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Capitalismo criminal – a violência é o grande negócio

Documentário América Armada mostra por que situação da Colômbia tem conexões com o Brasil

Eduardo Escorel | 03 mar 2021_10h01
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À primeira vista, o plano de abertura de América Armada (2018) parece ser uma avenida movimentada no Rio de Janeiro em que ônibus e táxis amarelos passam diante de uma senhora que espera na beira da calçada para atravessar. Quando o sinal abre, ela avança, acompanhada de perfil pela câmera. Uma legenda com enormes letras brancas superpostas à imagem esclarece se tratar, na verdade, de uma cidade da Colômbia. Nos planos seguintes, dois seguranças acompanham a senhora de perto se destacando entre os pedestres. Os três atravessam uma galeria de lojas, caminham por um calçadão, passam pela entrada de um prédio, vistos através das câmeras de segurança, e tomam um elevador de porta gradeada. Legendas de letras pequenas brancas sobre fundo preto informam: “Ao longo de 50 anos, conflitos armados na Colômbia levaram à morte e ao deslocamento forçado de milhões de pessoas. Milhares de colombianos ainda buscam seus familiares desaparecidos.” No plano seguinte, a senhora tenta obter pelo celular, sem sucesso, informações sobre o formulário que “uma senhora de Frontino” sentada à sua frente, que “está morando aqui em Medellín”, recebeu em 2011. Depois de ela desligar há o seguinte diálogo entre as duas:

“O que lhe aconteceu?”

“Mataram meu companheiro. Meu esposo, já faz 20 anos que mataram.”

“E quantos filhos vocês tiveram?”

“Três. E dos três, faz dois anos que mataram meu filho mais velho.”

“O quê? Onde o mataram?”

“Também lá em Frontino.”

“Qual dos dois doeu mais?”

“O filho.”

“O filho. O filho. Por que você acha que eu estou aqui? Por que você acha?”

As duas senhoras se abraçam comovidas.

“Força. Ânimo. Eu sei que isso dói muito.”

Começa assim o documentário América Armada, de Alice Lanari e Pedro Asbeg. Nesses 5min48seg iniciais, Teresita Gavíria é apresentada. Ela é diretora da Associação Caminhos de Esperança – Mães da Candelária, e seu filho de 15 anos “foi desaparecido” por paramilitares, em 1998. Teresita disse certa vez: “Quando matam um membro da sua família, você procura se resignar. Mas quando somem com um filho, esqueça! A pessoa se diz: ‘Até aqui cheguei, não mais! Não vou continuar calando a boca.’ Então, eu disse à família: ‘Vou para as montanhas da Colômbia procurar meu filho amado.’”

Teresita Gavíria em cena do documentário ‘América Armada’ – Foto: Divulgação

 

América Armada alterna sequências em que a câmera observa Teresita com outras em que acompanha Heriberto Paredes e Raull Santiago. Heriberto é fotógrafo e jornalista independente, especializado em temas relacionados aos povos indígenas e aos efeitos da violência no México e na América Central; Raull é ativista social e atua no Coletivo Papo Reto, composto por jovens moradores do Complexo do Alemão e da Penha.

Após a apresentação de Teresita, Heriberto é visto, pela primeira vez, sendo levado a caminho de Aranza, povoado no município de Tangancícuaro, e se dizendo surpreendido pois “nunca havia ouvido falar de conflitos ali”. Ele encontra encapuzados no caminho e segue viagem na caçamba de uma picape da polícia do estado de Michoacán. Outra legenda de letras pequenas brancas sobre fundo preto informa: “Desde o início do século XXI, mais de 250 mil pessoas morreram no México por causa da violência ligada ao narcotráfico. A partir de 2013, grupos civis armados começaram a se organizar para proteger seu próprio território.” Heriberto chega ao bloqueio da estrada feito em protesto contra a repressão e o assassinato de Stalin Sánchez. Ele tem notícia da presença de pessoas armadas no local e entrevista uma moradora: “… como em todo processo, o governo diz que está analisando as provas. Há gente reconhecida, perfeitamente identificada. Pessoas que trabalham na prefeitura estão perfeitamente identificadas, e é isso que nos faz perguntar: o que está acontecendo? O que o governo está fazendo? Por que não querem atuar se já está bem claro quem foi? Sim, há pessoas identificadas.”

Heriberto Paredes em cena do documentário ‘América Armada’ – Foto: Divulgação

 

Raull completa o extenso prólogo de América Armada, caminhando por ruelas de uma favela, no Rio de Janeiro, até encontrar policiais militares armados de fuzis, impedindo moradores de entrarem em suas casas. Diante de um PM que finge ignorá-la, a moradora protesta aos gritos. A terceira legenda de letras pequenas brancas sobre fundo preto informa: “A polícia brasileira é a força de segurança mais letal do mundo e mata, em média, 16 pessoas por dia. Dois terços das vítimas são jovens negros que moram em favelas.” Raull narra e transmite ao vivo, através do seu celular. Focaliza um policial sem farda que está, por sua vez, gravando a própria ação da PM. Os dois celulares se aproximam e ficam frente a frente. “O policial estava de pistola na mão”, comenta Raull. “Vocês viram na outra imagem, esse é o policial. A gente quer saber quem é esse policial. A gente quer a identificação do policial. A gente quer saber quem é o chefe desse policial. A gente quer saber quem empregou esse policial. A gente quer saber quem botou um policial na favela de bermuda e chinelo, andando de pistola, invadindo casa de morador, invadindo a casa das pessoas. A gente quer saber, tanto policial morrendo, tanto policial sendo esculachado por esse governo… por que um policial faz isso com um cidadão: puxa a câmera, filma o cidadão, anda armado…”. Segue-se violento bate-boca entre Raull e o policial que acaba se afastando. Raull: “Tamo filmando, tamo filmando quem cria bandido. Aquele policial estava de pistola. Aquele policial que estava vindo armado, dando cobertura para o carro.” O policial volta: “Olha só. Eu não invadi a casa de ninguém.”

“Tá sem farda por quê?”, pergunta Raull.

“Eu tenho porte. Sou polícia, porra.”

“‘Sou polícia, porra’ é a resposta. Tem um outro policial aqui sem farda, me mandando parar de filmar. A gente tá aqui com muitos moradores que estão inconformados com essa situação. A gente vai seguir agora para a Praça do Cruzeiro, onde a gente vai tentar mobilizar mais pessoas. E lá na Praça do Cruzeiro ou de novo, aqui, na Praça do Samba a gente vai fazer uma reunião e vai pensar como é que a gente se une pra acabar com essa situação. Isto aqui é culpa de toda a sociedade.”

Raull Santiago em cena do documentário ‘América Armada’ – Foto: Divulgação

 

O prólogo de América Armada termina após 15min38seg e o título surge na tela em grandes letras vermelhas sobre fundo preto. Ao longo dos 58 minutos seguintes, até começarem os créditos finais, completa-se o painel do que Heriberto chama em off de o “capitalismo criminoso”. No encerramento, após uma série de planos de mães e avós segurando fotos de maridos e filhos desaparecidos, as imagens são de sepulturas no cemitério e de uma cruz à beira da estrada deserta. Segundo Heriberto, “há uma nova fase dentro do capitalismo que se vive na América Latina… em que a violência já é também um grande negócio. Não é que antes não o fora. Mas de uns 20 anos para cá essa fase se consolidou como um grande negócio. O grande negócio na América Latina é a reprodução da violência.”

Para fazer América Armada, Alice Lanari e Pedro Asbeg adotam postura de observadores rigorosos – não interagem com os personagens, nem intervêm ou comentam as cenas. A dupla se restringe a dar as informações contidas nas três legendas citadas acima. Nem por isso América Armada deixa de causar impacto. E preserva sua força, mesmo tendo sido gravado em 2017, e estreado hors concours no encerramento do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018. Percorreu depois vários festivais e teve lançamento em drive-in, em 9 de outubro de 2020, para cumprir pré-requisito da Ancine para ser lançado nas plataformas digitais. O documentário mantém sua atualidade intacta, ainda mais agora, com os recentes decretos, assinados por você sabe quem em 12 de fevereiro, tornando mais flexível o uso e a compra de armas de fogo no Brasil. Em entrevista a propósito da exibição em Brasília, Alice Lanari foi clara: “… Somos rigorosamente contra alguma proposta de discussão do Estatuto do Desarmamento. Pra gente, está muito claro que não é a arma que vai resolver e o filme deixa isso muito claro. Arma gera mais violência, mais morte…” (Correio Braziliense, 23/09/2018).

América Armada poderá ser assistido a partir de 11 de março no NOW, Vivo Play, e Oi Play, ou na GloboNews, em 25 abril.

*

Dia 9 de março, terça-feira, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam com Joana Nin, diretora de Proibido Nascer no Paraíso (2021), no programa #TerçaAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. É proibido nascer em Fernando de Noronha, conforme Joana descobriu ao visitar a ilha pela primeira vez. Gravado entre 2017 e 2019, o documentário acompanha três gestantes cujas famílias vivem há décadas em Noronha, mas são obrigadas a se deslocar para o continente para realizarem seus partos. “Realizar este filme”, a diretora declarou, “me fez sentir na pele uma realidade levada ao extremo. Porque ali se consegue proibir de fato que mulheres escolham onde e como querem ter seus bebês. E isso foi institucionalizado, tornado permanente, pois já dura 17 anos, embora não exista nenhuma lei determinando nada disso. Como aceitar que nativas não possam ter filhos nativos?” O acesso à conversa com Joana Nin, em 9 de março, pode ser feito através do link https://youtu.be/p6jU106qn-8 .

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