Em 2016, o jornalista Kumar Sambhav começou a apurar um esquema de fraudes em licitações na Índia. O governo, ao que tudo indicava, tinha direcionado o resultado de alguns certames, favorecendo, com isso, empresários aliados. A reportagem ficou pronta, um prato cheio para o veículo onde Sambhav trabalhava. Foi com surpresa, portanto, que Sambhav recebeu a notícia de que a matéria não seria publicada. Não foram dadas maiores explicações. O jornalista então ofereceu a apuração para outros veículos, mas também não conseguiu emplacar. Demorou sete anos até achar um jornal que topasse publicar o furo. A reportagem saiu, enfim, na Al Jazeera, sediada no Qatar. Não é fácil, na Índia, produzir matérias que desagradam o governo autoritário de Narendra Modi, primeiro-ministro que está no poder desde 2014 e mantém controle rígido sobre a imprensa.
A censura, diz Sambhav, se manifesta de diferentes maneiras na Índia. A principal delas é a autocensura dos veículos, que dependem de verbas de publicidade do governo num país onde não há uma cultura bem estabelecida de pagar pelo jornalismo. Consequência disso é que a imprensa se tornou leniente com Modi, explicou Sambhav. Ele participou nesse sábado (2) do Festival piauí de Jornalismo, onde foi entrevistado pela repórter da piauí Consuelo Dieguez e pela jornalista da GloboNews Natuza Nery, que também é conselheira do Instituto Artigo 220, entidade sem fins lucrativos que financia parte dos custos da piauí.
Por vezes, no entanto, a censura é explícita. Nos últimos anos, jornalistas foram presos, acusados de traição ao país, por terem publicado reportagens críticas ao governo. Alguns tiveram telefones grampeados; outros tiveram o computador invadido. “Essa é a democracia que temos no nosso país”, ironizou Sambhav, jornalista que passou por veículos como The Times of India, Hindustan Times, Al Jazeera e Huffington Post. Hoje, ele trabalha como chefe de pesquisa na Índia para o Digital Witness Lab da Universidade de Princeton.
Sambhav é fundador da Land Conflict Watch, uma organização que pesquisa sobre conflitos de terra na Índia usando métodos jornalísticos. Ele também participou da fundação Reporters Collective, um projeto de jornalismo investigativo e colaborativo sem fins lucrativos. “Esses veículos são resultado da necessidade de fazer jornalismo independente, e também da nossa frustração com a realidade da imprensa na Índia”, explicou Sambhav.
A New Delhi Television (NDTV), um dos poucos veículos que ainda conseguia manter independência do governo, além de uma boa audiência, foi comprado recentemente por um bilionário próximo a Modi. Hoje, diz Sambhav, as melhores reportagens sobre a política indiana são feitas por veículos ocidentais que têm sucursais no país. “Mesmo assim, se as investigações forem muito profundas, eles também poderão ter problemas com o governo.”
Narendra Modi se elegeu em 2014 numa campanha marcada pelo investimento pesado em redes sociais, sobretudo o Facebook. Sua candidatura foi precursora no uso da internet, antecipando o que aconteceria dois anos mais tarde nos Estados Unidos, com Donald Trump, e quatro anos mais tarde no Brasil, com Jair Bolsonaro. Os três são fenômenos da nova direita e têm características em comum. Modi, assim como Trump e Bolsonaro, vocaliza uma agenda ultranacionalista, com franjas radicais que perseguem minorias – no caso, a minoria muçulmana. Além disso, acumula indícios de uso ilegal de redes sociais.
No ano passado, Sambhav publicou uma reportagem no The Reporters Collective que analisou mais de 500 mil anúncios políticos postados no Facebook. A apuração mostra que a plataforma favoreceu o partido político de Modi, o BJP (Bharatiya Janata Party – em português, Partido do Povo Indiano). Outras reportagens feitas por Sambhav denunciaram o uso, por partidos políticos, do sistema de identidade biométrica da Índia. Os dados, que deveriam ser sigilosos, foram vazados e permitiram traçar o perfil de milhões de eleitores, com o intuito de manipular suas escolhas políticas e direcionar anúncios personalizados.
A Índia, por muito tempo, não teve uma lei de proteção de dados. Somente em agosto deste ano foi sancionada uma lei que trata disso, e que começa a valer no meio do ano que vem. A notícia, no entanto, não é alvissareira, diz Sambhav. Segundo o jornalista, o texto que foi aprovado abre brechas para que o governo utilize, como bem quiser, informações pessoais dos cidadãos. “Os dados públicos podem ser deliberadamente usados para fins ilícitos, e não podemos questionar”, lamentou Sambhav. “O governo fica sabendo as preocupações de cada indivíduo, sua posição política, e envia mensagens para ele. Na próxima eleição, sabe-se lá o que vai acontecer.”