Desde o dia 3 de abril de 2017, parte dos judeus brasileiros passou a conviver com um dilema: como dizer minha religião, minha identidade cultural e étnica, sem ser automaticamente associado ao bolsonarismo? Naquela noite, no clube A Hebraica, no Rio de Janeiro, o então deputado federal proferiu frases preconceituosas e regadas pelo ódio sobre pessoas pretas e quilombolas. Arrancou aplausos da plateia, na qual havia cerca de trezentas pessoas.
Do lado de fora do clube, dezenas de judeus se manifestavam contra a presença do futuro presidente do Brasil naquele ambiente. Ainda que esquecidos nas críticas feitas a uma supostamente monolítica comunidade judaica, esses judaus ainda resistem, cinco anos depois.
Dois grupos de judeus se dedicaram a estudar o aumento do antissemitismo e do neonazismo ao longo do governo de Jair Bolsonaro. Com metodologias diferentes, os documentos chegam à mesma conclusão: os crimes de ódio cresceram no Brasil, seja contra judeus ou outras minorias.
Segundo o Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil, entre 1º de janeiro de 2019 e 30 de junho de 2022, foram 55 casos de antissemitismo e 114 de neonazismo. Os dados estão no Relatório de Eventos Antissemitas e Correlatos no Brasil. Ao longo dos anos da gestão de Bolsonaro, as ocorrências cresceram. Os pesquisadores entendem como neonazismo a “promoção do ódio contra diferentes grupos da sociedade, por motivos étnico-raciais, nacionalistas, religiosos, de gênero ou políticos, sem excluir argumentos eugênicos”. Já as ocorrências de antissemitismo são ataques diretos aos judeus. Em ambos os casos, são contabilizados agressões verbais, propagandas de natureza antissemita, nazista ou fascista, propaganda com teor antissemita ou neonazista, manifestações (como uso de símbolos ou tatuagens), violência física, vandalismo e também, no caso do antissemitismo, a deslegitimação de Israel.
No primeiro ano, 2019, foram 12 casos de antissemitismo e 12 de neonazismo. A soma, em 2020, subiu para 35. No ano seguinte, 2021, 67. Em seis meses de 2022, 43 – com seis meses e uma eleição a serem enfrentados.
A maior parte das violações, 52%, teve como autores extremistas e bolsonaristas. Pessoas em cargos públicos são 15% dos autores. Já o próprio presidente Jair Bolsonaro e integrantes do governo foram responsáveis por 9% das violações.
Entre os casos listados estão episódios que marcaram de forma trágica a história do Brasil, como os massacres nas escolas em Suzano (SP) e em Saudades (SC). A investigação do massacre na creche em Santa Catarina recebeu o nome de “Operação Bergon”, em homenagem a uma freira francesa, Denise Bergon, que abrigou crianças judias durante o Holocausto e as salvou do extermínio. Autoridades descobriram, com base em mensagens trocadas pelo autor do atentado em redes sociais, que Fabiano Mai era parte de uma célula extremista, que fazia apologia ao nazismo.
Já o relatório O Antissemitismo Durante o Governo Bolsonaro, de Charles Argelazi, Leana Naiman Bergel Friedman, Jean Goldenbaum e Nathaniel Braia, analisa um período mais curto, de junho de 2020 a julho de 2022. O documento lista 104 ocorrências em dois anos, entre casos de neonazismo e neofascismo, teorias da conspiração contra judeus, banalização do Holocausto e antissemitismo de setores progressistas.
Os organizadores do documento citam ocorrências diretamente ligadas ao governo de Jair Bolsonaro, como o momento em que Roberto Alvim, então secretário da Cultura, “encenou uma imitação de discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, com direito a música de Richard Wagner (compositor preferido de Hitler e símbolo do Reich) como trilha sonora, foto do ‘Führer’ ao fundo e até mesmo ao mesmo corte de cabelo”, lembram os autores, Charles Angelazi, Leana Naiman Bergel Friedman, Jean Goldenbaum e Nathaniel Braia.
Além disso, o relatório também menciona o encontro entre o presidente da República e Beatrix von Storch, expoente do partido alemão de extrema direita AfD.
A pergunta mais óbvia é: existe, efetivamente, uma relação entre quem ocupa a cadeira mais alta do Executivo nacional e o aumento de casos de crimes de ódio, como antissemitismo, neonazismo e neofascismo?
Desde o surgimento de sua campanha à presidência da República, Bolsonaro se estabelece como alguém de extrema direita. Sobre isso restam poucas dúvidas.
Discursos de ódio, denúncias de conspirações e apresentação, em alto e bom som, de inimigos da nação que deveriam ser eliminados (levados para a “ponta da praia”, como dito pelo então candidato em 2018, em discurso que remete a formas de eliminação de adversários políticos na ditadura militar), deixam isso bastante claro. Bolsonaro fala como alguém de extrema direita.
Mas, em paralelo a esses discursos de ódio e referências à extrema direita, pode-se perceber mais objetivamente alguns vínculos efetivos ao nazismo. Bolsonaro utiliza uma gramática nazista, por vezes cifrada. Mesmo quando incompreendida por aqueles que não estão familiarizados com ela, é facilmente entendida por sua base de apoiadores, que as toma como salvo-conduto para agir.
Esse tal salvo-conduto serve como uma espécie de “Eu autorizo”, e acaba produzindo ataques antissemitas e a outras minorias localizados nos relatórios acima citados. Nada de novo, deve-se dizer. Essa lógica é a mesma que o próprio Fuhrer utilizava na Alemanha dos anos 1930. Antes da solução final, apesar de não defenderem ataques abertos a judeus e outros grupos, os nazistas produziam um ambiente de ódio tão perene que seus eleitores se sentiam autorizados e compelidos a praticar violência.
Hitler e os nazistas se comunicavam em uma gramática de ódio, com símbolos e estética compreendidos na ponta por seus apoiadores, mesmo que a comunicação fosse truncada e não explícita. A gramática do ódio produzia suas vítimas.
Mas aqui não há um exagero na comparação?
Não, justamente porque interessa menos a quantidade das vítimas e suas identidades e mais a dinâmica do ódio e a implementação de sua gramática.
Em uma arqueologia do bolsonarismo, encontramos o então deputado defendendo Hitler (e ninguém menos) como figura histórica já em 1998, quando tenta “autorizar” que alunos do Colégio Militar em Porto Alegre exaltem o líder nazista alemão em redação do vestibular. Não para por aí. Em 2012, Bolsonaro cita teses negacionistas do Holocausto no programa de televisão CQC. Ali, ele chega a dizer que os judeus morreram de doenças em Auschwitz.
Um ano antes, um grupo de neonazistas organizou uma manifestação de apoio e solidariedade a Bolsonaro no vão do Masp em São Paulo. Tudo por causa de declarações homofóbicas dadas por ele em uma entrevista no mesmo programa.
Nesse contexto, Bolsonaro chega à eleição presidencial de 2018 com um recorde de declarações e apoios insuspeitos. Tratava-se de um candidato de extrema direita e com apoios de grupos neonazistas. Na campanha eleitoral, ele não recuou e continuou se comunicando através de uma gramática nazista.
No discurso da Hebraica do Rio de Janeiro, o candidato se apresenta como alguém que vê o mundo dividido entre raças boas e ruins (japoneses são raça boa, na sua narrativa) e que trata grupos minoritários (os quilombolas) por termos animalescos (pesam mais de 7 arrobas). O discurso desumanizador e racista é feito diante de um público formado pelo povo que soma o maior número de vítimas históricas do nazismo e em frente a uma bandeira de Israel. Difícil acusá-lo de nazista, portanto. Bolsonaro se higieniza para se consolidar como um candidato de extrema direita.
E é isso o que ele faz, em uma dialética perversa: se vende como amigo dos judeus e de Israel, mas continua a utilizar a tal gramática nazista. No ano de 2015, ele chega a se abraçar com um sósia de Hitler, utiliza uma versão do slogan de campanha de Hitler (Brasil acima de tudo) e produz uma proposta de programa de governo recheado de teses mirabolantes e conspiracionistas.
O suposto filossemitismo e as posições pró-Israel de Bolsonaro se estabelecem a partir do apoio a uma pátria israelita imaginária e a um judeu imaginário: branco, armado e capitalista, defendido por uma Israel que servia de barreira contra a expansão do Oriente (ou do comunismo, tanto fazia). Os judeus e a Israel que discordavam dessa imagem eram desconsiderados ou, como no caso dos que se manifestaram contra Bolsonaro na Hebraica, desconvertidos. O recado de Bolsonaro é: os judeus de verdade apoiam o candidato; os que se opõem a ele eram falsos judeus.
A estratégia apareceu mais uma vez na campanha de reeleição, por meio de um judeu: Fabio Wajngarten. Conselheiro de mídia e marketing de Bolsonaro, o ex-secretário de Comunicação atacou o coletivo Judeus pela Democracia e, a fim de deslegitimar o grupo, os acusou de serem falsos judeus, por não usarem filactérios (faixas de couro que judeus enrolam no braço e na cabeça para as orações diárias). Sem isso, escreveu no Twitter, membros do coletivo não teriam “moral e decência para falar alguma coisa em nome de judeus e Israel. Até lá são meros militantes de esquerda” [sic].
No governo, nada muda. Ao contrário. Uma superfície tosca e de galhofa convive com um subterrâneo recheado de referências nazistas. Percebíamos eventualmente o que estava no porão do boslonarismo quando os espasmos vinham à tona. Seja quando o secretário de Cultura se fantasiava de Goebbels, quando frases típicas do nazismo apareciam (“o trabalho liberta”, em suas várias versões), ou mesmo em referências constantes de apoiadores e funcionários do governo a ideia de poder branco (White Power).
Se para nós esses eram espasmos, para os defensores essa era a gramática de ódio constituída no cerne no bolsonarismo. Os resultados nós vemos nos relatórios analisados acima. Bolsonaro se comunica com apoiadores que se veem autorizados a atacar judeus, negros, gays e outros nas ruas das grandes cidades brasileira. O bolsonarismo cria uma intrincada e sofisticada relação entre dentro e fora, superfície e subterrâneo. Alguns podem ter sido pegos desprevenidos diante do crescimento do antissemitismo no país.
Quem acompanha a trajetória do capitão desde os anos 1990, entretanto, não se surpreendeu.