Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão! Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias! Liberdade de expressão não é Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos!
Assim o ministro Alexandre de Moraes justificou, na terça-feira (18), a censura a reportagens que tratavam das denúncias de Jullyane Lins contra seu ex-marido, Arthur Lira, acusado de agredi-la. Em nome da democracia e das instituições, Moraes derrubou um vídeo da Folha de S.Paulo e reportagens do Brasil de Fato e do portal Terra. Em seguida, voltou atrás, mas era tarde demais para esconder seu equívoco. Ficou evidente que sua decisão não protegia a democracia, menos ainda as vítimas de discurso de ódio. Protegia somente os interesses pessoais de Arthur Lira.
Para o presidente da Câmara, esse foi mais um capítulo de sua longa batalha contra o jornalismo que o desagrada. Lira já ajuizou ações por reportagens que o relacionam à compra de kits de robótica superfaturados para escolas de Alagoas, e também por aquelas que mencionam a acusação de corrupção passiva contra ele – essa última decorrente do fato de que um de seus assessores foi flagrado em um aeroporto de São Paulo portando mais de 100 mil reais em espécie. O deputado argumenta que não foi condenado pela Justiça por nenhum dos fatos relatados nessas notícias. Segundo ele, a imprensa está apenas requentando histórias antigas com o objetivo de manchar sua reputação. A Justiça, em sucessivas decisões, tem dado razão a Lira.
Liberdade de expressão é um amplo guarda-chuva que abrange muitos temas específicos. Um deles é justamente o conflito entre a liberdade de informação (que inclui a produção, o armazenamento, a divulgação e o consumo de conteúdos informativos) e a proteção à privacidade e à honra de pessoas públicas. A despeito do recuo de Alexandre de Moraes, o último embate entre Lira e o jornalismo joga luz sobre contradições e equívocos que o STF e outras instâncias vêm cometendo nesse tema.
Nas últimas duas décadas, o Supremo tomou decisões importantes sobre a liberdade de expressão, no geral, e a liberdade de imprensa, em particular. Em julgamentos abstratos e no discurso de ministros, o tribunal mostrou-se um relevante garantidor desses direitos. Reconheceu a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa da ditadura (ADPF 130) – que previa, entre outros disparates, que jornalistas poderiam ser detidos e multados caso ofendessem a “moral e os bons costumes” –; revogou um decreto-lei, do mesmo período, que mantinha em sigilo as despesas de presidentes da República (ADP 129); garantiu maior liberdade à programação de emissoras de rádio e televisão (ADI 2404); assegurou o direito ao exercício da profissão de jornalista mesmo sem diploma universitário (RE 511.961); descartou uma interpretação do Código Civil que dava a figuras públicas e a seus herdeiros o poder de barrar biografias (ADI 4815); reconheceu o fenômeno do assédio judicial contra jornalistas, tomando medidas que tornam possível a esses profissionais se defenderem caso sejam processados em várias frentes ao mesmo tempo (ADI 6792 e ADI 7055); e rechaçou o chamado “direito ao esquecimento”, garantindo aos jornalistas a liberdade de informar sobre eventos relevantes do passado, sem importar quão antigos sejam (RE 1.010.606).
No plano simbólico, o tribunal foi claro e contundente ao rechaçar investidas do governo Bolsonaro contra a imprensa e o direito à informação. O atual presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, é um ardoroso defensor da liberdade de expressão no debate público, como também a ministra Cármen Lúcia. Boa frasista, veio dela um dos bordões judiciais mais repetidos sobre o tema: “Cala a boca já morreu.”
Sempre que podem, diversos ministros invocam em seus votos ou celebram publicamente decisões paradigmáticas de outras cortes sobre a liberdade de expressão e de imprensa, como que para colocar o STF em linha com tribunais que fizeram julgamentos históricos sobre o tema. Entre eles, destacam-se os casos Lüth, julgado pelo Tribunal Constitucional da Alemanha, e Sullivan v. N.Y. Times, decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
No varejo da vida, contudo, vemos sinais na direção contrária. Alguns dos ministros patrocinam, pessoalmente, ações graves contra jornalistas: Gilmar Mendes ganhou polpuda indenização por danos morais do repórter Rubens Valente por causa de um livro-reportagem que nada tem de ilícito ou difamatório; e Kassio Nunes Marques está processando o professor e colunista da Folha de S.Paulo Conrado Hübner Mendes, dizendo-se vítima de crime contra a honra.
Em algumas decisões pontuais, o mesmo Supremo que celebra a imprensa e a liberdade de informação se contradiz, como no recente julgamento que atribuiu aos jornais responsabilidade pela fala de entrevistados (RE 1.075.412). Esses movimentos, como também a decisão em favor de Arthur Lira, sugerem a formação de uma espécie de jurisprudência defensiva contra discursos capazes de atingir a reputação de autoridades e instituições. Talvez o STF avalie que isso faz parte de seu plano para a defesa da democracia. Essa provavelmente é também a justificativa para o questionável edital que o tribunal acaba de publicar, buscando uma empresa para monitorar conteúdos e perfilar comunicadores influentes (inclusive com georreferenciamento) que mencionem o Supremo nas redes sociais.
Na decisão original que tirou do ar reportagens e um vídeo da ex-mulher de Lira, Moraes julgou ser “necessária, adequada e urgente a interrupção de propagação dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”. Barrar uma reportagem e alguns perfis por essa razão é coisa que só se explica ante o pressuposto de que a democracia está sob uma ameaça tão concreta que uma mera reportagem pode gerar a fissura capaz de destruí-la. Mas, se o pressuposto não existe, esse mesmo assombro, por mais genuíno que seja, periga levar à censura de reportagens e opiniões apenas por serem críticas ou desabonadoras a autoridades públicas. Em mais de um caso, o Supremo andou mal no fio da navalha entre perigos reais e assombros imaginários, fazendo-nos indagar se os ministros sabiam de algo que ninguém mais sabia – o que, por óbvio, não pode servir de fundamento para uma decisão judicial, cujas motivações precisam ser transparentes e publicamente escrutináveis.
No limite, podemos imaginar que uma denúncia capaz de abalar a liderança de Lira poderia desestabilizar a Câmara e, com isso, pôr em risco sua estabilidade. Seria lícito suprimir essa denúncia em nome da democracia? A ideia de que a licitude ou ilicitude de uma publicação devam ser medidas com um sismógrafo político, avaliando-se a instabilidade que ela pode gerar, era a base de doutrinas jurídicas mais antigas sobre a responsabilidade jurídica de jornalistas e editores. Denúncias ou reportagens verdadeiras eram vistas como mais perigosas do que as falsas, por terem maior chance de gerar animosidade contra autoridades e instituições. Essa doutrina, no entanto, caiu em desuso à medida que os Estados se tornaram mais fortes e consolidados. Bolsonaro está solto e atuando como cabo eleitoral, é verdade, e por isso a democracia precisa continuar alerta. Mas o risco não vem da imprensa. É altamente improvável que alguém consiga, com uma matéria de jornal descrevendo acusações feitas contra um político ou magistrado, pôr em risco a estabilidade política do país.
O Judiciário deve sempre se perguntar, quando confrontado com a alegação de que uma opinião ou reportagem põe em risco a democracia, o quanto essa ameaça é concreta. Não é razoável que não consigamos distinguir, por exemplo, a conduta de um líder político de massas que diretamente incita seus seguidores contra um magistrado ou um tribunal de uma reportagem jornalística que pode até gerar rebuliço, mas não passará de marola tocando as instituições democráticas.
O ímpeto ultra protetivo esteve por trás de outras escorregadas recentes do STF contra a liberdade de imprensa. Foi o caso da reportagem censurada da Crusoé, em 2019, que relatava fatos desabonadores à reputação de Dias Toffoli. Eram informações verídicas – Marcelo Odebrecht havia, de fato, se referido ao ministro do Supremo como “o amigo do amigo do meu pai”, como relatou a revista. Assim como no caso mais recente de Lira, o tribunal voltou atrás depois da má repercussão da censura. Não era proteção da democracia, nem do Supremo, mas apenas do ministro Dias Toffoli.
A versão soft, mas não menos prejudicial, desse mesmo impulso defensivo foi o rearranjo de informações sobre gastos de pessoal do Supremo com viagens para acompanhar ministros a passeios particulares ou a eventos no exterior onde abundam conflitos éticos. Depois que a Folha de S.Paulo contabilizou as despesas do STF com seguranças no exterior, o tribunal tirou do ar seu portal de divulgação de dados e só voltou a divulgá-lo dias depois. Sob justificativa de que o tribunal havia sido ameaçado, contudo, as ferramentas de pesquisa e os dados foram limitados. O instinto defensivo do tribunal e de seus membros custou, dessa vez, o acesso a informações públicas.
O caso de Lira ilustra outro ponto relevante da discussão: o impacto do princípio da presunção de inocência no direito de informação sobre denúncias, suspeitas e fatos desabonadores a autoridades. O presidente da Câmara bate o pé contra jornalistas, insistindo que não foi condenado em nenhum dos casos sempre rememorados a seu respeito. Argumenta que foi absolvido na Justiça pelas acusações de sua ex-mulher – e, por isso, ele diz, as reportagens que repercutem essas denúncias são ilegais.
Lira está errado porque extrai da presunção de inocência uma consequência que ela não tem. Esse importante princípio constitucional se preocupa principalmente com a antecipação da pena contra quem é meramente investigado ou acusado; nunca foi entendido como uma proibição de se falar sobre fatos pretéritos da vida de autoridades só porque elas venceram na Justiça. A sentença condenatória é parâmetro para legitimar uma pena, não uma reportagem jornalística. Até mesmo porque um jornal pode noticiar que, do ponto de vista da vítima, a absolvição de seu algoz foi injusta – exatamente como acontece no caso de Lira. Uma boa reportagem deveria mencionar os fundamentos da acusação, a absolvição e seus motivos, mas nem jornalistas nem cidadãos têm qualquer dever de acatar, como verdade incontestável, as conclusões de um magistrado. Ninguém precisa de uma condenação contra Bolsonaro para julgá-lo responsável por mortes na pandemia, nem deve ser proibido de pensar ou se expressar assim caso algum dia ele venha a ser absolvido de eventuais acusações.
Não é difícil enxergar a relação entre essa ideia equivocada e o entendimento fixado pelo STF de que empresas jornalísticas podem ser responsabilizadas por falas de seus entrevistados. O caso avaliado nesse julgamento era peculiar – envolvia acusações de um agente da ditadura contra o ex-deputado federal Ricardo Zarattini –, mas a decisão tem alcance maior e traz riscos justamente para processos como o de Lira. Os ministros entenderam que uma entrevista dada ao Diário de Pernambuco em 1995 apenas requentava acusações antigas e falsas contra Zarattini. Essa interpretação da lei, contudo, beneficia quem, como Lira, quer transpor para a imprensa as vitórias que confia que obterá na Justiça. Em tempos em que todos se perguntam sobre as motivações das decisões do STF – em parte, por causa da imprudente proximidade entre ministros e políticos –, não é exagero especular que o tribunal sabia exatamente a quem estava beneficiando quando condenou o Diário de Pernambuco e decidiu que veículos de imprensa devem, sim, ser responsabilizados pelas declarações de entrevistados. Agentes políticos são, com folga, os mais frequentes autores de ações indenizatórias contra jornais e jornalistas. A sentença foi um presente para a classe política, a mesma com quem o Supremo precisa manter boas relações para se defender de investidas bolsonaristas no Congresso.
O STF deve refinar suas análises e nos convencer de que não usará sua doutrina de proteção da democracia para proteger políticos aliados, magistrados e o próprio tribunal do escrutínio da opinião pública. O jornalismo não pode ser vítima colateral da briga que o Supremo trava contra o extremismo. Se seu pacote de salvação democrática for incapaz de distinguir incitadores de golpe de jornalistas e colunistas que, fazendo seu trabalho, incomodam autoridades e amigos da Corte, será preciso recalcular a rota.