Em plena pandemia de coronavírus, um emprego com carteira de trabalho assinada é a segurança que resta aos cerca de 33,7 milhões de trabalhadores formais do setor privado no Brasil. Mas nem isso parece suficiente, já que o governo vai e vem com planos para cortar direitos garantidos por leis trabalhistas. Na noite do último domingo (22), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) publicou a Medida Provisória 927, autorizando a suspensão de contratos de trabalho por até quatro meses – sem pagamento de salário. O texto também mencionava uma ajuda compensatória, com valor definido livremente entre empregado e empregador. Duramente criticado, Bolsonaro se viu forçado a recuar e revogou o polêmico artigo. Mas a sensação de instabilidade permanece. Em janeiro deste ano, a emissão de carteiras de trabalho físicas caiu 44% em relação ao mesmo mês de 2019 e 47% em relação a janeiro de 2018. Assim como muitos brasileiros, passei os meses de fevereiro e março tentando tirar uma carteira para o primeiro emprego.
Terça-feira, 11 de fevereiro
Era um dia chuvoso e fiz chocolate quente para acompanhar a transmissão da CPMI das Fake News. Eu assistia ao depoente Hans River mentir na TV Câmara quando meu celular tocou. Era a editora do site da revista piauí me dando boas notícias – eu tinha conseguido a vaga de estágio. Respirei fundo e alcancei o pedaço de papel mais próximo para anotar os documentos que precisaria levar à redação no dia seguinte. Entre eles, minha carteira de trabalho. Mas eu não tinha carteira de trabalho.
Na procura por possíveis estágios, durante todo o mês de janeiro eu tinha tentado agendar pelo site do Ministério do Trabalho um horário para emissão da carteira de trabalho física. O Ministério do Trabalho foi extinto em 2019 por Bolsonaro e incorporado ao Ministério da Economia com o nome de Secretaria de Trabalho, mas, no site de agendamento, o velho nome se mantém. Nos postos próximos à minha casa, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, não havia horário disponível. Baixei o aplicativo do governo federal e tirei uma carteira de trabalho digital, sem entender direito como ela funcionaria. Com o resultado positivo da seleção de estágio, decidi tirar também a carteira de trabalho física. Não demorou muito até eu perceber que isso não seria nada simples.
Quarta-feira, 12 de fevereiro
Eu deveria estar na redação da revista às 15 horas com todos os documentos, incluindo a carteira de trabalho que eu não tinha. Sem horário agendado, acordei cedo para ir à agência regional do Ministério do Trabalho em São João de Meriti – que mantém a placa com o antigo nome e assim é chamado por funcionários e cidadãos. Imaginei que, se eu explicasse a urgência, alguém pudesse me ajudar. A agência tem três guichês e uma pequena sala improvisada com divisórias de plástico. Divide com outros órgãos federais e estaduais o espaço do Rio Poupa Tempo da Baixada, em São João.
O vaivém constante de pessoas e documentos, as longas filas de retirada de senhas para diversos serviços, mais filas para a chamada das senhas – tudo no Poupa Tempo me dava a sensação de que eu passaria horas naquele lugar. Mas, apesar das filas por todo lado, as cadeiras em frente ao balcão destinado à emissão de carteiras de trabalho estavam vazias. O monitor para chamar as senhas mal era utilizado. Primeiro achei estranho. Depois, que talvez fosse meu dia de sorte. Logo descobri que os guichês não estavam vazios porque o serviço se tornara eficiente, e sim porque a emissão de carteiras de trabalho estava parada. “Estamos sem papel”, disse o atendente.
O papel em questão não é um papel qualquer, mas a folha em que são impressos os dados do trabalhador. Ele chega até os postos em lotes específicos e tem de ser anexado à carteira, tornando-se a primeira página do documento. É um procedimento de segurança usado para evitar fraudes na documentação. O problema é que, se esse papel estiver em falta, as carteiras não podem ser emitidas. “Para finalizar a emissão, a gente depende desse papel, que vem da Casa da Moeda”, disse Sebastião Simões, servidor do Ministério das Cidades emprestado há dez anos ao antigo Ministério do Trabalho. “Como eles estão em greve na Casa da Moeda, não temos nem previsão de quando o serviço vai voltar.”
Primeiro me desesperei com a minha situação. Depois, com a situação de todas as outras pessoas que precisavam da carteira de trabalho física. Perguntei desde quando o tal papel estava em falta e quantas pessoas seriam afetadas. Simões disse que não podia me dar informações “confidenciais” sem a autorização do chefe da agência federal, Rodrigo Souza, que tinha faltado naquele dia. O máximo que eu poderia fazer era cadastrar meus dados e esperar. No protocolo, a data prevista para a entrega era dia 17 de fevereiro, cinco dias depois. Simões já foi logo dizendo que o prazo não era certo. “Vai ligando para saber se a carteira está pronta”, recomendou.
Cheguei à redação da piauí para o estágio. Soube que a carteira digital poderia ser usada para a contratação e tive a primeira reunião com os editores. Mencionei a falta de papel para as carteiras físicas e descobri que o que parecia um problema pessoal era uma pauta. Minha primeira tarefa foi ir atrás de respostas para o sumiço do papel. Meus dias viraram uma saga tentando juntar pontas soltas e informações contraditórias.
Segunda-feira, 17 de fevereiro
Cheguei à agência para retirar a carteira no dia marcado. Simões, que havia me atendido da última vez, conversava com duas mulheres em frente ao balcão. Veio falar comigo e seu rosto de repente ficou sério. Não havia sinal do papel. Nem do chefe da agência, que dessa vez tinha ido ao médico. Expliquei que eu era jornalista e pretendia escrever uma matéria sobre a falta de papel. Simões me levou à sala improvisada, onde estava outra servidora, para tentar me explicar melhor que diabos estava acontecendo. Eles abriram um grande armário e dali retiraram uma carteira de trabalho. Mostraram como, antes da primeira página, há um espaço próprio para receber o tal papel que estava em falta. Simões me disse que havia trezentas pessoas na fila. “Só trezentas?”, perguntou, retoricamente, a outra servidora. “Com certeza tem muito mais.” Mas ninguém queria falar de números exatos sem a presença do chefe.
Segundo eles, o papel vinha da Secretaria de Estado de Trabalho e Renda (Setrab), uma secretaria do governo do Rio de Janeiro, que por sua vez o recebia de Brasília, da Casa da Moeda. Novamente a Casa da Moeda parecia ser o foco do problema. Eu ainda aguardava uma resposta da assessoria de imprensa do órgão federal, procurada no dia 14. Por e-mail, procurei também a Setrab, que não tinha informação ou reclamação de fila nas emissões de carteira em nenhum dos postos. Também disse que não era responsável por distribuir esse papel para as agências. Na verdade, quem entregava esse material era a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, vinculada à Secretaria de Trabalho e, em resumo, ao Ministério da Economia.
A Secretaria de Trabalho – vinculada ao Ministério da Economia – também disse não ter conhecimento sobre a falta de papel. Por telefone, a assessoria informou que o plano do governo federal seria acabar gradualmente com as carteiras de trabalho físicas. Mais informações só poderiam ser passadas através de uma solicitação por e-mail, enviada e nunca respondida.
Terça-feira, 18 de fevereiro
Finalmente recebi uma posição da Casa da Moeda, a instituição que, até agora, era a chave para entender a confusão dos papéis. E qual não foi minha surpresa quando, ao ler o e-mail, descobri que eles não têm nada a ver com a confecção das carteiras de trabalho. “A informação de que a liberação de carteiras está atrelada a qualquer questão envolvendo esta empresa pública está equivocada”, dizia o e-mail. Fiquei imaginando de onde havia saído toda aquela história que culpava a Casa da Moeda pelo atraso. Talvez uma Casa da Moeda imaginária em São João de Meriti? Eu tinha voltado à estaca zero.
Quarta-feira, 19 de fevereiro
Liguei para a agência de São João. Nada do papel nem da minha carteira de trabalho. O número de pessoas esperando suas carteiras agora tinha subido para quinhentos, de acordo com o servidor que me atendeu. Mais uma vez, insistiram em me dizer que a greve da Casa da Moeda tinha atrasado o serviço. “Mas a assessoria falou que esse papel não é emitido por eles”, disse eu. A voz do outro lado da linha, que não quis se identificar, gaguejou e se apressou em desligar o telefone. A última recomendação foi que eu deveria continuar ligando.
Quinta-feira, 20 de fevereiro
Falei com o chefe da Seção de Políticas de Emprego da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Rio de Janeiro, Ricardo Leite, e finalmente descobri pistas sobre o real caminho das carteiras até os postos. Por telefone, Leite informou que o Ministério da Economia fornece os materiais – incluindo o papel – para a Superintendência Regional, que faz a distribuição nos postos locais do Ministério. Lá, as carteiras são confeccionadas com os dados de cada cidadão. Leite disse que, segundo informações repassadas a ele, a falta do papel no Poupa Tempo da Baixada só tinha durado um dia. Mas eu já estava havia mais de uma semana esperando minha carteira. Segundo ele, se tratava de um problema pontual e era muito simples de ser resolvido, bastava enviar mais papel. Não foi difícil concordar com ele. Leite contou que só fora avisado dessa situação na terça (18) e imediatamente mandou a reposição. “Inclusive já deveria ter chegado”, acrescentou. “Talvez depois do Carnaval.”
A carteira profissional foi criada em 1932. Em 1969, passou a se chamar carteira de trabalho e previdência social. Tornou-se um dos documentos de referência do brasileiro, garantindo acesso a serviços como seguro-desemprego, previdência social e FGTS. Em 2019, foi criada a carteira de trabalho digital, que deveria substituir aos poucos o documento físico. De acordo com a Lei da Liberdade Econômica, sancionada em setembro por Bolsonaro, as carteiras deveriam ser emitidas preferencialmente no meio eletrônico. Segundo Leite, as empresas já podem contratar sem a carteira física, usando apenas o documento digital, disponível em aplicativo do governo federal. “Estamos na fase de enterrar as carteiras físicas”, disse. Mas explicou que, no momento, não há planos de extinguir de vez a emissão do documento, já que as pessoas ainda solicitam o serviço. Leite afirmou que, enquanto houver demanda, haverá carteira física. Para ele, a transição do meio físico para o digital virá com o tempo. “Assim que empregados e empregadores perceberem que não precisam mais do documento físico, vão naturalmente parar de solicitar novas carteiras”, completou. No Rio de Janeiro, o enterro da carteira de trabalho física ainda não tem data marcada.
Sexta-feira, 21 de fevereiro
Era sexta-feira de Carnaval quando liguei para a agência regional de São João. Minha carteira estava pronta, e Simões me avisou que eu já poderia buscá-la. Mas o papel ainda não havia chegado. “Nada”, disse ele, “deve ter ainda umas quinhentas carteiras na fila.” Como a minha carteira de trabalho ficou pronta sem papel é um mistério que não conseguiram explicar. O chefe dessa vez estava de férias, e Sebastião desligou o telefone sem que eu pudesse fazer mais perguntas.
Terça-feira, 3 de março
Cheguei ao Poupa Tempo de São João de Meriti para buscar a carteira. Mas dois seguranças bloqueavam a entrada, e um aviso colado na porta de vidro informava que a unidade estava fechada por causa de problemas administrativos com o governo do Rio. Outras unidades do Rio Poupa Tempo – Caxias e Bangu – estavam na mesma situação. Quem tinha horário agendado para qualquer serviço deveria tentar reagendamento em outro posto. Quem iria buscar o documento pronto não tinha o que fazer. Era o meu caso. Mas também o de Diva Maria Gomes, que fora buscar a carteira de identidade do seu filho, André Luiz, de 42 anos. Ele perdera todos os documentos em um assalto e conseguira retirar a segunda via da maioria, menos da identidade. Conseguira um emprego e precisava do documento. “Quem vai empregar alguém sem identidade?”, desabafou a mãe.
As unidades do Rio Poupa Tempo paralisadas por problemas administrativos – Baixada, Bangu e Duque de Caxias – realizam cerca de 15 mil atendimentos por dia, segundo o consórcio responsável pela administração. Absorvem principalmente a demanda da população da Baixada Fluminense e da Zona Oeste, como Francisco Souza, de 22 anos, morador de Nova Iguaçu. Ele estava no Poupa Tempo de São João de Meriti para dar entrada no auxílio-desemprego. Só tinha conseguido vaga lá. As portas fechadas foram um banho de água fria em quem já estava desempregado havia dois meses. “Vou tentar agendar de novo em outro lugar, mas não sei se vou conseguir”, disse. A Setrab, órgão do governo do Rio responsável pela gestão do Poupa Tempo, disse em nota que as unidades foram fechadas porque o governo atrasou o pagamento do consórcio que administra o serviço. As faturas de dezembro de 2019 e janeiro de 2020 foram pagas, segundo a Setrab, no mesmo dia de minha visita, 03 de março. “A reabertura agora é de inteira responsabilidade dos administradores do consórcio”, escreveu a assessoria. Eu que esperasse.
Quinta-feira, 5 de março
Entrei em contato com o Consórcio Central da Cidadania, que administra há onze anos, em regime de concessão, os postos do Rio Poupa Tempo fechados por falta de pagamento. O consórcio é responsável pela estrutura das unidades e pelos funcionários terceirizados encarregados do atendimento junto com os servidores públicos. De acordo com a administração do consórcio, a Setrab havia quitado no dia anterior a parcela referente ao mês de janeiro. O governo precisava pagar as dívidas anteriores, que somam mais de R$ 20 milhões, segundo Sergio Rodrigues, presidente da empresa responsável pelo consórcio. Mesmo assim, afirmou que as unidades seriam reabertas no dia seguinte, para evitar que a população fosse prejudicada.
Segunda-feira, 9 de março
Cheguei ao Rio Poupa Tempo de manhã para o derradeiro episódio da saga da carteira. Nos guichês, os servidores mexiam em uma pequena pilha de carteiras de trabalho espalhadas. Eles abriam e fechavam vários exemplares, conferindo números e dados. Entreguei o protocolo e disse meu nome. Depois de quase um mês, procuraram minha carteira de trabalho no armário. “Pronto, carteira em mãos”, disse o servidor. Eu mal conseguia acreditar. Por telefone, Ricardo Leite, chefe da Seção de Políticas de Emprego da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, disse que o problema dos papéis já estava resolvido e o material necessário havia sido enviado antes do Carnaval. Mas no Poupa Tempo os servidores contaram que o papel só havia chegado na sexta-feira (6). De qualquer forma, a confecção das carteiras de trabalho havia sido retomada. Perguntei quantos exemplares haviam sido acumulados em filas de espera durante as últimas semanas. Só quem poderia me dizer isso era o chefe da agência regional. Mas, de novo, ele não estava.
Terça-feira, 24 de março
O coronavírus se espalhou pelo mundo. Cidades inteiras estão em quarentena. Pela primeira vez na história, os Jogos Olímpicos foram adiados. No Rio, as praias estão vazias, e eu não saio de casa desde o dia 16. Minha família está com medo da doença chegar a São João de Meriti, pois sabemos que o sistema de saúde do município não vai aguentar. A orientação é para ficar em casa. As contas continuam chegando. Uma amiga que mora em um bairro próximo me avisa que a Secretaria Municipal de Ordem Pública enviou fiscais para fecharem o comércio em sua rua. Barbearias, armarinhos, lojas de material de construção – tudo está sendo fechado, até o trailer que vende salgados. Os autônomos não sabem o que vai ser dos próximos meses. Mais que nunca sentimos a importância de leis trabalhistas que asseguram direitos. Mas nem isso parece ser suficiente. Na contramão do resto do mundo, o governo brasileiro ainda não apresentou um plano que proteja os trabalhadores. Minha carteira de trabalho, que custou tanto para ser emitida, fica no armário ao lado do meu computador. No 3×4 da fotografia, vejo uma Camille preocupada, sem sorrir e com a testa levemente franzida. A pressa para tirar logo a carteira me deixou assim. Parecia um prenúncio do que estava por vir.