Em uma noite de 2013, quando tinha 15 anos, Breno Piffer chegou em casa com pressa para tirar o uniforme da escola e colocá-lo para lavar. Não queria que a mãe notasse o cheiro forte de uma mistura de ervas impregnado em sua roupa. Ele conta que fez de tudo para que ela não desconfiasse que tinha passado a tarde no apartamento do professor Carlos Veiga Filho, com quem ele tinha aulas de história e teatro no Colégio Libere Vivere, instituição privada da cidade paulista de Serra Negra.
Piffer, hoje um biomédico de 26 anos, costumava frequentar o endereço do professor, assim como outros colegas da escola. Certo dia, relembra, Veiga pediu que ele fosse até lá porque precisava de uma “limpeza energética”. “Ele falou que eu estava carregado, que estava com uma coisa muito pesada. E que qualquer dia eu iria começar a ver coisas se não cuidasse disso, porque os espíritos de baixa luz gostavam de pessoas que estavam emanando essa baixa luz também”, ele contou à piauí.
Ele recorda que o professor preparou um banho de ervas e o conduziu até o banheiro. Lá, pediu que tirasse completamente a roupa. Enquanto jogava a água em Breno, Veiga tocava regiões do corpo do adolescente que dizia serem seus “chakras”. Um desses pontos era a genitália.
Dez anos depois, em 2023, um outro adolescente, também aluno do Libere Vivere, fez à família um relato bastante semelhante, com os mesmos banhos para limpeza de energia. Em uma dessas sessões, disse, o professor tocou a sua genitália, e ainda o fotografou nu. Sua mãe relatou à polícia que o menino chorou muito ao relembrar o caso. Ela havia percebido uma mudança em seu comportamento. O adolescente sempre foi alegre, mas repentinamente ficou mais pensativo e silencioso, além de febril, segundo os familiares. Em outubro, se abriu, e contou que recebia esses banhos de seu professor favorito, a quem chamava de Carlão.
Carlos Veiga Filho, 61, foi denunciado e se tornou réu em abril deste ano por suspeita de estupro de vulnerável e de registrar cena pornográfica envolvendo adolescentes. O caso veio à tona depois que a mãe desse aluno dos episódios mais recentes procurou o Libere Vivere. As famílias de outros dois alunos também falaram com o colégio — a escola demitiu o professor e a diretora, Rosângela Simões, e o denunciou à Polícia Civil.
“Quando ele achava que a energia do aluno não estava boa, fazia isso. Ele fez isso na casa dele”, sua mãe afirmou à Promotoria de Serra Negra, segundo um depoimento que ela prestou à Justiça, obtido pela piauí.
Veiga está detido preventivamente desde junho em Sorocaba, onde aguarda uma decisão da juíza Juliana Maria Finati, responsável pelo caso.
A notícia de sua prisão, veiculada em programas policiais de tevê, logo chegou aos grupos de WhatsApp de ex-alunos do tradicional Colégio Rio Branco, onde ele trabalhou entre 1990 e 2003, nas unidades dos bairros de Higienópolis, na capital paulista, e Granja Viana, na Grande São Paulo. Uma reportagem da piauí do dia 4 de agosto mostrou que o professor agia de forma semelhante havia décadas (à noite, o Fantástico, da TV Globo, também publicou uma reportagem do jornalista Maurício Ferraz sobre o caso). No Rio Branco, Veiga dirigiu o grupo de teatro e criou um sistema de castas entre os alunos, a monitoria. Para subir na hierarquia e se tornar sênior, os meninos – sempre os meninos – tinham de se submeter a um batismo durante as viagens de recreação do colégio, um rito iniciático em que ficavam seminus ou nus e eram fotografados pelo professor.
Depois da publicação da reportagem de agosto, a piauí seguiu entrevistando outros estudantes (Breno Piffer é um dos poucos que aceitaram ter seu nome revelado), teve acesso a mais detalhes sobre a investigação e ao depoimento de Veiga. São informações que permitem entender melhor como ele agia. O professor chegou a contratar uma prostituta para alunos, segundo o relato de um deles à Justiça, e escolhia os garotos segundo um critério: preferia aqueles que tinham problemas com o pai.
No entorno dos acontecimentos, ao longo de décadas, o silêncio sempre foi a regra. Do Rio Branco até o Libere Vivere, o docente pedia que os alunos não contassem para ninguém o que acontecia nesses encontros íntimos. “Isso pode ser visto com maus olhos”, dizia, segundo um adolescente fotografado pelo professor em Serra Negra. “Ele falava ‘Olha, se as pessoas souberem, vai ficar estranho um professor trazer os alunos pra casa dele’”, diz outro.
Mesmo prescritos, alguns casos do Rio Branco ajudam a compor o atual processo contra o professor. Quatro ex-alunos e uma ex-aluna foram ouvidos em audiência. Um deles, que frequentou o Rio Branco entre 1991 e 1997, disse que só agora, três décadas depois, conseguia falar do abuso. Ele cita “a vergonha de não ter conseguido lidar com aquilo” e pondera os motivos: medo de expor “outras pessoas”, pois todos os monitores sênior passavam pelos mesmos abusos.
Outro ex-aluno, dessa mesma época, afirmou em juízo que, além do batismo com as fotos, também participou e presenciou rituais de limpeza de chakras e de masturbação coletiva no apartamento de Carlos Veiga. O professor morava em um apartamento na Rua Conselheiro Brotero, em Higienópolis, a quatro minutos a pé do Rio Branco, onde os alunos se reuniam para ensaiar as peças de teatro e comer pizza.
“Ele era muito próximo, presente, de nossos pais também. Ele tinha a confiança de todo mundo e num dado momento ele tinha um grupo seleto, do qual eu fazia parte. Ele dava aula de ocultismo, magia, e ele falava das energias do universo, sei lá o quê. Enfim, tinha a tal da limpeza de chakras e ele encostava nos genitais das pessoas. Acontecia comigo e via acontecendo com outras pessoas”, esse ex-aluno contou, em um depoimento concedido por videoconferência numa audiência em agosto.
“E em outras situações ele fotografou seu corpo e em situação de masturbação também?”, indagou o promotor Gustavo Pozzebon, responsável pelo caso. “Sim, inúmeras vezes [fez] fotografias dos genitais e para a gente, meninos, crianças, era molecagem, era o transcendente e evidentemente eu não via conotação sexual. Era uma brincadeira, zoeira, enfim.”
Segundo essa mesma testemunha, Veiga ainda pagou uma prostituta para ele e outros amigos. O professor não os observou com a profissional. A consciência de que era um abuso, esse ex-aluno disse, só veio anos depois.
“Não pensávamos nesses termos, não se conversava assim na minha idade e durante muito tempo as pessoas tinham muito tabu. Para quem é vítima disso é muito complicado, talvez o agressor saiba disso e jogue com isso, enfim, as pessoas não querem se expor, não querem falar: ‘Eu fui vítima de um abuso’.”
No dia 22 de agosto, o professor Veiga conectou-se da Penitenciária Dr. Antonio de Souza Neto, de Sorocaba, para uma audiência por videoconferência. Segundo a transcrição de seu depoimento, à qual a piauí teve acesso, ele admitiu “parcialmente” os crimes narrados na denúncia.
Diante da juíza, Veiga afirmou que fez “benzimentos nos alunos”, mas negou que tivessem “intenção sexual”. Ponderou que viu “essas crianças crescerem”. “Benzia os chakras como foi me ensinado: na cabeça, na região do pescoço, peito, região umbilical e a região genital”, declarou. Geralmente as pessoas estavam vestidas, afirmou, e a nudez “só ocorria quando eram pessoas que eram muito próximas e eu achava que queriam algo, que eu ensinasse mais”.
Os nomes citados por ele a seguir foram suprimidos para preservar a identidade das vítimas. “Eu fiquei muito mal em saber o mal que eu fiz. Eu não tinha conotação sexual e obviamente pela família toda deles, se eu fiz tanto mal ao ***** , que aparentemente fiz, e ao *****, eu aceito. A única coisa que eu quero deixar claro [é] que não houve conotação sexual. Eu posso ter feito besteira, mas não tinha conotação sexual”, afirmou.
Sua resposta sobre as fotografias dos alunos foi mais confusa, ainda de acordo com a transcrição. Questionado sobre a necessidade de capturar as imagens, primeiro disse que esta era uma parte da acusação que ele discutia. Depois, afirmou que sempre tirou muitas fotos, e que não havia necessidade de tirá-las “para fazer essas coisas”.
O promotor, então, pergunta diretamente se ele admitia que fotografou adolescentes nus. “Eu tenho pouca recordação sobre isso. Se eles dizem que eu fiz não era algo que acontecesse com frequência ou era algo [de] que eu me recorde. Mas acredito que eles não iriam mentir. Eu tirei foto só uma vez.” “E o que o senhor fazia com essas fotos?”, o promotor insistiu. Veiga disse que, no único caso do qual se lembra, fez as imagens com o celular do aluno. “O meu celular na época, e isso qualquer pessoa pode dizer… As fotos ficavam muito ruins, eu quase não usava o meu celular.”
No início de agosto, a Polícia Civil em Serra Negra apreendeu o computador do professor, um celular e cinco sacos com fotografias. O material aguarda perícia.
“Eu queria pedir desculpa e dizer que aceito o que decidirem. Eu não achava que estava fazendo [algo errado], a gente descobre muita coisa aqui”, declarou.
Em agosto, Veiga havia negado as acusações em resposta à piauí, por meio de seu advogado, Jhonatan Wilke. Procurado novamente na última sexta-feira para comentar as afirmações feitas no depoimento, seu defensor não enviou resposta.
A tarde no apartamento de Veiga para a “limpeza energética” assombrou Breno Piffer nos meses e anos que se seguiram. Primeiro, vieram as crises de ansiedade. Depois, quando o irmão mais novo ingressou no Libere Vivere, sentia pavor quando sabia que poderia se deparar com Veiga em eventos escolares.
“Quando eu encontrava ele, era sempre aquela coisa… Eu abraçava, conversava. Mas era algo sinistro pra mim. Antes de eu me ligar que era um abuso, isso vinha na minha cabeça de vez em quando, mas eu não falava com ninguém. Pensava: ‘Vou esquecer, vai passar, será que foi mesmo?’“
Em 2020, conta, ele conseguiu tocar no assunto pela primeira vez em uma sessão de terapia. Naquela época, tinha se envolvido com um homem mais velho, e sofreu uma agressão. “Estava processando isso na terapia, e aí quando eu já estava no fim da sessão, falei: ‘Tem mais uma coisa que eu precisava dividir – não sei se é coisa da minha cabeça’. E aí eu contei.”
Quando pensa no que aconteceu com ele e com outros adolescentes, Breno diz que ninguém falava abertamente sobre os abusos porque, por ser muito querido, o professor Carlos Veiga também era percebido como frágil, inofensivo. “No fundo eu acho que todo mundo sabia, mas a gente não queria assumir isso porque todo mundo amava ele.”
Veiga era convidado para passar o Natal com as famílias de seus alunos. Quando passava por algum problema financeiro ou de saúde, eram os pais de Serra Negra que o socorriam, promovendo bingos e sorteios para levantar recursos.
“Eu poderia desconfiar de qualquer pessoa, mas jamais dele”, afirmou à Justiça a mãe de um dos adolescentes abusados por Veiga. “Ele passava as dificuldades de saúde dele e a gente procurava cuidar, ajudar. Não sei se ele usava isso, mas ele passava uma confiança muito grande.”
Na denúncia contra o professor, o promotor Gustavo Pozzebon destacou a “carência de uma figura paterna” como um elemento em comum entre alguns meninos abusados pelo professor. Isso “os tornava ainda mais vulneráveis emocionalmente para aproximarem-se do professor Carlos e ganharem sua confiança”. Os adolescentes buscavam nele um pai, escreveu.
Foi assim com Breno. “Ele literalmente falou pra mim: ‘Eu vou ser o pai que você não tem.’ Meu pai nunca foi uma pessoa má, mas sempre foi um pai muito ausente”, conta. “Em 2013, quando eu comecei a descobrir minha sexualidade, era a última pessoa que podia saber.”
“Parece filme de terror, em que uma pessoa confia o tempo todo em uma pessoa e, no final, descobre que era o vilão”, ele diz. “Porque era isso. Eu estava tendo um apoio que precisava no momento, mas era da pessoa mais errada possível para aquele momento.”
A mãe de um outro adolescente de Serra Negra contou em depoimento à Justiça que Veiga disse ao seu filho, órfão, que iria ajudá-lo a se comunicar com o pai. “Ele fez um círculo de velas e colocou um colega no centro do círculo e falou para ele chamar pelo pai, que o pai ia manter contato com ele.”
Esse colega também era aluno do teatro no Libere Vivere e, segundo sua mãe, tinha pavor de chegar atrasado aos ensaios. Era uma coisa muito absurda, ela disse. “Mãe, você já está vindo?” A mãe respondia que chegaria em dois minutos, e ele insistia que não podia chegar fora de hora.
O motivo ela só foi descobrir depois: quem chegasse tarde ou errasse as falas nos ensaios recebia um trote. Veiga puxava a calça dos meninos e jogava água com gás nos genitais.
Esse garoto, segundo sua mãe, nunca foi ao apartamento de Veiga. Tampouco passou pela limpeza de chakras ou foi fotografado. “Sei que houve ensaio de teatro na casa dele durante a pandemia e vários alunos foram lá. Essa história não começou com os nossos filhos. Se algo tivesse sido feito lá atrás, hoje esse problema não teria se estendido”, afirmou.
O promotor Gustavo Pozzebon perguntou a Veiga se ele sentia prazer ao jogar água nas partes íntimas dos alunos. “Eu só achava engraçado e achava que eles também, [mas] eu não vou tirar a minha culpa”, afirmou o professor no depoimento.
Na reportagem publicada em agosto, dois ex-alunos contaram à piauí que, em 2002, chegaram a denunciar a um diretor do Rio Branco os batismos e as fotos de nudez feitas por Veiga. A escola demitiu o professor pouco depois, mas alegou reestruturação interna.
Em nota enviada à piauí na ocasião, o Colégio Rio Branco disse que a atual gestão da Fundação de Rotarianos de São Paulo desconhecia os relatos de batismos e também não tem “registros de denúncias que possam ter sido feitas, bem como de medidas que possam ter sido tomadas ou não pela direção à época”.
Dias depois da publicação das reportagens da piauí e do Fantástico, o Rio Branco convocou pais de alunos para falar do caso abertamente pela primeira vez. Em nota enviada à piauí na última sexta-feira, dia 27, a Fundação de Rotarianos de São Paulo, mantenedora do Colégio Rio Branco, disse que abriu mais um espaço para receber denúncias após a divulgação de reportagens a respeito do ex-professor. Até agora, o canal recebeu quinze mensagens, e os autores de quatro delas autorizaram que a instituição as encaminhasse a autoridades.
A fundação também afirmou que, nos dias seguintes às reportagens, promoveu encontros com a comunidade escolar para tratar do tema. “Informamos que contaremos com a colaboração de profissionais e instituições especializadas no tema, intensificando o trabalho com os alunos, nas diferentes faixas etárias, no que se refere à autopreservação, autoestima e encorajamento para denúncias de eventuais situações atípicas, dentro e fora da instituição,” afirmou a instituição.
“Na esfera institucional, estamos revisitando as políticas e procedimentos internos, dando continuidade à formação dos colaboradores em relação a comportamentos inadequados e identificação de possíveis situações de alerta, assim como mantendo a comunicação constante com a comunidade sobre a evolução das nossas medidas.”
A reportagem também procurou o Colégio Libere Vivere por meio de seu advogado, Eduardo Leite, mas ele ainda não encaminhou uma resposta.