A praia Maho é mundialmente famosa não apenas pelo típico mar verde-claro caribenho, mas também por estar na cabeceira da pista do aeroporto Princesa Juliana, na Ilha de São Martinho, um país minúsculo outrora denominado Antilhas Holandesas. Devido ao pouco comprimento da pista (2,2 mil metros), os aviões pousam ou decolam a pouco mais de 50 metros da cabeça dos banhistas, o que transforma Maho em uma atração turística incontornável no Caribe, seja para os que estão no chão, seja para quem esteja no voo.
O empresário mineiro Lucas Prado Kallas viveu essa sensação na tarde de 14 de junho do ano passado a bordo do jato Global 6000, fabricado em 2018 pela Bombardier. A aeronave pousou no Princesa Juliana, vinda do Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Confins (MG). Kallas havia fretado o voo da empresa Fly and Fun Táxi Aéreo, do empresário Rubens Menin. As informações constam em um relatório inédito da Polícia Federal obtido pela piauí. (Foi o mesmo avião em que o governador de Minas, Romeu Zema, viajou a Brasília no dia 4 de outubro passado, dois dias após o primeiro turno, para declarar apoio à reeleição do então presidente Jair Bolsonaro.)
Apenas um dos treze assentos do jato estava vazio naquele dia. Entre os passageiros, além de Kallas e a mulher, estavam, como convidados do empresário, a procuradora da Fazenda Liana do Rego Motta Veloso e os advogados Marcus Vinicius Furtado Coêlho (marido de Veloso e ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil) e Vinicio Kalid Antonio. De São Martinho, o grupo viajou outros 32 km em outro avião, menor, até a Ilha de São Bartolomeu, território ultramarino francês.
Kallas, o anfitrião da viagem, deve 1,6 milhão de reais em impostos para a União, valor já inscrito em dívida ativa. Por lei, cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) cobrar esse tipo de débito na Justiça. É justamente na PGFN que a procuradora Liana Veloso atua desde 2000.
O grupo só retornaria a Belo Horizonte cinco dias depois, no mesmo avião. Não se sabe o que fizeram na ilha caribenha, dividida em dois países: a parte setentrional é território ultramarino francês, enquanto a meridional é uma nação ligada ao Reino dos Países Baixos. São Martinho é considerado pela Receita Federal brasileira um paraíso fiscal, assim como as Ilhas Virgens Britânicas, a apenas 183 km dali. Além da isenção de impostos, um paraíso fiscal protege a identidade do investidor, o que é um prato cheio para lavagem de dinheiro e corrupção.
Pelo menos um dos passageiros do voo possui empresas nas Ilhas Virgens Britânicas, de acordo com documentos das bases de dados de offshores do International Consortium of Investigative Journalism (ICIJ) obtidos pela piauí. Em 2011, o advogado Kalid Antonio, dono do escritório VK Advocacia Empresarial, de Belo Horizonte, abriu nas Ilhas Virgens duas empresas: Wiskert Ltd, uma offshore, e a Hemisphere, uma trust, responsável por gerir um fundo que tem o próprio advogado como beneficiário. Nos documentos da Wiskert, consta um faturamento de 50 milhões de dólares do escritório VK (os papéis não informam se esse faturamento é anual ou mensal). Pela legislação brasileira, não é ilegal possuir uma offshore, desde que ela seja declarada à Receita Federal no Brasil. Procurada pela piauí, a assessoria do advogado Kalid Antonio afirmou, em nota, que a viagem foi a lazer com a família e amigos. Ele negou ser dono das duas offshores mencionadas na reportagem. “Tudo o que ele possui é fiscalmente declarado”, concluiu.
Duas semanas mais tarde, em 3 de julho, Lucas Prado Kallas embarcou em outro voo, dessa vez para a Flórida, com a mulher e os filhos, a bordo do jato da Bombardier de uma de suas empresas, a Extrativa Mineral S/A. Dias depois, em 20 de julho, viajaram, em voo comercial classe executiva com escala no Panamá, o procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, Jarbas Soares Júnior, e a esposa Cristiana Nepomuceno de Sousa Soares, advogada especialista em direito ambiental e que atua na defesa de mineradoras do estado. Soares Júnior fez uma visita oficial ao Ministério Público da Flórida para “reuniões de intercâmbio”, como ele registrou em sua conta na rede social Instagram.
A agenda oficial na Flórida, custeada pelos cofres públicos mineiros, estendeu-se dos dias 21 a 24 de julho. Mas o chefe do Ministério Público mineiro e a mulher advogada só retornaram a Belo Horizonte em 30 de julho. Soares Júnior não publicou no Instagram nenhuma foto dele ou da mulher nesses seis dias em que, teoricamente, ficou em Miami sem compromissos de trabalho. Segundo a assessoria do MP, o casal aproveitou a viagem para “gozo de compensação de dias trabalhados”. No dia 30 daquele mês, Kallas resolveu dar uma carona no seu jato particular ao procurador e à mulher no regresso a Belo Horizonte.
Kallas tem uma relação áspera com a polícia e a Justiça. Em 2008, quando era dono de uma construtora, foi preso pela Polícia Federal na Operação João de Barro, acusado de envolvimento em um esquema milionário de desvio de recursos públicos por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no governo Lula. Em decorrência da operação, Kallas responde em liberdade a cinco ações penais, acusado de fraude em licitações, corrupção ativa e tráfico de influência, além de duas ações cíveis, por improbidade administrativa, todas na Justiça Federal. Das cinco ações criminais, foi absolvido em duas (o Ministério Público Federal recorreu), condenado em uma, por tráfico de influência, e teve a pena prescrita em outra, por fraude em licitação. As demais ainda não foram julgadas.
Em 2020, o Grupo Cedro, de Kallas, foi alvo de outra operação, dessa vez da Polícia Civil mineira, suspeito de desmatamento ilegal em área de mineração. O inquérito foi concluído em junho passado, um mês antes da carona do procurador Soares Júnior, com o indiciamento de três diretores da empresa por crime ambiental (Kallas não foi indiciado). No último dia 26, o Ministério Público assinou um acordo com a Cedro em que a empresa se comprometeu a destinar 2 milhões de reais em projetos ambientais em troca do arquivamento do caso.
“O código de ética do servidor público é categórico ao dizer que a função pública se integra na vida particular do servidor. Então o fato de uma procuradora da Fazenda ser íntima de um devedor da União é preocupante porque, ainda que ela não atue diretamente no caso, pode influenciar outros procuradores. Já no caso do procurador-geral de Justiça, me parece gravíssimo, uma vez que ele é a mais alta autoridade do Ministério Público de Minas Gerais e seu comportamento é exemplo aos seus pares”, afirma Fabiano Angélico, especialista em transparência e integridade no serviço público.
Em nota, o procurador Jarbas Soares Júnior afirmou ter sido convidado a retornar ao Brasil no avião de Lucas Kallas, de quem diz ser amigo. Afirmou também “desconhecer qualquer condenação” judicial contra o empresário (Kallas foi condenado por tráfico de influência) e que, no âmbito da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas, não há investigação criminal contra o amigo. A assessoria de Kallas informou apenas que “as viagens citadas são agendas pessoais e de férias, com amigos de longa data”. Procurada pela piauí a respeito da viagem da procuradora Liana Veloso de carona com um devedor da União, a assessoria da PGFN não se manifestou.