O cavalo gaúcho teve mais sorte que os cavalos da Carélia. Depois de quatro dias isolado pelas águas no alto de um telhado em Canoas, cidade da região metropolitana de Porto Alegre que esteve entre as mais afetadas pelas enchentes do Rio Grande do Sul, Caramelo foi resgatado por bombeiros e veterinários na quinta-feira 9. Hoje recuperando-se em um hospital veterinário, o cavalo tornou-se uma celebridade nacional (não que ele se importe com isso). A têmpera que demonstrou aguentando-se de pé sobre uma faixa estreita de telhas de zinco sintetiza o sofrimento e a resistência dos gaúchos frente à catástrofe climática que ainda está se desenrolando.
Os cavalos da Carélia eram bestas de carga a serviço do exército soviético em sua guerra contra a Finlândia, conflito que, em 1941, corria em paralelo à guerra contra a Alemanha nazista. Não bastasse o duro trabalho de arrastar peças de artilharia pela neve, os pobres animais também sofriam nos combates. Certo dia de inverno, um incêndio florestal eclodiu em meio a uma batalha pesada. Muitos cavalos morreram queimados, mas alguns conseguiram fugir em direção ao lago Ladoga.
Então se deu um evento assombroso, registrado no relato de um repórter de guerra italiano:
“O lago naquele ponto é pouco profundo, não mais do que 2 metros: mas a uma centena de passos da margem, afunda-se bruscamente. Comprimidos naquele espaço exíguo […], entre a água profunda e a muralha de fogo, os cavalos se agruparam tremendo de frio e de medo, com as cabeças estendidas para fora d’água. […]
Durante a noite, desceu o vento do Norte. […] De repente, com seu característico som vibrante de vidro percutido, a água congelou. […]
No dia seguinte, quando as primeiras patrulhas sissit [da infantaria finlandesa] […] chegaram à margem do lago, um horrendo e assombroso espetáculo se apresentou a seus olhos. O lago parecia uma imensa placa de mármore branco, na qual se apoiavam centenas de cabeças de cavalo. Pareciam cortadas pelo talho preciso de um cutelo. Todas as cabeças estavam voltadas para a margem. Nos olhos arregalados ainda ardia a chama branda do pavor. Junto à margem, um emaranhado de cavalos ferozmente empinados emergia da prisão de gelo.”
É provável que Caramelo também fosse uma besta de carga. Não transportaria canhões, mas material de construção, móveis, cacarecos variados. O negócio de pequenos carretos talvez fosse o ganha-pão de seu dono, que até o momento em que escrevo ainda não se apresentou (estará entre os mais de 538 mil desalojados pelo dilúvio que desabou sobre o Rio Grande do Sul?).
Bombeiros, socorristas e voluntários já resgataram 11 mil animais no estado. Vídeos de cachorros e gatos pulando nos barcos tornaram-se populares nas redes sociais e canais de mensagem. Figura indefectível desses ambientes virtuais, o ombudsman de tragédia decerto reprovará toda essa atenção devotada aos vira-latas. Como então está transcorrendo um drama humano – uma catástrofe regional que será só um prelúdio para o desastre global causado pelas mudanças climáticas –, e ainda há gente se preocupando com o salvamento de bichinhos?
Pois não seria justamente o contrário, uma confirmação de humanidade? Que voluntários já exauridos na busca de sobreviventes humanos ainda voltem a percorrer ruas inundadas em busca de animais de estimação é uma prova de que as grandes tragédias não revelam apenas o que temos de pior. Uma das imagens mais comoventes que vi nesses dias tristes foi a de um homem idoso, em Porto Alegre, chorando dentro de um barco, abraçado a seus quatro cachorros recém-resgatados.
Em um poema em prosa no qual homenageia os vira-latas – “os bons cães, os pobres cães, o cães emporcalhados” –, Charles Baudelaire decodifica o apelo silencioso que o olhar de um cachorro desses faz ao “homem abandonado”: “Leve-me contigo, e de nossas duas misérias faremos, talvez, uma espécie de felicidade.”
Se Caramelo se destacou em meio ao zoológico dos desabrigados, foi sobretudo pela expectativa que se criou em torno de sua situação precária. Não é operação simples resgatar um animal desse porte – cogitou-se até o uso de um helicóptero para içá-lo –, e temia-se que ele não resistisse à espera.
O absurdo do episódio também contribuiu para que essa se consolidasse como uma das imagens mais marcantes da tragédia. Tratava-se, afinal, de um cavalo que se instalara na cumeeira de um prédio. Sua estampa ereta sobre as águas me lembrou de uma imagem impressionante do desastre de Mariana, em 2015: em meio a uma vizinhança coberta de lama, um carro aparecia em cima de uma casa semidestruída. Fora carregado pela avalanche de barro e detritos que arrasou o povoado de Bento Rodrigues quando rompeu a barragem da mineradora Samarco.
Um carro não deveria estar no alto de uma casa, e um cavalo tampouco deveria passar dias sobre um telhado.
Mas quem sabe que lugar as coisas devem ocupar em dias de catástrofe?
Em O novo advogado, conto de pouco mais de uma página, Franz Kafka imaginou um cavalo ocupando um lugar ainda mais esdrúxulo do que o telhado: um tribunal de Justiça. O advogado referido no título é o doutor Bucéfalo, cujo aspecto exterior “lembra pouco o tempo em que ainda era o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia”. Como não encontrou, no brutal século XX, um herói comparável a Alexandre para carregar no lombo, o cavalo resolveu dedicar-se ao direito.
Há outros animais estranhos na obra do escritor tcheco, que criava fábulas muito diversas daquelas consagradas por Esopo e La Fontaine – histórias sem moral certa, em um universo no qual a justiça ainda existe, mas tornou-se tão inalcançável quanto as “portas da Índia”, nação que Alexandre não conseguiu conquistar.
O novo advogado abre Um médico rural, coleção de narrativas curtas que Kafka publicou em 1919. O livro encerra-se com Um relatório para uma academia, no qual um ex-macaco conta como se tornou humano. Se em A metamorfose Gregor Samsa converte-se em um inseto monstruoso literalmente da noite para o dia, aqui a transformação é lenta e custosa: com a ajuda de professores, o macaco estuda muito para se tornar gente. Esse processo de humanização é paradoxalmente desumano: começa de forma violenta, quando o símio é caçado – leva dois tiros – e transportado para a Europa em uma jaula apertada.
Os dois contos revelam o fino humor de Kafka, escritor que já foi erroneamente tido como soturno e depressivo. Parte da graça está nos traços animais que ainda subsistem no novo advogado que estuda velhas leis e no conferencista célebre cuja história é ouvida com atenção em sociedades científicas. Um oficial de justiça que frequenta corridas de cavalo percebe um trote equino no modo como o doutor Bucéfalo sobe a escada do tribunal. O ex-macaco, em seu relatório, confessa manter em casa “uma pequena chimpanzé semiamestrada”, para fins sexuais.
Ainda assim, eles são, com algumas restrições, reconhecidos como humanos. Não se dá o mesmo quando Samsa se metamorfoseia em um inseto gigante: muito rapidamente, sua família deixa de tratá-lo com dignidade.
Presentes em várias culturas, as histórias em que toda a bicharada – raposas e corvos, tatus e onças, lebres e tartarugas, cigarras e formigas – atua como gente talvez constituam uma admissão de nossa proximidade com os animais. Bem antes de Charles Darwin chocar os vitorianos, a ficção já intuía que somos todos aparentados.
Uma abordagem cética da empatia por outras espécies concluiria que só nos solidarizamos com o cavalo que passou dias de cansaço e tédio sobre uma exígua ilha de telhas porque identificamos (ou imaginamos) características tidas como humanas em seu comportamento. O leitor talvez tenha reparado que eu mesmo acabo de fazer isso ao falar das tribulações de Caramelo. É claro que cavalos se cansam – mas sabem o que é o tédio?
Seremos capazes de entender os animais como de fato são, e não como versões mais peludas de nós mesmos? A literatura dá uma resposta ambígua a essa pergunta.
A fábula tradicional ampara-se na antropomorfização dos animais, aos quais concede um dom que só uma espécie da Terra possui,o domínio da linguagem. Grandes escritores renovaram e ampliaram esse gênero. Miguel de Cervantes pôs dois cachorros a conversar sobre os vícios da sociedade espanhola em Novela e colóquio que houve entre Cipião e Berganza; Liev Tolstói fez o personagem-título de Kholstomier, um cavalo velho e amargurado, contar a história de sua vida infeliz aos companheiros de pastagem; e George Orwell, em A revolução dos bichos, reencenou a ascensão do totalitarismo soviético na Rússia com o elenco animal de uma fazendo inglesa.
Um exemplo mais recente: Paul Auster, escritor americano que nos deixou no último dia do cruel mês de abril, não permitiu que o simpático Mister Bones da novela Timbuktu falasse. Mas o cão tinha o mais pleno entendimento da língua inglesa, o que fez dele o companheiro ideal para Willy, um andarilho com problemas mentais e fumos de poeta. Como diria Baudelaire, as misérias de Mister Bones e Willy juntaram-se para formar uma espécie de felicidade.
Em How is it like to be a bat? (Como é ser um morcego?), artigo de 1974, o filósofo americano Thomas Nagel postulou que não conseguimos ir longe no esforço de imaginar como é ser um mamífero alado que se orienta por ecolocalização: podemos no máximo saber como a experiência de ser um morcego seria para um ser humano, mas não como ser morcego é para o próprio morcego. Em A vida dos animais, narrativa breve do sul-africano J.M.Coetzee, uma escritora fictícia chamada Elizabeth Costello tenta contestar Nagel: por meio da “invenção poética”, diz ela, um escritor pode levar seu leitor, pelo menos por alguns momentos, a ser outro animal.
Por mais que eu deseje dar razão à apaixonada defesa que Costello (ou Coetzee) faz da imaginação ficcional, sou forçado a admitir que Nagel está certo. Se não podemos “pensar” como um cavalo, jamais compreenderemos o cansaço de Caramelo, para nem falar de seu possível tédio. A literatura, no entanto, oferece aproximações desconcertantes à perspectiva animal.
O antológico capítulo da morte de Baleia em Vidas Secas dá ao leitor a muito convincente ilusão de compartilhar a dor e a desorientação de uma cadela moribunda. É uma passagem comovente, mas não porque Graciliano Ramos a sentimentalize: o escritor alagoano mantém-se aferrado à perspectiva limitada e confusa de sua personagem canina. A única concessão poética do autor é permitir que Baleia sonhe com um mundo “cheio de preás, gordos, enormes”.
Em boa parte de O burrinho pedrês, conto que abre Sagarana, de Guimarães Rosa, a narrativa desvia-se do personagem principal, o burro Sete-de-Ouros, para acompanhar a atividade dos vaqueiros que conduzem um rebanho da fazenda ao arraial onde os bois serão embarcados no trem, rumo ao abatedouro. Nas passagens em que Sete-de-Ouros se faz presente, porém, Rosa nos apresenta a perspectiva sensorial do velho e cansado burrico, que muito a contragosto é destacado para levar um dos vaqueiros até o arraial.
Essa história mineira hoje parece carregada de ressonâncias gaúchas: há uma enchente no retorno dos vaqueiros. As águas de um modesto córrego extravasam as margens, e as habilidades do burro pedrês serão testadas na violência da correnteza, descrita como uma “barriga faminta de cobra, comedora de gente”.
O sofrimento dos animais: isto a empatia humana compreende bem. Não há razão para supor que Baleia, ao levar um tiro de Fabiano, sofra mais ou menos do que uma pessoa. A dor extrema – a dor da morte – desabilita as faculdades superiores. É significativo que Tolstói dispense a eloquência de Kholstomier quando o velho quadrúpede é miseravelmente degolado e esfolado para que se aproveite seu couro. O personagem fala como um homem, mas morre como um cavalo. (O sacrifício covarde de um animal da fazenda, aliás, aparece também em O boi velho, de Contos gauchescos, clássico da literatura do Rio Grande do Sul publicado pelo pelotense Simões Lopes Neto em 1912.)
Na dor e na morte, encontro a deixa para voltar aos cavalos congelados da Carélia. Disse lá no início que o episódio foi relatado por um repórter italiano, o que não chega a ser uma mentira. Quem já leu Kaputt, porém, terá percebido que dissimulei a essência desse relato, mais afeito à criação literária do que à objetividade jornalística. A obra se apresenta como as memórias de um jornalista que acompanhou momentos decisivos da Segunda Guerra, e seu autor, o escorregadio Curzio Malaparte – um ex-fascista que se converteria ao comunismo no pós-guerra –, de fato cobriu campanhas militares na frente oriental para o Corriere della Sera. No entanto, seu livro, escrito entre 1941 e 1943, é pródigo em exageros e invenções, como os tais cavalos instantânea e implausivelmente transformados em estátuas de gelo. Talvez seja impróprio chamar Kaputt de romance. Mas trata-se, não há dúvida, de uma obra de ficção.
Entre outros horrores, Malaparte descreve um pogrom na Moldávia, que termina com judeus morrendo sufocados em um vagão de trem superlotado, e diz que o ditador croata Ante Pavelic conservava em seu escritório um cesto cheio de olhos humanos (aliado dos nazistas, Pavelic foi um genocida, mas o tal cesto de olhos é invenção de Malaparte). Há inúmeras pessoas torturadas, humilhadas, massacradas em Kaputt, mas os cavalos transformados em estátuas de gelo no lago Ladoga tende a ser a imagem mais vívida que o leitor conservará quando fechar o livro
Kaputt divide-se em seis partes, cada uma delas intitulada com um animal: “Os cavalos”, Os ratos”, “Os cães”… É o sofrimento desses animais que costura a unidade desse livro composto de episódios mais ou menos independentes. A atenção devotada à dor dos bichos não trivializa o sofrimento das vítimas humanas do nazismo: pelo contrário, amplifica-o.
Uma frase bombástica de Augusto dos Anjos que li há muitos anos me voltou à mente, de forma imprecisa, quando vi a foto do cavalo sobre o telhado. Não era de um dos mórbidos poemas que consagraram o autor, mas de uma crônica, gênero no qual ele não foi tão feliz. Fui relê-la, só para descobrir que na verdade a frase se adequava mal ao caso de Caramelo.
“Há e houve sempre alguma coisa de cavalo tísico dentro do arcabouço da civilização brasileira”, escreveu o poeta paraibano.
De certo modo, o incongruente equino sobre o telhado representa um colapso civilizacional: a conjugação desastrosa da crise climática, que é mundial, e do crônico despreparo do poder público para fazer frente a eventos meteorológicos extremos, que é brasileiro. Mas mesmo em seu momento de aflição, Caramelo não parecia um cavalo tísico. Havia força em sua postura – a força de um teimoso instinto de sobrevivência.
Ou talvez eu, gaúcho radicado em São Paulo, queira lhe atribuir qualidades que, à distância, estou admirando nas pessoas de minha terra natal. Mas Caramelo, firme na cumeeira de uma edificação submersa, nem é uma pessoa, nem sabe que é gaúcho.
Caramelo é só um cavalo que foi pego no meio da inundação. Decerto nadou até o único ponto onde uma alimária de seu porte poderia ficar. Agora está cansado do esforço: os músculos lesionados doem, e ele tem fome.
Olha em volta e só encontra água turva. Como não há para onde nadar, ele espera, em pé. Talvez intua que a água terá de baixar. Sim, algum dia, a água baixará.
Então ele vê os barcos, ao longe. Seus ocupantes remam. Estão se aproximando. São uma esperança de socorro. Se é que um cavalo sabe o que é esperança.