A grande poeta brasileira Cecília Meireles foi casada por 13 anos com o pintor português Fernando Correia Dias. A imagem desta página é um lindo trabalho conjunto do casal para o álbum de uma amiga. Esta obra, reminiscente das iluminuras medievais, é talvez a mais bela página de álbum realizada a quatro mãos no Brasil por um poeta e um artista da primeira metade do século XX.
Correia Dias nasceu no norte de Portugal e veio para o Rio de Janeiro aos 21 anos. Suicidou-se na capital em 1935, aos 43 anos, e deixou uma obra notável, hoje infelizmente em grande parte dispersa. Seu trabalho extenso de ilustrador está à espera de ser recolhido nas muitas revistas da época. Seria necessária uma ampla pesquisa em bibliotecas para reproduzir as inúmeras páginas e capas de livros que desenhou ao longo de duas décadas. Se for realizada, a reunião de sua obra revelará plenamente o talento extraordinário do artista que acompanhou a vida de outra grande criadora, e que revela nesta página toda a delicadeza de seu traço.
“O conto” de Cecília diz assim:
“No fim do mundo, nas terras brancas, frias, ignotas,
‘Vive um palácio muito bonito, com portas de ouro,
‘E um Rei que nunca na sua vida sofreu derrotas
‘E que tem gemas iguais à lua no seu tesouro…
Para se ir lá, sobem-se muitas, muitas montanhas,
‘Passam-se mares todos revoltos sob procelas,
‘Descem-se abismos em cujas negras, mudas entranhas
‘Dragões de fogo fazem perguntas, mostrando as goelas…
Anda-se muito, sofre-se muito… Mas é preciso,
‘Para chegar-se ao palácio lindo no fim do mundo,
‘Que a alma, ao contrário, seja um caminho liso, bem liso,
‘Como o céu claro, puro, bondoso, grande, profundo…
Quando se alcançam as terras brancas, frias, ignotas,
Sozinhas se abrem as portas de ouro, caladamente…
E o Rei que nunca na sua vida sofreu derrotas
‘Estende em taça cor das estrelas muito remotas
‘A água que apaga todas as dores da alma da gente…”
À maneira dos artistas do passado, sob suas assinaturas, Cecília confirma que “escreveu” e Correia Dias diz que “ilustrou” a página antológica, que traz finas decorações nas iniciais. E uma ilustração central inspiradíssima, que mostra a inocência sob forma de um menino nu, em meio aos perigos representados por “dragões de fogo”, de aparência chinesa, numa floresta.
A página é preservada hoje no acervo do memorial do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.