Toda vez que chega para a sua primeira aula na disciplina de pneumologia, no segundo ano da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o médico e professor paulistano Marcelo Britto Passos Amato repete uma frase de efeito para capturar a atenção da turma logo na largada: “Vamos aprender como matamos nosso ex-futuro presidente.”
O “ex-futuro presidente” é Tancredo Neves, o primeiro civil que ocuparia o Executivo depois de 21 anos de ditadura militar no Brasil. Um dia antes de sua posse, em 15 de março de 1985, Tancredo foi hospitalizado às pressas. Morreu no mês seguinte, em 21 de abril.
Em 1985, Amato cursava o último ano da graduação de medicina. Como aluno do hospital-escola da USP, conseguiu se aproximar do leito de Tancredo na UTI do Instituto do Coração (InCor), no complexo do Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo. Já em estado extremamente grave, ele havia sido transferido do Hospital de Base, em Brasília. De início, suspeitou-se de que sofria de apendicite. Aberto o abdômen, falou-se em divertículo de Meckel – uma espécie de bolsão que cresce fora do intestino. Mas, feita a biópsia, constatou-se que se tratava de um leiomioma – um tipo de tumor intestinal benigno –, que não fora tratado de maneira cirurgicamente correta no Hospital de Base.
Ao chegar ao InCor, em 26 de março de 1985, Tancredo foi submetido no mesmo dia a uma cirurgia – a terceira desde a internação –, com o objetivo de estancar o sangramento no intestino, precisamente na linha de sutura de onde fora retirado o tumor. A hemorragia vinha desde a primeira operação e não tinha sido corrigida na segunda, em Brasília. Haveria ainda uma quarta intervenção cirúrgica, no dia 12 de abril, para a retirada de abscessos e a colocação de uma tela que substituiu a parede abdominal necrosada. A partir de então, o presidente foi mantido vivo graças a aparelhos e drogas.
À beira do leito do presidente no HC, o então estudante Marcelo Amato notou que Tancredo apresentava um quadro de livedo reticular, quando a pele adquire um aspecto rendilhado, com manchas vermelho-arroxeadas, o que pode, dentre outras causas, evidenciar problemas cardiovasculares associados à dificuldade respiratória.
A respiração do paciente era ditada por um ventilador pulmonar moderno – o inovador modelo Bear 5. Ele era capaz de ultrapassar o pico de pressão dos Bird Mark 7, mais comuns no Brasil na época, que chegavam ao máximo de 40 cm de água por ciclo respiratório. O professor Amato explica que centímetro de água (cmH₂O) é a unidade de medida da pressão da maior parte dos ventiladores pulmonares. Cada unidade equivale à pressão de uma coluna de água de 1 cm de altura a 4°C, em condições normais de gravidade. Não quer dizer que o equipamento requeira água, nem que o médico precise fazer cálculos. É apenas uma medida que determina a pressão definida pelo médico. Nessa escala, quanto mais centímetros, maior a pressão sobre os pulmões.
Depois de fixar os olhos no marcador do Bear 5 usado para ajudar Tancredo a respirar, Amato guardou na memória o número que viu registrado: 55 cmH₂O por ciclo respiratório – quase o dobro do máximo recomendado hoje, que é 30 cm. “Não tínhamos ideia na época de que cada centímetro de água a mais aumenta em 4% o risco de mortalidade”, diz Amato. “Se o presidente não tivesse nenhum outro problema de saúde, só essa pressão nos pulmões já o teria matado.”
A função de um ventilador mecânico, como o nome sugere, é ventilar os pulmões ou, dito de outra forma, respirar pelo paciente. A máquina imita o que um adulto saudável, em repouso, faz vinte vezes por minuto. Na inspiração comum, o diafragma se contrai e se move para baixo, os músculos intercostais se contraem, o volume da caixa torácica aumenta e a pressão interna dos pulmões diminui. Assim, por diferença de pressão, o ar é sugado para dentro. O oxigênio vai dos alvéolos pulmonares para o sangue, enquanto o dióxido de carbono faz o caminho inverso e é lançado fora durante a expiração. Para que o ar saia é preciso que o diafragma e os músculos intercostais relaxem. Isso diminui o volume da caixa torácica, a pressão nos pulmões aumenta e, assim, o ar contaminado é expelido.
O ventilador mecânico, a fim de surtir o efeito benéfico esperado, tem de ser ajustado segundo padrões ideais não só de pressão, mas também de volume, porcentagem de oxigênio e frequência (ciclos respiratórios por minuto). Quando o paciente volta a respirar parcialmente, o ventilador deve se adequar a um tipo de funcionamento misto, parte dele ditado pelo próprio ritmo humano. Ou seja, o equipamento precisa reconhecer quando é necessário intervir e quando é preciso recuar para dar lugar à respiração natural e espontânea.
Marcelo Amato, de 61 anos, passou a vida acadêmica estudando os princípios complexos da ventilação mecânica. Atualmente, ele supervisiona a UTI Respiratória do HC e dirige o Laboratório de Investigação Médica LIM-09 Pneumologia Experimental. No primeiro, aplica os critérios de ventilação protetora, atualmente reunidos em um conceito batizado de driving pressure (pressão motriz). No segundo, faz experimentos com animais, especialmente porcos, cujos pulmões se assemelham aos dos seres humanos. “Se eu reproduzir no meu laboratório o padrão de ventilação aplicado ao Tancredo, eu mato um porquinho em seis horas”, diz o médico.
O que o grupo de pesquisadores coordenados por Amato no HC propôs, anos depois da morte de Tancredo, foi a mudança total dos parâmetros do ventilador mecânico usados até aquele momento. Eles foram os primeiros a demonstrar que ao funcionar com alta pressão, o aparelho obtinha resultado inverso ao que se propunha. Em vez de salvar vidas, estava matando pessoas.
O ponto de partida da descoberta, conta Amato, foi o livro Oxygen transport in the critically ill (Transporte de oxigênio em pacientes gravemente doentes), publicado em 1987 pelo anestesista inglês James Snyder e o especialista em medicina intensivista Michael Pinsky. Em um dos capítulos, o autor levantou a hipótese de que o melhor para um pulmão em sofrimento é ser aberto mecanicamente de maneira suave e abastecido com um pequeno volume de ar, entre 4 e 6 ml por quilo ideal (não conforme o peso do paciente na balança, mas segundo um cálculo que leva em conta a sua altura). “Na época, estávamos trabalhando com 8 a 15 ml por quilo ideal, o dobro do recomendado. E eu pensei: por que não tentar outra abordagem?”
No fim dos anos 1980, a oportunidade de testar os novos padrões estava bem diante de Amato, na época médico assistente da UTI do Hospital das Clínicas, que então recebia pacientes acometidos por leptospirose em estado grave. As frequentes enchentes do Rio Tietê colocavam pessoas em contato com a urina de ratos, meio de transmissão da bactéria leptospira, capaz de provocar insuficiência respiratória aguda e hemorragia pulmonar – condições que exigem o suporte ventilatório. Sete em cada dez doentes internados morriam.
Um protocolo de pesquisa foi estabelecido para o estudo dos novos marcadores. Assim, os pacientes de UTI foram divididos em dois grupos: um deles foi tratado de maneira convencional, com ventiladores trabalhando à base de alta pressão e alto volume. No outro, vigoraram os novos princípios de ventilação protetora, com indicadores mais baixos. Os resultados não demoraram a aparecer. “No grupo do tratamento convencional, a mortalidade continuou em 70%. No outro, o índice despencou para 35%, o que pode ser lido de duas maneiras: uma é que conseguimos salvar metade dos pacientes desse grupo, aplicando os novos conceitos. A outra é que mataríamos metade desses pacientes, caso seguíssemos com os procedimentos anteriores”, diz Amato.
O estudo com o resultado da experiência foi publicado em 1998 na New England Journal of Medicine, uma revista reconhecida por contribuições significativas no campo médico e que tem os artigos exaustivamente revisados por pares. No caso, a revisão durou um ano e meio. “Chegaram a pedir raio X dos pacientes. Um dos revisores veio pessoalmente visitar a nossa UTI”, lembra Amato. “Entendo a preocupação: nós estávamos rompendo paradigmas de ventilação mecânica.” Em outras palavras: a partir de então, salvar vidas em risco devido à insuficiência respiratória exigiria outra atitude por parte dos médicos mundo afora.
Porém, outros dois estudos divulgados logo em seguida pela mesma revista apontaram resultados exatamente contrários àqueles obtidos pela equipe de Amato: quanto mais gentil a ventilação, maior o índice de mortalidade. Essas publicações fizeram a comunidade científica colocar o pé no freio. E o HC voltou a adotar os critérios anteriores de ventilação mecânica.
Assim foi, até que no ano 2000, o caminho aberto por Amato e sua equipe acabou confirmado pela ARDSnet, uma rede de pesquisa criada pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos para estudar o tratamento da Acute Respiratory Distress Syndrome (ARDS, ou Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo), uma das principais causas de morte em UTI.
Os pesquisadores conduziram um estudo clínico com cerca de setecentos pacientes em hospitais americanos e canadenses. Eles observaram que a estratégia de ventilação protetora evita lesões pulmonares adicionais – e, portanto, reduz a mortalidade –, enquanto ventiladores ajustados em níveis mais altos causam problemas sérios e aumentam as taxas de óbito. O novo conceito passou a ser recomendado no mundo todo para o tratamento da síndrome, que é provocada por variadas doenças, e não apenas pela leptospirose. A partir de então, mais precisamente no ano de 2001, o Hospital das Clínicas começou a aplicar o protocolo da ventilação protetora.
Em 2020, durante a primeira onda de Covid, o bom resultado dos novos padrões pode ser reafirmado entre pacientes internados nas vinte UTIs montadas no HC – que teve o número de leitos ampliado de 94 para 300 durante a pandemia e se transformou no maior hospital de referência do estado para o tratamento da doença.
Aproximadamente 5% das pessoas contaminadas pelo vírus Sars-CoV-2 tinham necessidade de algum tipo de suporte ventilatório. Dos 1.503 pacientes internados nas UTIs do HC entre 30 de março e 30 de junho de 2020, 79% (ou 1.180) precisaram de ventilação mecânica. Nesse grupo, 82% foram ventilados com parâmetros protetores – volume menor do que 8 ml/kg ideal e pressão inferior a 30 cmH₂O – nas primeiras 24 horas de internação. Uma minoria (18%) escapou do controle, ou seja, não recebeu ventilação “protetora” nesse período inicial. “Nesse segundo grupo, a mortalidade foi comparativamente 37% maior”, afirma o professor Amato. Ainda assim, a mortalidade geral no Hospital das Clínicas, considerando o número total de pacientes acompanhados, ficou em 44% em 28 dias e 49% em 60 dias – inferior à média de brasileira de 57% dos internados com covid naquela época.
O fato de que esses dados foram obtidos em apenas um hospital (é um estudo unicêntrico, como se diz em pesquisa) poderia comprometer o resultado em condições universais? Amato avalia que não, porque aqueles doentes graves em São Paulo se comportavam, em tese, como doentes graves em outras localidades. “O que muda é a equipe de saúde. No HC são profissionais de primeira linha. Outros hospitais não têm necessariamente a mesma excelência nesse aspecto e essa variável pode fazer oscilar para cima o índice de mortalidade.”
No final de abril de 2020, a médica e professora Carmen Valente Barbas, coautora dos estudos encabeçados por Amato, passou de intensivista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, a vítima da Covid e paciente da UTI. “Eu sou a prova viva de que a ventilação protetora funciona”, ela diz. “Eu, que montei o protocolo de atendimento para os doentes graves, passei a depender dele para sobreviver.” Um dos itens do protocolo do Einstein estabelecia que os ventiladores deveriam funcionar com baixa pressão e baixos volumes de ar (critérios adotados antes da Covid, reforçados durante a pandemia e que perduram até hoje). Assim que teve alta, depois de quase um mês de internação, a professora teve a curiosidade de checar seu próprio prontuário. E constatou que, de fato, os colegas – muitos deles ex-alunos na USP – haviam seguido religiosamente os ensinamentos.
A ventilação protetora é hoje amplamente adotada em hospitais. “Ela mudou um paradigma na medicina”, diz o pneumologista André Nathan Costa, do Núcleo de Doenças Pulmonares e Torácicas do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. “Ventilar um paciente de outra maneira seria como diagnosticar uma pneumonia e não receitar um antibiótico”, compara Costa. Nos 53 leitos de UTI do Sírio-Libanês, esse conceito é aplicado integralmente há mais de vinte anos, segundo um dos responsáveis pelo setor, o intensivista Laerte Pastore Junior: “Eu acompanhei a transição da abordagem anterior para a nova conduta e não há dúvida sobre os ganhos.”
“Já não há controvérsias sobre a ventilação protetora. Está provado que ela diminui a mortalidade, enquanto a prática de antigamente era lesiva para os pulmões”, afirma Carmen Valente, que foi diretora científica da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). O cardiologista e intensivista André Gasparoto, que coordena 40 dos 156 leitos de UTI do Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, confirma: “Qualquer hospital do mundo com o mínimo de responsabilidade adota a ventilação protetora.” Segundo ele, todos os pacientes intubados na UTI do Beneficência Portuguesa são tratados de acordo com esse “conceito consagrado”.
Hospitais que atendem pelo SUS seguem as mesmas diretrizes dos hospitais particulares em relação à ventilação protetora. “Não se trata apenas de uma prática adotada, mas sim de uma prioridade para assegurar a qualidade do atendimento e a eficaz recuperação dos pacientes”, assegura o Ministério da Saúde, em nota enviada à piauí.
Amato agora defende, à luz do que se sabe hoje sobre ventilação mecânica, que a causa principal da morte de Tancredo Neves seja revista. No atestado de óbito do presidente, constam como causas, pela ordem, septicemia (ou infecção generalizada), pulmão de choque (ou Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo) e falência de múltiplos órgãos.
De acordo com o professor, a causa primária foi pulmão de choque, situação agravada por ventilação inadequada. “No laboratório, eu observo falência de órgãos em porquinhos, sem nenhuma outra razão a não ser o suporte ventilatório em níveis elevados”, conta. “Claro que a septicemia abdominal, depois de várias cirurgias, foi importante no caso do Tancredo. Mas também se pode considerar que, quando está muito comprometido, o pulmão solta mediadores inflamatórios para o corpo todo, inclusive para o intestino, que começa a liberar bactérias que vão prejudicar outros órgãos.”
Na necrópsia de Tancredo, observou-se que o pulmão estava tomado por fibrose. Houve um acúmulo de células inflamatórias que transformou o tecido pulmonar em uma massa cimentada, sem elasticidade e sem função. “Parte da fibrose foi causada pela ventilação inapropriada, não tenho dúvida”, insiste Amato, baseado no que observou à beira do leito do presidente. “Acho que ele viveu até bastante, levando em conta a pressão gigantesca nos pulmões. Foi mais resistente do que qualquer animal de experimentação que eu conheça.”