudanças na estrutura familiar, na sociedade, no modo de ser e de estar no mundo. Queríamos abrir a boca e falar daquilo que se passava conosco, quebrar a casca da aparência que estava sufocando a exuberância, da nossa juventude. Queríamos um mundo mais fraterno, mais justo. Tanta miséria, tanta desigualdade, tanta opressão. Haveria de ter um outro modo de mundo e de ser da gente… Anos 70.
Fizemos dos amigos nossa família. Misturamos política e existencialismo e vivemos todos os conflitos que disso resultou. Queríamos abraçar o movimento, passar junto com o tempo – as coisas passando eu quero / passar com elas, eu quero / e não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro / e a marca de um abraço no seu corpo não. Transitoriedade, transformação, impermanência, descoberta de si, do outro, do mundo, mudança de costumes. Antropofagicamente, nos apropriamos do lema da revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade, sob um outro ângulo, sob o sol dos trópicos, terra brasilis. Não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não / lamentando o eterno movimento / movimento dos barcos, movimento.
Como cantei e toquei esta canção, incontáveis vezes. Por um tempo foi minha voz, a voz do meu ser, foi o meu hino, ou melhor, foi meu mantra. Chegava em casa, pegava o violão e ficava cantando. Uma oração. E também como a escutei… Bethânia, Macalé. Jards Macalé e Capinan. Nosso poeta Capinan e sua sabedoria. E eu também não queria ficar no porto chorando, não, lamentando o eterno movimento, movimento dos barcos, movimento. Queria celebrar a passagem dos dias e das horas, as coisas passando, eu quero / passar com elas, eu quero:
Movimento dos barcos, Jards Macalé e Capinan cantado por Maria Bethânia
A poética de Capinan é multifacetada, tanto na temática quanto na forma. Há canções com temas regionais, que falam do Nordeste, como Ponteio, Viola Fora de Moda, com influência da literatura de cordel – Disso eu me encarrego / Moda de viola / Não dá luz a cego, ah, ah, e outras de um lirismo puro de estórias encantadas que lembram as brincadeiras da infância no sertão, como Cirandeiro – Ó cirandeiro, ó cirandeiro, ó, a pedra do seu anel / brilha mais do que o sol.
Sobre isto, Capinan falou a Torquato Neto numa entrevista (1967):
Torquato: “Sente-se forte influência temática e formal de literatura de cordel em suas letras. Por quê?”
Capinan: “Na linguagem, na estrutura e também na escolha de personagens como em Viramundo, há, realmente, essa influência. A literatura de cordel, as rodas infantis, aboios, sambas de roda, etc… fazem parte de minha infância – e eu conservo ainda, com emoção, muitas das coisas que aprendi e me comoveram nos primeiros momentos.”
Outras canções são de profunda reflexão sobre a vida, o amor, a morte. Letras de uma beleza estranha e estonteante, como a valsa Vinhos finos… cristais, com ecos baudelarianos – o amor doente entre os dentes da saudade, e chão, caixão, escada / apenas um jogo de palavras entre tudo e nada / entre os dentes podres da canção; Orgulho com sua poesia surpreendentemente moderna e barroca ao mesmo tempo – não se usam mais os pés dourados / nem as promessas de um amor / ornamentado e vazio e que termina com uma das mais belas frases sobre a natureza do tempo – O tempo é um pássaro / de natureza vaga, e que me fez lembrar Santo Agostinho, nas Confissões: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”. O tempo é um pássaro de natureza vaga: explicar não explicando, assim faz Capinan, e assim chegamos mais perto do mistério do tempo, tocamos a sua margem invisível, sedutora e volátil. Nos atreveríamos a mergulhar?
Modade Viola – Edu Lobo e Capinan , com Edu Lobo
Vinhos finos, cristais… Paulinho da Viola, Capinan, com Paulinho da Viola
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Que letras deslumbrantes! Eu conhecia estas canções sem me dar conta de que quem falava através delas era Capinan. Aos poucos fui reconhecendo a face do poeta, que já estava ali, revelada e oculta, naqueles versos. O grande poeta e letrista José Carlos Capinan nasceu em Esplanada, na Bahia, em 19 de fevereiro de 1941. Em 1960 foi para Salvador, onde fez Faculdade de Direito e curso de Teatro no Centro Popular de Cultura. Em 1963 escreveu a peça “Bumba meu boi”, musicada por Tom Zé. Em 64, com o golpe militar, precisou deixar Salvador e veio pra São Paulo. Aqui conheceu Geraldo Vandré, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, novos amigos que o apresentaram para o meio musical paulistano. Na sequência, conheceu Edu Lobo, que viria a ser um de seus grandes parceiros, ao lado de Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Jards Macalé, Caetano Veloso e outros. Capinan participou ativamente dos movimentos culturais que agitavam o Brasil na década de 60, como o Centro Popular de Cultura (CPC), a Feira de Música, com Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Torquato Neto e Gilberto Gil; e o Tropicalismo, com Caetano, Gil, Torquato, Tom Zé, Mutantes, Nara leão, Rogério Duarte, Rogério Duprat e Gal Costa. Em 1965 compôs em parceria com Caetano a trilha sonora do filme Viramundo, de Geraldo Sarno. Na música título seu parceiro é o Gilberto Gil:
Trecho do filme Viramundo de Geraldo Sarno
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Entrevista com Capinan
1965: foi também neste ano que Capinan teve sua primeira música gravada, Ladainha, em parceria com Gil. No ano seguinte, concorreu no II Festival de Música Popular da Record com Canção para Maria em parceria com Paulinho da Viola e interpretada por Jair Rodrigues
Em 1967, Ponteio, composição sua e de Edu Lobo, seria a vencedora de um dos mais agitados e importantes festivais de música do país, o III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Dentre as músicas que concorriam estavam Alegria, Alegria (Caetano Veloso), Domingo no Parque (Gilberto Gil), Roda–viva (Chico Buarque), Eu e a brisa (Jonhy Alf), A estrada e o violeiro (Sidney Miller). Foi neste festival que Sérgio Ricardo perdeu o controle diante de uma platéia ensandecida que não parava de vaiar e não o deixava cantar Beto bom de bola e quebrou o violão, arremessando-o ao público. Ponteio foi interpretada por Marília Medalha, Edu Lobo, grupo vocal Momento Quatro e o Quarteto Novo, que era formado por Hermeto Paschoal, Heraldo do Monte, Airto Moreira e Théo de Barros.
Uma noite em 67, documentário musical de Renato Terra e Ricardo Calil
Uma noite em 67
Zuza Homem de Mello, em A era dos festivais, faz uma análise da composição de Capinan e Edu Lobo: “dividida em três segmentos, A-A-B-C-C, sendo B (Parado no meio do mundo…) menos um arremate à primeira parte – A – do que um preparatório para o refrão – C (Quem me dera agora…) –,o qual é muito bem explorado à medida que a música avança. A letra de Capinan, de raiz sertaneja, tinha uma interação política bem ao gosto da platéia mais politizada, com alusões certeiras ao desejo de mudança: Certo dia que sei por inteiro/ eu espero, não vá demorar/ este dia estou certo que vem/ digo logo o que vim pra buscar(…) vou ver o tempo mudado/ e um novo lugar pra cantar. Era o bordão contra a ditadura militar, o mesmo que havia em Arrastão e em Disparada e que fazia a platéia inflamar-se. Ao mesmo tempo, o arranjo, magnificamente elaborado, teria o destino de empolgar o mais indiferente dos ouvintes. Após um introdução de viola e violão com percussão e flauta, Edu e Marília cantam em uníssono a canção completa, sendo que na terceira parte do refrão, Théo troca o violão pelo contrabaixo, dando mais peso ao acompanhamento. Na primeira repetição da música, com outra letra, a flauta de Hermeto faz um comentário que lembra uma banda de pífanos, iniciando num crescendo com outros componentes: a entrada do grupo vocal no refrão, os ‘ponteio!’ ecoando nas brechas e um longo ‘ponteá’ harmonizado que substitui a introdução. Na terceira repetição, a contagiante percussão de Airto é ainda mais ressaltada, o quarteto vocal faz uma cama para o casal de solistas e entram palmas no refrão que após um ‘láá la-iáá’ é repetido modulado, com mais palmas no refrão e escalas bem nordestinas da viola de Heraldo. O ritmo do baião é acelerado até a culminante frase final Quem me dera agora/ eu tivesse a viola pra cantar”.
Também neste ano, Maria Bethânia gravou Cirandeiro e Edu Lobo, Corrida de jangada, gravada depois por Elis Regina, ambas parcerias de Capinan com Edu Lobo. Gilberto Gil, no LP Louvação, grava duas parcerias, Água de meninos e Viramundo
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Em 1968, no LP Caetano Veloso grava Clarice (Caetano Veloso, Capinan) e Soy loco por ti America (Gilberto Gil, Capinan), sendo esta última escrita pouco depois da morte do guerrilheiro Che Guevara.
Clarice, Caetano e Capinan, com Caetano
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Neste mesmo ano, Capinan participa da gravação do antológico LP manifesto da Tropicália, Panis et circensis, com Miserere Nobis ( Gilberto Gil, Capinan)
Miserere nobis, com Gilberto Gil e Mutantes. Arranjo: Rogério Duprat
Também em 1968 Capinan, em parceria com Jards Macalé, participou do IV Festival Internacional da Canção (TV Globo) com a irreverente Gotham City. A platéia conservadora se escandalizou. O jornalista Carlos Calado conta, em seu livro Tropicália, a história de uma revolução musical: “ Na melhor tradição tropicalista, usando uma longa bata colorida, para cantar a provocadora Gotham City, que fez em parceria com Capinan, Macalé já entrou no palco do Maracanãzinho aos gritos: ‘Cuidado! Há um morcego na porta principal! Cuidado! Há um absimo na porta principal!’”
O grande encontro de Capinan e Jards Macalé será celebrado na gravação do antológico LP Jards Macalé, 1972, disco que foi cultuado e escutado à exaustão na época da ditadura militar por uma geração que se sentia oprimida e sufocada num mundo sem horizontes, em busca de alguma saída. O disco é de tom desesperado, desiludido, um diário sentimental e existencial da geração dos anos 70 e suas ilusões perdidas. Em minha casa, na Rua Cardeal Arcoverde – região em que moravam muitos artistas, estudantes e intelectuais, a maioria ligada à Universidade São Paulo, lugar que chamávamos de nosso Quartier Latin – ouvimos muito este disco, eu e meus amigos Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Eu cantava Movimento dos barcos, Meu amor é um tigre de papel.
Farinha do desprezo
78 rotações
Meu amor é um tigre de papel
Movimento dos barcos
Deslumbrantes canções nasceram nos anos 70 e 80 dos encontros de Capinan e Paulinho da Viola. Em 1971 Paulinho da Viola grava Vinhos finos… cristais e O acaso não tem pressa. Em 1972, no LP A dança da solidão, mais duas jóias desta parceria: Coração Imprudente e Orgulho. Em 1978 Sofrer e em 1981 Viver sem amor. Em 1983, no LP Prisma Luminoso, Paulinho da Viola grava mais duas parcerias: Mais que a lei da gravidade e Prisma Luminoso. As parcerias de Capinan com Paulinho são canções meditativas, de profunda reflexão sobre a vida, o amor, a dor, a morte.
Clique aqui para ouvir O acaso não tem pressa
Prisma Luminoso
Para terminar este mergulho na obra de Capinan, quero apontar a presença marcante em sua poética do elemento água e toda sua simbologia. Água do mar, água do rio, Yemanjá e Oxum, lágrima e origem da vida, lição de constante transformação, imagem líquida do tempo, heraclitinana, são trechos que percorrem o corpo diáfano das letras das canções de Capinan e, dialeticamente, passam e permanecem em nossa vida.