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    ILUSTRAÇÃO: JOÃO BRIZZI / FOTO ORIGINAL: BEL PEDROSA_FOLHAPRESS

questões feministas

Catherine Millet e a síndrome da “cool girl”

O recado das garotas cool aos homens é: “Fiquem tranquilos, nós concordamos com vocês, assédio não é violência, é paquera, sedução. Continue agindo como se fosse 1967 que vai dar tudo certo”

Branca Vianna | 16 jan 2018_14h40
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EGone Girl (Garota Exemplar, na tradução brasileira), um thriller trash, porém bem divertido, Gillian Flynn, pela boca de sua anti-heroína, uma assassina fria e calculista, desabafa contra o que chama de síndrome da garota cool.

Amy, a narradora, diz que chamar uma mulher de cool é o máximo do elogio por parte de um homem. Isso porque a garota cool é brilhante, engraçada, adora futebol, pôquer, piadas de mau gosto e arrotos. Ama jogar video game, beber cerveja vagabunda, fazer ménage à trois e sexo anal, comer hambúrguer, pizza e cachorro-quente como se não houvesse amanhã. Acima de tudo, a garota cool é gostosa. Gostosa e compreensiva. Nunca se irrita, sorri muito, gosta de tudo de que seu homem gosta. Se a preferência não é cachorro-quente e futebol, ela então vira vegetariana e praticante de ioga. O importante é a aprovação inconteste dos homens.

A escritora e crítica de arte Catherine Millet sofre de síndrome da garota cool. Ela é uma das signatárias da já famosa carta das francesas publicada no Le Mondeem resposta ao movimento #MeToo (precedido no Brasil pelo #MeuPrimeiroAssédio). Na última segunda-feira, em entrevista à Folha de S.Paulo, Millet defendeu que homens que se roçam em uma mulher no metrô, no almoxarifado da empresa, contra a pia da cozinha na casa da patroa, na festa de família assim que os seios começam a despontar, merecem compaixão por viverem “uma miséria sexual”. Eles têm o direito de incomodar. Além deles, todos os outros homens também têm o direito de incomodar a todas as mulheres que quiserem. Reclamar disso é se colocar na posição de vítima indefesa, “bélica e ofensiva em relação aos homens… praticante de um feminismo retrógrado”. Como é possível ser, por um lado, vítima indefesa e, por outro, bélica e ofensiva, é outra história.

Em uma entrevista à rádio France Culture em dezembro de 2017, mais uma vez falando da mulher vítima criada por sua fantasia, aquela que supostamente ficaria para sempre marcada pelo tarado no metrô, Millet diz: “Este é o meu grande problema. Sinto muitíssimo nunca ter sido estuprada. Assim poderia ser testemunha de que a gente se recupera de um estupro… é apenas o corpo que é violado, não o espírito.” Lembra um pouco… Paulo Maluf, que declarou na campanha de 1989: “Está com vontade sexual? Estupra, mas não mata.”

Mulheres como Millet e suas cossignatárias na França dão licença moral aos homens para desqualificarem a atual onda de denúncias contra assédio e abuso sexual. Uma delas, a apresentadora de rádio Brigitte Lahaie, chegou a declarar, numa entrevista na tevê, que é possível ter um orgasmo durante um estupro.

Por serem mulheres, e portanto supostamente saberem do que falam, autorizam os homens a dizer que as outras, as incomodadas, são jihadistas do feminismo que querem acabar com o desejo, nas palavras de Demétrio Magnoli em artigo publicado por O Globo. Segundo ele, quem reclama de assédio não aceita a revolução sexual, é feminista de araque, ressentida, odienta, puritana inculta, tem repulsa ao sexo, quer instaurar uma nova Inquisição. Ao final da coluna Magnoli conclui, em referência à personagem de Catherine Deneuve (outra cossignatária de Millet) no filme A Bela da Tarde, de 1967, que “ser Séverine tem consequências”.

Ser feminista também tem consequências. Ser xingada assim não é agradável. Ninguém gosta de ser considerada “odienta”, seja lá o que for isso. Daí as garotas cool cumprirem seu papel, ainda em 2018. O recado delas aos homens é: “Fiquem tranquilos, nós concordamos com vocês, assédio não é violência, é paquera, sedução. A era Weinstein não mudará nada. Continue agindo como se fosse 1967 que vai dar tudo certo.”

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