Em depoimento a Angélica Santa Cruz
“No primeiro semestre de 2022, estávamos saindo da pandemia. O presidente da República conseguira transformar a eleição em um plebiscito entre ele e a democracia. Eu acompanhava um grupo de WhatsApp bolsonarista, composto por amigos meus de décadas. Era como uma ponte para um outro mundo. Ali, as pessoas com quem eu ia na juventude aos bailinhos de bairro e com quem tenho relações de afeto até hoje – sou padrinho dos filhos de dois deles – mostravam uma quantidade imensa de preconceitos e faziam a defesa da violência policial ou diziam que o “Xandão” era um comunista que estava preparando o golpe do Lula. Como juiz federal, acostumado ao fato de não poder ter filiação partidária e a não julgar pessoas, mas a arbitrar as suas narrativas, aprendi a manter o distanciamento observando essas bolhas. Também tenho, por exemplo, amigos antigos que vivem do movimento sindical até hoje, e vivem felizes, achando que têm razão em tudo.
Mas o grupo dos bolsonaristas começou a falar abertamente em golpe e, com a proximidade do pleito, em outubro, o presidente da República ia aumentando o tom dos ataques às instituições. A oposição reagia, mas não conseguia tomar iniciativa. A sociedade civil estava desorganizada. O movimento sindical estava em uma crise da qual não sei se um dia vai sair. Os estudantes não estavam mobilizados. Os grupos de esquerda são sempre radicais quando estão nas redes sociais – precisamos fazer isso, vamos fazer aquilo – mas na hora da ação é muito pouco. Até o PT perdeu a sua penetração nos movimentos sociais. O Supremo Tribunal Federal passou a concentrar a defesa do estado democrático de direito contra os abusos do Executivo. Ou seja, o Judiciário é que estava fazendo um papel de resistência que não é dele. O fato de o Lula estar em primeiro lugar nas pesquisas também dava uma acomodada em todo mundo.
Essa paralisia me angustiava, porque o bolsonarismo estava sinalizando algo. Havia um sério risco de quebra da ordem democrática partindo do próprio presidente da República. A invasão do Capitólio em Washington acabara de acontecer, em janeiro de 2021. Fui percebendo que realmente estava em jogo uma coisa fundamental – e depois a história mostraria não se tratar de meras ameaças retóricas.
Fui ficando incomodado, achando que não podia ficar quieto vendo os meus valores de vida desmoronarem. Comecei o mês de março resolvido a fazer a minha parte.
Em 2007, eu conhecera o historiador Cássio Schubsky. Também formado em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, conhecida tradicionalmente como Largo de São Francisco, ele publicara no mesmo ano o livro Estado de Direito Já – Os trinta anos da Carta aos Brasileiros. É o mais completo apanhado histórico sobre a Carta aos Brasileiros de 1977. Por questões de trabalho, viajávamos juntos para Brasília e ficávamos no mesmo hotel. Ele, que tinha uma conversa leve e fumava muito, me contava os bastidores da carta que representou o ponto de inflexão que fez o Largo de São Francisco passar do alinhamento com o regime militar ao apoio à redemocratização do país, acompanhando uma posição já adotada pelos estudantes. Schubsky falava de como a coisa se espalhou, como foram as alianças, as brigas de egos, os detalhes. As nossas conversas e o livro ficaram guardados em algum lugar do meu inconsciente e então, quinze anos depois, voltaram à tona.
Na primeira visita que fiz ao Largo de São Francisco depois da pandemia, circulei pelo pátio e vi uma placa entre as colunas onde se lia “Ditadura Nunca Mais” e fora colocada ali em comemoração aos trinta anos da leitura da Carta aos Brasileiros. No 11 de agosto seguinte, essa carta faria 45 anos. Eu pensei: diante das ameaças à democracia, por que não ler uma nova Carta aos Brasileiros? Não mais pedindo a volta do estado de direito, mas em defesa do estado democrático de direito? Não era uma ideia genial, era até óbvia. A data não devia passar em branco. Tirei o livro do Cássio Schubsky da prateleira, coloquei do lado da cama e comecei a relê-lo antes de dormir. Também passei a pesquisar sobre a Carta de 1977 em outras fontes.
Estávamos a cinco meses do mês de agosto. Como tenho formação em teatro, onde aprendi a ter disciplina e respeito pelo trabalho coletivo, em que muita gente se junta para resolver muitos problemas e no fim consegue estrear uma peça, passei a mentalizar o dia 11 de agosto como se fosse uma data de estreia. Comecei testando a ideia. Fui contando a amigos de décadas, como o desembargador federal José Lunardelli. Em um almoço com ele, veio a ideia de organizar um encontro com as várias gerações da faculdade com militância política que não se viam havia muitos anos e se distanciaram ainda mais com a pandemia. Depois contei sobre a ideia para o advogado Roberto Vomero Monaco, o Tatuí, amigo de faculdade e também frequentador das nossas rodas informais de discussões políticas. Tatuí achava um belo pretexto para aglutinar muita gente dispersa, algumas até com depressão causada por uma mistura de pandemia com a ascensão da extrema direita – e virou um dos articuladores do encontro. A ideia era juntar as pessoas e depois fazer a carta, em um movimento crescente e com a participação de todos.
Em pouco tempo criamos uma comissão organizadora do encontro, formada por colegas de turma e novas gerações e passamos a procurar um lugar para nos encontrar. Enquanto escolhíamos o melhor lugar, o movimento foi crescendo. Foram chegando personagens importantes e amigos de muita gente.
Após duas semanas, já percebíamos o futuro êxito. Um contato foi amarrando o outro e, assim, construímos uma rede.
No restaurante Quintal do Espeto, demos o primeiro passo de um movimento que culminaria com a nova Carta aos Brasileiros dali a pouco mais de dois meses. Apesar de falarmos abertamente da Carta, pouca gente deve ter percebido o encadeamento dos eventos. Eu tinha plena consciência de onde queríamos chegar. O encontro foi um sucesso. Juntamos mais de duzentas pessoas em plena segunda-feira, das várias gerações da comunidade jurídica, todos com esposas, maridos e filhos. Com o tempo, um grupo de seis pessoas foi tomando a frente das articulações, de acordo com a dinâmica dos acontecimentos. O êxito dessa nova carta passava pelo caráter suprapartidário e os nomes desse grupo representavam isso: Dimas Ramalho, Luiz Antonio Marrey, Antonio Roque Citadini, Roberto Vomero Monaco, Thiago Pinheiro Lima e eu. Todos não envolvidos na disputa eleitoral e com trajetórias diversas, mas marcadas na luta pelo restabelecimento da democracia. A maioria era membro da carreira jurídica com vedação expressa à atividade político-partidária e todos eram conscientes de nossas diferenças e limitações institucionais. Como precisávamos de um texto básico para começar a conversar com as pessoas, me prontifiquei a fazer a primeira versão. Senti um frio na barriga. Quem era eu para tentar redigir uma nova Carta aos Brasileiros? Havia tanta gente mais qualificada. E não queria passar por petulante, era preciso cuidado. Travei durante dois dias.
O texto da carta nada tem de especial, é curto e direto, mas suas palavras foram escolhidas a dedo. Mesmo com o então presidente construindo as condições reais para um golpe de estado, evitamos a palavra. O termo golpe estava muito vinculado à nossa história recente. O país havia se dividido em relação ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Teria sido golpe ou não? Nossa Carta não era o espaço para essa polêmica. Queríamos reunir todos os democratas, pró e contra o impeachment. Utilizamos uma longa lista de sinônimos: ruptura da ordem constitucional, retrocesso democrático, tentativa de desestabilizar a democracia, ameaça às instituições, desvarios autoritários, desacato ao resultado das eleições etc. Foi até divertido escolher o melhor sinônimo em cada frase. Thiago Pinheiro foi o primeiro a arriscar um número de assinaturas, que achei otimista demais: teremos dez mil!
A primeira versão do texto foi sofrendo pequenas alterações, incorporando sugestões – as mulheres, a começar pela minha companheira, por exemplo, nos abriram os olhos para a representatividade: era preciso colocar a palavra “brasileiras” no título! Depois tiramos também a expressão nós da comunidade jurídica clamamos às brasileiras e aos brasileiros… As pessoas queriam assinar e a restrição das assinaturas apenas às carreiras jurídicas foram perdendo o sentido.
A fase seguinte foi articular o respaldo do Largo de São Francisco, essencial para ratificar o caráter suprapartidário e resgatar o espírito da Carta de 1977. Descobrimos, então, que já estava sendo gerado um outro manifesto em defesa do respeito do resultado das eleições por entidades empresariais, que teria publicação na grande imprensa e leitura no dia 11 de agosto no Salão Nobre, com apoio oficial da Faculdade! Alguém já tinha tido a mesma ideia! Parecia um banho de água fria, mas depois percebemos que as iniciativas se complementavam. Entramos em contato com o diretor da Faculdade de Direito, Celso Fernandes Campilongo, e marcamos uma reunião. Ele foi receptivo à nossa carta também e, junto com a professora Ana Elisa Bechara, vice-diretora do Largo de São Francisco, se juntou ao grupo. Tivemos conversas delicadas com os dois, porque queríamos a leitura de nossa carta, que a essa altura já representava a sociedade civil, também no dia 11 de agosto na Faculdade, e a dos empresários já estava agendada. Um nome de peso foi fundamental nesse processo: o do ex-ministro do STF Celso de Mello, que não só assinou a carta como aceitou o convite para fazer a leitura [o ex-ministro acabou não participando da leitura, por razões de saúde].
O texto, já com as assinaturas dos subscritores originários, cada um deles virando também uma espécie de autor, foi disponibilizado na internet para adesão pública. O Thiago e eu passamos a organizar a lista por categorias, a carta foi ganhando espaço nos sites especializados na área jurídica, Conjur e Migalhas, e, depois, na grande imprensa. Começamos a ir atrás dos signatários da primeira carta. Para aumentar a adesão, procuramos o grupo Prerrogativas, que colocou sua estrutura à disposição para coletar novas assinaturas e facilitou nosso acesso aos grupos mais à esquerda e aos artistas. Nosso movimento ganhou força. A adesão de grandes empresários à nossa carta às vésperas de sua divulgação oficial foi uma surpresa. O então presidente da República começou a atacar a carta publicamente. Nós nunca respondemos. Um grupo de artistas, como Chico Buarque, Lázaro Ramos, Caetano Veloso e Fernanda Montenegro, gravou um vídeo lendo trechos da carta – até hoje não consigo assistir sem ir às lágrimas.
Fui perdendo a noção completa do que estava acontecendo, com muita gente chegando para ajudar. Foi como um filho chegando na idade adulta e passando a ser responsável pela própria vida. Não reclamei, compreendi, mas, como todo pai, tive meus momentos de sofrimento. Agora a Carta tem vida própria e passa a ser uma história a ser contada. No dia da leitura, andei pelas Arcadas meio anonimamente, sem saber qual era a minha função ali, como um dramaturgo que deixa de ser convidado para o ensaio principal.
A Faculdade decidiu que as duas cartas, a nossa e a dos empresários, seriam lidas na manhã de 11 de agosto. A deles, no Salão Nobre; a que nós começamos a articular, nas Arcadas. Claro que, no dia, ficou meio confuso, A minha ex-mulher estava lá no dia e me disse: ‘Ricardo, não te vi no Salão Nobre!’ Expliquei para ela: ‘A que articulamos foi nas Arcadas.’ Ela respondeu: ‘Ah, devia ter explicado, ninguém entendeu lá!’ Mas a leitura foi inesquecível. Mantivemos os nomes de quem leria a carta em segredo até o último momento – e a leitura incorporou a preocupação do país com a representatividade.
Um episódio tão marcante não poderia se perder no tempo. Alguém precisava contar sua história, fazer seu registro. Nossa fonte de inspiração, a Carta aos Brasileiros, lida pelo professor Goffredo da Silva Telles Júnior no pátio da Faculdade de Direito da USP em agosto de 1977, levou trinta anos para ser retratada, justamente no livro escrito por Cassio Schubsky. Nos anais da faculdade não há qualquer registro do fato mais importante ocorrido naquele ano nas Arcadas.
Mesmo com 1 milhão de assinaturas e lida ao vivo para todo o país, pouco se sabe sobre como foi gerada a carta de 2022. Por ter vivenciado toda a sua construção, fui compelido a contar a sua história. Tudo foi muito rápido. Tive medo do esquecimento. Lanço agora o livro Bastidores – A Articulação da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito (Editora Hucitec). Optei por escrever em primeira pessoa, assumindo a parcialidade do relato. Não quero e não devo ter o monopólio das possíveis narrativas. Passagens importantes não contaram com a minha participação direta, pois ficaram a cargo de outros agentes do processo. Não procurei a fundo descobrir como elas se passaram. Outros poderão aclará-las ou dar versões decorrentes de seus pontos de vista.
Olhando para trás, um ano depois, acho que nós ajudamos a rearticular a sociedade civil em um momento importante. Sabíamos que teríamos êxito, mas não imaginávamos que desse tamanho. Não gosto nada de parecer pedante, mas o Paulo Teixeira (atual ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar), que é do PT e foi meu colega de turma do Largo de São Francisco falou: “Vocês ajudaram a delinear uma frente ampla que permitiu a manutenção da democracia e de certa forma representa esse atual Governo Lula, porque o PT faz parte dessa frente.” A gente jogou a fagulha num lugar que deu muito fogo.
Nosso grupo de articuladores originais sempre usou muitas metáforas de futebol ao longo do processo. O Dimas, o Campilongo e eu somos palmeirenses, o Roque Citadini é corintiano, o Marrey é santista, o Thiago é são-paulino. Depois do sucesso da carta, o Citadini me disse: ‘Ricardo, um gol de bicicleta é uma obra de arte, não se faz dois na vida.’ O nosso gol foi a Carta, não vou fazer mais um. Por isso precisava escrever o livro.