O produtor rural Douglas Fanchin Taques Fonseca não tem medo de destilar platitudes em tons conservadores. Numa tarde fria e chuvosa de uma sexta-feira de outubro, quando me recebeu em seu escritório, ele enfatizou, por exemplo, que o Brasil não passou por uma ditadura militar. “O país nunca teve isso”, disse.
Fonseca, de 69 anos, é presidente da Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Ponta Grossa, cidade do interior do Paraná que vem pautando discussões públicas inflamadas. No início de outubro, a associação mandou publicar – num jornal da cidade – uma carta de apoio ao general Antonio de Hamilton Mourão que falou na possibilidade de uma intervenção militar no Brasil. Em abril de 2016, a entidade que ele preside patrocinou uma chuva de ovos sobre um cartaz do deputado federal da cidade que votou contra o impeachment de Dilma Rousseff, na esquina mais movimentada da cidade.
A mais recente demonstração do conservadorismo local veio de um vereador-pastor, que ameaçou prender a cantora Pabllo Vittar se ela “inventar de sair nas ruas” da cidade. Em visita recente a Curitiba, o principal líder do Movimento Brasil Livre, Kim Kataguiri, disse que o Paraná é a “Reaçolândia” brasileira. Ponta Grossa é a sua capital.
“Há conforto em saber que existem brasileiros como ele, que ainda se preocupam com a nação e se disponibilizam (sic) a lutar pelo futuro”, disse a carta de apoio a Mourão, subscrita por 25 outras entidades que representam desde mulheres executivas até jovens empresários da região. “Nossa democracia está falhando. Está chegando o momento [de uma intervenção]. Se vai resolver, não sei. Mas que dá um susto nesses caras, dá”, disse-me Fonseca, referindo-se à classe política.
Fonseca é um sujeito baixo e gordo, de pele levemente bronzeada e cabelos ainda fartos e grisalhos que, a depender do ângulo pelo qual se olha para ele, lembra o cartola vascaíno Eurico Miranda. A associação que ele preside representa o PIB de Ponta Grossa, cidade 117 quilômetros a oeste de Curitiba, 344 mil habitantes, índice de desenvolvimento humano elevado e um crescente parque industrial que, aos poucos, ganha importância numa economia ainda dominada pelo agronegócio.
Um dos fundadores da União Democrática Ruralista – surgida, nos anos 80, para se opor a movimentos que pregavam a reforma agrária, e que alçou à carreira política o hoje senador Ronaldo Caiado, do DEM de Goiás –, o presidente da ACIPG fez troça com a repressão a opositores empregada pela ditadura. “No regime militar, fizemos vários protestos contra o governo. Chegamos a fechar as entradas da cidade com tratores, e nunca fui ameaçado por isso”, falou, frisando a palavra “regime”. “Quem foi torturado, provavelmente mereceu. Provavelmente pegou em armas, como a Dilma.” Ao fim de nossa conversa, tentou pôr panos quentes. “A tortura foi errada, não deveria ter sido assim.”
A entidade hoje comandada por Fonseca é a mesma que, em 2014, defendeu que beneficiários do Bolsa Família não deveriam votar. Um documento preparado pelo então presidente da entidade, Nilton Fior, e apresentado a candidatos a deputado, propunha o seguinte: “Suspensão do direito ao voto para beneficiados de (sic) qualquer programa de transferência direta de renda, nas esferas municipal, estadual ou federal”, dizia o texto. “Ele foi infeliz. Pegou mal, acaba taxando a entidade como radical”, lamentou o atual presidente. Não que isso tenha custado a Fior algum prestígio: segundo o site, ele é o atual relações-públicas da associação.
A força política da entidade, em Ponta Grossa, é inquestionável. Em dado momento da entrevista à piauí, o celular de Fonseca tocou – ele usa o tema de O Bom, o Mau e o Feio, clássico do spaghetti western dirigido por Sergio Leone, como toque. O ruralista fez questão de mostrar quem era o interlocutor: Plauto Miró Guimarães, do DEM, deputado estadual há sete mandatos e filho de famílias tradicionais da região. “Estão mandando umas viaturas para a polícia da cidade. Ele quer que eu vá tirar uma foto com ele na entrega”, explicou-me, após desligar. Naquela noite, Fonseca teria a presença exaltada ao chegar, atrasado, ao evento político de um pré-candidato a governador do estado na cidade.
“Neste momento, não posso aceitar nem Dilma, nem Temer, muito menos o deputado Eduardo Cunha, que é acusado de ser ladrão. Por isso, o meu voto é não”, discursou, dedo em riste, Aliel Machado, eleito pelo PCdoB e atualmente na Rede, na sessão da Câmara que encaminhou o impeachment da petista, em abril de 2016. Ele é um dos dois deputados federais paranaenses com base eleitoral em Ponta Grossa.
Mal a imagem de Machado tinha saído do vídeo da TV Câmara, um protesto eclodiu na esquina das ruas Vicente Machado e Balduíno Taques, principal cruzamento da cidade, por causa do voto contrário ao impeachment. Um cartaz com a foto de Machado virou alvo de ataques: nele foi escrita a palavra “lixo”, junto a logomarcas de movimentos como o Vem Pra Rua e o MBL. Sua foto foi atacada por dezenas de pessoas, que jogaram ovos. Um manifestante, com pintura verde e amarela no rosto, segurava uma bandeja oferecendo a munição. Outros filmavam com os celulares. Carros passavam buzinando, em apoio. As imagens estão na internet.
“Foi coisa do povo do Douglas”, disse-me o deputado, referindo-se ao presidente da ACIPG. “Foi gente daqui de dentro, sim”, confirmou o ruralista. Não foram as únicas ameaças dirigidas ao parlamentar, um jovem de 28 anos, olhos claros e cabelos ondulados mantidos rentes à cabeça graças a uma generosa quantidade de gel. “Minha esposa, meu pai e minha mãe foram agredidos verbalmente, na rua. Jogaram lixo na frente da casa dos meus pais”, relatou-me, em seu escritório na cidade, uma casa localizada a poucas quadras de onde ocorreu o protesto.
No dia da votação do impeachment de Dilma, temendo o clima na cidade natal, Machado levou a mulher e o filho, então com menos de um ano de idade, a Brasília. “As ameaças eram muitas, pela internet. Alguns blogs diziam que eu não iria poder mais andar em Ponta Grossa. Quando voltei pela primeira vez, saí para caminhar pelo Centro. As pessoas me olhavam, muito bravas, mas ninguém teve coragem de me confrontar”, disse o político, no escritório de decoração espartana – nas paredes de tijolos nus, destacavam-se uma camisa do Operário Ferroviário Esporte Clube, time da cidade que sagrou-se campeão da quarta divisão do Campeonato Brasileiro este ano, e um cartaz com os dizeres “Mar calmo nunca fez bom marinheiro”.
Se as ameaças não se confirmaram, a posição custou a Machado uma possível eleição para prefeito da cidade, em outubro do ano passado. “Antes da votação do impeachment, encomendei uma pesquisa qualitativa, pelo meu gabinete, para ver qual o sentimento da cidade: 93% das pessoas eram a favor da saída da Dilma.” Pesquisas eleitorais de institutos locais, feitas logo após a votação do impeachment, mostraram Machado como o mais rejeitado dos aspirantes à prefeitura local. Ele chegou ao segundo turno, mas perdeu para Marcelo Rangel, do PPS, que se assume publicamente como “de direita”.
O gabinete do vereador Ezequiel Ferreira Bueno, do PRB, é o primeiro do corredor pintado em dois tons de azul. “Em defesa da família”, berram as letras douradas que encimam uma gigantesca e bastante retocada foto do político, que ocupa de alto a baixo o vidro que faz as vezes de parede, separando o espaço de trabalho do corredor.
Bueno ganhou notoriedade nacional em meados de outubro, ao discursar, em plenário, que prenderia a cantora drag queen Pabllo Vittar, anunciada como atração de uma festa tradicional da cidade, caso ela inventasse “de sair na rua ou nas escolas”. “Eu não vou deixar uma pessoa dessas entrar nas escolas e ensinar diversidade sexual para as crianças. ‘Ah, mas, pastor, é só um show.’ Eu não sei. Abriu a porta, entrou e aí é complicado”, vociferou o político, que é pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular.
Aos 41 anos de idade, Bueno foi tapeado por uma notícia falsa, segundo a qual a cantora e o deputado federal e ex-BBB Jean Wyllys, do PSOL fluminense, fariam uma turnê pelo Brasil ensinando diversidade sexual. A ameaça de prisão talvez se deva ao fato dele ser ex-policial militar – tornou-se reservista por força do mandato de vereador, faz juz, a uma aposentadoria de 2,4 mil reais mensais, paga pelo governo do estado, que se somam ao salário de cerca de 10 mil reais. “Somos uma cidade de conservadores, pais e mães trabalhadores”, bradou, da tribuna do parlamento.
“Qualquer faísca que eu vejo eu me preocupo, não é só com esse artista. Não admitimos esse tipo de coisa nas escolas. Não vejo porque do arrependimento, não falei nada errado”, disse-me, numa rápida entrevista numa sexta-feira, dia em que não há sessões na Câmara de Ponta Grossa. Quando deixei o gabinete, um casal de idosos, ambos negros, pediam ajuda a um assessor do parlamentar para resolver um problema na prefeitura. No saguão de entrada do prédio, uma das paredes está coberta com fotos de todos os presidentes do poder Legislativo ponta-grossense. Tal qual no primeiro ministério de Michel Temer, ali não havia mulheres ou negros, mas apenas homens brancos.
“Esse caboclo é louco”, falou outro vereador, Rudolf Eric Christensen, 29 anos, um descendente de noruegueses que chegou a seu primeiro mandato, pelo PPS, após tomar as rédeas do movimento Vem Pra Rua na cidade, e já tornou-se líder do governo. “Ponta Grossa já tinha a fama de ser a Rússia brasileira antes disso”, lamentou, fazendo menção a uma piada que há anos corre em redes sociais sobre a cidade – e, em menor escala, o Paraná – terem personagens e abrigarem fatos sui generis ou exagerados. Para se contrapor ao colega, Christensen apresentou um projeto de lei que propõe que a data do show de Vittar – marcado para 5 de dezembro – se torne o dia municipal contra o preconceito. Quando o questionei como se posicionava ideologicamente, o vereador respondeu-me, sem titubear: “Sou de centro-direita.”
Chovia em Ponta Grossa no início da noite de sexta-feira. O bar Catedral, localizado no ponto mais alto da cidade (Ponta Grossa é uma cidade de geografia acidentada, e os lugares mais elevados são mais valorizados), começava a encher. Logo na entrada, alguns adesivos colados num mural davam o tom político do ambiente – “Sergio Moro, livrai-nos do mal” e “Lava Jato, eu apoio”. “Sempre fui de direita. Sou fruto da cidade”, explicou-me o dono, Renato Fiuzza, um sujeito de 62 anos que andou pelos Estados Unidos e Canadá antes de voltar à terra natal. Lulistas seriam bem-vindos no bar?, perguntei a ele. “Podem vir, desde que não se manifestem”, respondeu-me, fechando a cara.