Há pelo menos dez anos o Brasil convive intimamente, e midiaticamente, com os ministros do Supremo Tribunal Federal. Desde o julgamento do mensalão, passaram a ocupar capas de jornais e revistas, por vezes retratados como super-heróis. Passaram a ser objeto de discussão entre amigos e familiares em ambientes festivos e descontraídos. A máscara de carnaval mais vendida em 2013 foi a do ministro Joaquim Barbosa, relator do processo do mensalão. Foi nesse período que passamos a ter mais gente sabendo o nome dos ministros do STF do que de ministros do governo e, até de jogadores da seleção brasileira de futebol.
Ao longo dos dez anos que se passaram, o país mergulhou numa crise política que aparenta estar cada dia mais longe do fim e da qual o Supremo Tribunal Federal tem sido um dos protagonistas. De início, o STF deu suporte à Operação Lava Jato e seus métodos, à derrubada judicial dos aliados de Dilma com teses judiciais heterodoxas e a seu processo de impeachment, culminando com a manutenção da prisão de Lula com base no esdrúxulo e errático debate acerca da prisão em segunda instância. Depois desse movimento de ampla interferência na política, pouco se ouviu do STF durante o governo Temer e o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. A situação só mudou após Bolsonaro ser acusado de corrupção por Sergio Moro (então seu ministro da Justiça) por interferir na Polícia Federal, depois de seus correligionários ameaçarem editar um novo AI-5, e quando o próprio presidente passou a prestigiar com sua presença atos que clamavam pelo fechamento do Congresso e do Supremo.
Diante de ataques cada vez mais recorrentes e agressivos por parte de Bolsonaro, seus aliados e seus eleitores, os ministros do Supremo mudaram de postura. O negacionismo presidencial durante a pandemia exigiu decisões duras do STF e engendrou a mudança. Inconformado com as decisões que tolhiam seu poder, Bolsonaro passou a atacar os ministros do Supremo e a própria corte, colocando-os numa posição defensiva. Os ministros do Tribunal se tornaram mais combativos frente às medidas de desestabilização democrática promovidas pelo presidente e por seus aliados.
Alguns dos ministros se tornaram alvo preferencial dos bolsonaristas. Luiz Edson Fachin foi amplamente hostilizado após decretar a nulidade da condenação de Lula no âmbito da Lava Jato, tendo sido abertamente ameaçado pelo então deputado federal Daniel Silveira, mesmo após apoiar irrestritamente a Lava Jato por anos. Luís Roberto Barroso é outro alvo preferencial do bolsonarismo. Vocal na mídia e em eventos públicos, desmentindo Bolsonaro em diversas ocasiões e se imbuindo da condição de defensor ardoroso de nosso processo eleitoral eletrônico quando presidiu o Tribunal Superior Eleitoral, transformou-se em desafeto dos extremistas. Sequer sua tentativa, na presidência do TSE, de construir uma interface de diálogo com o bolsonarismo em sua frente militar serviu para aplacar o ódio que os bolsonaristas lhe devotam. Foi Barroso que celebrou um convênio com as Forças Armadas, dando ao Exército protagonismo no debate sobre a lisura das urnas eletrônicas. O tiro saiu pela culatra, e os militares encamparam o discurso bolsonarista de desacreditar a urna eletrônica.
O alvo predileto, contudo, é o ministro Alexandre de Moraes, o “Xandão”, como lhe alcunharam. Alçado a uma espécie de nêmesis do Bolsonarismo, foi tratado como ditador por Bolsonaro e suas hostes ao conduzir os inquéritos que investigam as redes disseminadoras do golpismo radical em meios de comunicação públicos e privados. O ódio que lhe é destinado pela seita só piorou quando Moraes, na presidência do TSE, conduziu a disputa eleitoral de 2022 e pôs freio aos abusos bolsonaristas.
Antes mesmo disso, na tentativa de criar um clima golpista no Sete de Setembro de 2021, Bolsonaro dirigiu a parte mais impactante de seu discurso diretamente contra Moraes, afirmando inclusive que não mais acataria suas decisões. Com o fracasso da mobilização golpista veio o pedido de desculpas feito por intermédio de uma carta, redigida por Michel Temer e dirigida especialmente ao detestado ministro (aliás, indicado ao STF por Temer). Moraes, que nos delírios bolsonaristas figura como um baluarte do comunismo, sempre foi – e é – um conservador. Enquanto ocupava o Ministério da Justiça, gravou vídeos arrasando plantações de maconha com um facão; na qualidade de secretário de Segurança Pública em São Paulo, reprimiu duramente manifestações de professores, estudantes secundaristas e militantes contrários ao aumento da tarifa dos ônibus.
Desde sua chegada ao STF, Moraes agiu de acordo com seu perfil punitivista, que em geral marca muitos promotores de justiça, sejam atuantes no Ministério Público ou egressos dele – como é o caso do ministro, que atuou no MP paulista por onze anos (entre 1991 e 2002). De início, tal perfil lhe manteve como um dos apoiadores da Operação Lava Jato no STF, respaldando os acordos de leniência (que são como delações premiadas realizadas por empresas) e outras decisões da operação conduzida pelo conluio do juiz Sergio Moro com os procuradores chefiados por Deltan Dallagnol.
Em 2017, em seu primeiro ano na corte, Moraes votou pela revogação das garantias penais de governadores, tornando-os mais vulneráveis a investigações e ações penais. Foi o que viabilizou a investigação, com posterior prisão, do então governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel. Durante o governo Bolsonaro, o ministro continuou agindo segundo tal lógica. Porém, o contexto para essa atuação incisiva se tornou cada vez mais desafiador.
Durante o primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro, Alexandre de Moraes foi o relator de uma série de investigações e ações judiciais voltadas a combater a face delinquente do bolsonarismo. O polêmico Inquérito das fake news atingiu em cheio os mecanismos de comunicação virtual voltados a incitar mobilizações violentas contra o STF. Nessa batalha, chegou até a determinar o bloqueio do aplicativo de mensagens Telegram – tido pelo bolsonarismo como um refúgio seguro. A investigação sobre interferência na Polícia Federal escancarou a intenção de Bolsonaro em fragilizar as instâncias de investigação e controle da corrupção. O inquérito contra atos antidemocráticos se dirigiu contra todo o braço armado do bolsonarismo envolvido em manifestação golpista. Nesse mesmo sentido, foi o responsável por decretar a prisão em flagrante do então deputado Daniel Silveira, que ameaçou ministros do STF num vídeo. Depois, Silveira foi condenado pelo STF a uma dura pena, mas recebeu de Bolsonaro a graça presidencial, medida que o livrou de sua pena.
Contudo, as decisões envolvendo o ministro Alexandre de Moares não foram polêmicas apenas pelo conteúdo, mas também pela forma – a começar pelo inquérito das fake news (4781/DF), instaurado de ofício em março de 2019 pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, sem a participação da Procuradoria-Geral da República. Moraes foi por ele designado como relator do inquérito. À época, a PGR era ainda chefiada por Raquel Dodge, que determinou arquivamento do inquérito reivindicando a necessidade de participação do Ministério Público, em respeito ao processo acusatório. Contudo, Moraes desconsiderou essa decisão de Dodge, já que o inquérito era conduzido no âmbito do próprio tribunal e com base no seu regimento interno, sem participação do MP.
É importante lembrar esse posicionamento de Raquel Dodge, pois muito da conduta posterior do STF decorre da omissão do PGR indicado por Bolsonaro, Augusto Aras. Inerte e até mesmo complacente diante de reiterados abusos cometidos pelo presidente e por seus aliados, Aras transformou a Procuradoria num posto avançado dos interesses judiciais do governo – somando-se aos esforços de subordinados diretos da Presidência da República: a Advocacia-Geral da União e o Ministério da Justiça.
Essa cumplicidade deixou o STF e o TSE (que conta com a participação de ministros do Supremo) diante de um dilema. Se simplesmente aquiescessem com os posicionamentos do PGR, deixariam de atuar como cortes capazes de impor freios aos excessos do Poder Executivo e de seus aliados. Assim, cada vez mais o Supremo e o TSE passaram a atuar a despeito do que requeria a PGR, de modo a defender a institucionalidade democrática negligenciada por Augusto Aras e sua equipe.
Ao agir dessa forma, os tribunais alimentaram ainda mais a ira bolsonarista contra si, sendo atacados como parciais e dedicados a perseguir o presidente da República. Diante de tais ataques, que se somaram àqueles das redes bolsonaristas, incitando-os, os tribunais têm que se contrapor ao bolsonarismo não apenas para salvaguardar o arcabouço institucional de modo geral, mas para resguardar a si próprios. Isso dá ao bolsonarismo mais um motivo para se queixar de uma suposta parcialidade dos tribunais e de uma perseguição implacável.
Cria-se, assim, um círculo vicioso, uma armadilha institucional em que, diante da necessidade incessante de frear os repetidos abusos do bolsonarismo, os tribunais superiores aparentam ser contra o bolsonarismo em particular – isto é, contra um determinado grupo político e, consequentemente, contra seu líder. Essa aparência de partidarismo judiciário gera um desgaste significativo da imagem dos tribunais e de seus membros, engendrando novas ações de contestação à autoridade do Judiciário – das quais os eventos da intentona bolsonaresca do 8 de janeiro representaram o ápice.
Em tal contexto se torna mais difícil avaliar até que ponto as duras decisões do STF – e de Alexandre de Moraes em particular – se justificam diante da ameaça real ao estado democrático de direito representada pelo extremismo bolsonarista ou extrapolam o que seria razoável justamente por estarmos num estado democrático de direito. A dificuldade decorre do fato de o extremismo submeter a estrutura institucional a uma operação anormal, colocando desafios extraordinários a essas mesmas instituições – dentre as quais figura o Judiciário.
Portanto, o campo democrático enfrenta um dilema. Devemos aceitar as medidas duras – quiçá excepcionais – do STF no combate aos golpistas ou devemos justamente reforçar nosso compromisso com a estrita legalidade e um devido processo legal rigoroso? Há argumentos razoáveis, pragmáticos e de princípios para ambos os lados. Porém, consideramos que, nesses dois níveis, há melhores razões para dar amplo respaldo ao Supremo Tribunal Federal nesse contexto de tentativas reais de golpe de Estado e disfuncionalidade profunda dos órgãos de segurança e investigação.
No campo principiológico, nenhuma teoria política liberal dá legitimidade a ações golpistas violentas como as de 8 de janeiro. Nem mesmo uma teoria profundamente tolerante com todo tipo de crença e conduta individual, como a de John Rawls, respaldaria reivindicações de golpe de Estado com chances reais de implementação.
No campo pragmático, é preciso ponderar com realismo as possíveis consequências desse amplo endosso ao STF. Há quem demonstre preocupação legítima de como a tolerância a ações excepcionais, em períodos excepcionais, endosse também a medida de ações excepcionais em um futuro momento de normalidade democrática, possivelmente se voltando contra a própria democracia e seus defensores. Essa é uma preocupação legítima, mas em alguma medida ingênua, tendo em vista o contexto. Nenhum movimento pela moderação na atual conjuntura implicaria a moderação de uma corte antidemocrática no futuro. Abusos já foram cometidos pelo Judiciário e pelo Supremo em tempos de normalidade democrática, muitas vezes contra o campo progressista, sem nenhuma preocupação com a coerência e consistência na aplicação das normas jurídicas. Além disso, o risco é alto demais. Se for vitorioso o movimento golpista, de fortes traços fascistas, que demanda intervenção militar, é o fim do estado democrático de direito, bem como da legalidade e do devido processo que tanto se queria proteger.
Sem dúvida alguma, haverá uma repactuação democrática no futuro para estabelecer o que seria a volta à normalidade democrática após o golpismo for debelado – em particular no atinente à atuação das cortes. A sinalização recente do STF, no sentido de priorizar a colegialidade em decisões críticas, já parece apontar nessa direção.
Porém, essa é uma política que só poderá ser construída se houver estado democrático de direito. Enquanto prevalecer a disfuncionalidade na PGR, nas Forças Armadas e nas demais forças de segurança, sobram-nos poucas alternativas à escolha de endossar uma carta branca (ou quase) ao Xandão.
*Este texto integra uma série de análises produzidas para a piauí por integrantes do grupo Professores da FGV pela Democracia.