Se toda paixão é cega, a de Neire é exceção. Nem mesmo a relação de muitos carnavais com o espetáculo que arrebata a Sapucaí e todas as esquinas cariocas em fevereiro é capaz de abalar a opinião da costureira Edeneire Nascimento dos Santos sobre a edição pandêmica da festa: “Não vale o risco.” O sentimento de Neire pelo Carnaval floresceu na Baixada Fluminense. Ela morava em Nova Iguaçu, cidade vizinha de Nilópolis, berço da Beija-Flor, escola da qual se declara fã. “Quando eu era mais nova, a toda oportunidade de dar uma fugidinha, eu ia para lá. É uma escola muito bonita e eu gosto muito”, diz. Há oito anos, a costureira teceu laços mais estreitos com a “paixão nacional”, como ela define o evento. Aproveitou o espaço que teve na Império da Tijuca, hoje na série A do grupo de acesso – a “segunda divisão” do Carnaval carioca, que teve a Imperatriz Leopoldinense como campeã em 2020 – para mostrar seu trabalho na confecção de fantasias. Neire arrastou filhas e netos para a missão, e é dessa segunda fonte de renda que ela tira os recursos para investir nos sonhos da família. O principal deles é a reforma paulatina da casa própria em Jacarepaguá, na Zona Oeste.
Nesta segunda-feira (14), a Liesa divulgou a ordem dos desfiles do Grupo Especial. A Beija-Flor encerra o domingo de Carnaval, transferido para 11 de julho. A liga, no entanto, diz que condiciona a realização do evento à vacinação contra a Covid-19. Já a Liesb, que cuida das escolas do grupo de acesso, não divulgou novas datas. As agremiações de ambos os grupos estão em fase de disputa virtual para definir os sambas-enredo. Normalmente, as finais dessas disputas, que arrastam milhares de pessoas para as quadras, já teriam ocorrido há dois meses.
Em depoimento a Hellen Guimarães
“Nos anos anteriores, a preparação era organizada. Já começávamos a confeccionar as peças no ano anterior ao próximo desfile, ver protótipos, adereços, tudo isso era programado. A pandemia afetou muito a economia de muita gente, muitos vivem só do Carnaval. Não é o meu caso, o Carnaval é só minha segunda renda, algo que eu fazia por paixão. Coloquei minhas filhas, meus netos, todos para trabalhar. Tenho ambição, corro atrás das coisas, e acho que todos nós devemos ter uma segunda renda. E o carnaval foi onde encontrei essa fonte para mim.
Com a pandemia, acho justo que não haja o Carnaval. Porque é por causa da ganância financeira que nós estamos nessa pandemia. Se a gente tivesse fechado as coisas antes, se tivéssemos feito lockdown, não teria tanta gente afetada. Até hoje as pessoas não levam a sério essa história da Covid. Por mim, não haveria nem Carnaval em julho. Em julho, é frio, esse vírus gosta do frio, carnaval é muvuca, carnaval chama gente, carnaval é carnaval. É uma tradição, todo mundo gosta, o povo fica enlouquecido, é uma paixão nacional, e gera uma fonte de renda trilhardária. Por mim, não teria. Se eu fosse governante, só teria carnaval quando passasse a pandemia, quando realmente tivesse uma vacina segura para que isso não se alastrasse ainda mais. Mas, por causa da ganância, quantas pessoas hoje estão infectadas? Que nem se fala mais, né? Virou algo banal. Entre a economia e a vida das pessoas, é melhor que não haja esses eventos.
Na minha escola, a produção está parada. Nós não estamos confeccionando nada. Eles só estão arrumando as coisas, fazendo a manutenção do espaço, é esse o movimento que existe dentro dos barracões. Mas criar? Criando, mesmo, não estamos criando nada, até que haja vacina segura… ou que baixe a ordem de que vai fazer, né? Quem manda em tudo são os governantes. Se liberarem verba para que a gente possa comprar os materiais… mas eu prefiro que continue assim, parado, para que haja segurança. A gente precisa entender o momento que estamos vivendo e driblar essa situação difícil como dá.
No meu caso, a pandemia me afetou em parte. O carnaval é uma fonte de emprego para mim, meus netos e minhas filhas. Trabalhamos em família e ele ajuda a gente a realizar as coisas que almejamos. Mas tenho também meu trabalho de carteira assinada, em uma empresa grande, cujo nome prefiro não falar. Eu sou costureira e minhas filhas são aderecistas lá. O que a gente lucrava no carnaval era o que eu investia na minha casa, enquanto o emprego formal é o que garante o sustento do dia a dia. A empresa não deixou a desejar em momento algum durante essa pandemia inteira, fiquei oito meses em casa. Agora já voltamos, tomando todos os cuidados, apesar de saber que o vírus é imprevisível. Não recebemos auxílio emergencial, porque eu e minhas filhas não temos direito.
Minha maior dificuldade durante a pandemia foi justamente a falta desse meu segundo trabalho, porque eu já contava com esse dinheiro para investir na casa que financiei. Era uma casa antiga que estamos reformando aos poucos. Mas eu e minha família precisamos nos readequar a essa situação emergencial e contorná-la, como muitos brasileiros fizeram. Não havia outros eventos para tentar arrumar algo por fora, então juntamos nossas forças. Fizemos alguns serviços à parte, até para a própria escola, que doou cestas básicas, e entramos no ramo das máscaras para complementar a renda.
Por um lado, a possibilidade de ter carnaval é bacana, porque o evento gera renda para muitas famílias, e há muita gente passando necessidade. Só que, por outro lado, estamos todos bem doentes e, por isso, acho que o ideal era não ter o evento e as pessoas procurarem uma outra fonte de renda. De que adianta ter o carnaval agora e morrer mais gente em massa? Eu acho que não valeria a pena.”