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    Ilustração: Ricardo Weibezahn

deforestation inc.

Chancela verde para crimes ambientais

Empresas que atestam a sustentabilidade de produtos florestais no mundo todo ignoraram denúncias de desmatamento e outras infrações

Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos | 01 mar 2023_14h00
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Sediada no Pará, a madeireira Juruá Florestal se apresenta como uma empresa sustentável. Diz a compradores dentro e fora do Brasil que sua madeira, retirada da Amazônia, segue fielmente os parâmetros da lei, desde a extração até o transporte. Para garantir a lisura do processo, a empresa ostenta um certificado de boas práticas ambientais da FSC – a Forest Stewardship Council, ou Conselho de Manejo Florestal, ONG mundialmente conhecida que atesta a exploração responsável de produtos florestais.

A prática, no entanto, é muito diferente do discurso. Por trás da roupagem ecológica, a Juruá Florestal acumula multas do Ibama por diferentes infrações ambientais. A lista inclui destruição de florestas sem autorização do poder público e transporte irregular de madeira. Entre 2010 e 2017, foram doze multas e uma condenação na Justiça. Nesse período, nunca perdeu o selo FSC – que serviu como uma espécie de salvo-conduto para as infrações.

O caso é revelador de um padrão internacional: no mundo todo, grandes empresas de auditoria ambiental, como a FSC, têm ignorado danos ambientais flagrantes causados por seus clientes. Os certificados emitidos por essas organizações acabam, na verdade, conferindo credibilidade a madeireiras que cometem infrações em série, como a Juruá Florestal. É o que mostra a investigação Deforestation Inc., realizada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) em parceria com 39 veículos de mídia. No Brasil, a apuração foi feita em conjunto pela piauí, a Agência Pública e o Poder360.

O ICIJ descobriu que muitas cadeias de produção do ramo madeireiro, embora tenham recebido o selo de sustentabilidade, passam longe dos padrões exigidos – ao menos em tese – pelas empresas certificadoras. É um caso exemplar do que os ambientalistas chamam de greenwashing (lavagem verde): a prática de empresas de se mostrarem empenhadas com a causa ambiental quando, na verdade, agem no sentido oposto.

No Brasil, foram identificadas sessenta empresas que operam na Amazônia com certificado FSC e acumulam multas do Ibama. Várias delas já foram condenadas na Justiça por crimes ambientais. O fenômeno, no entanto, é mundial. O ICIJ analisou registros de inspeções ambientais e processos judiciais de cinquenta países. A conclusão foi de que, desde 1998, ao menos 340 empresas de produtos florestais certificadas foram acusadas de crimes ambientais e outras infrações. O levantamento considerou denúncias tanto de órgãos governamentais quanto de organizações da sociedade civil. Os dados provavelmente são ainda maiores, mas não é possível ter a dimensão exata do problema – isso porque muitas bases de dados de órgãos públicos não identificam as empresas que cometeram infrações ambientais.

“O sistema de que nós dependemos não funciona”, afirmou Grégoire Jacob, consultor na área de produtos florestais, em entrevista à Radio France, parceira do ICIJ. “Somos levados a acreditar que [com o selo FSC] vamos ter produtos mais confiáveis. Às vezes isso é falso.” Jacob foi um dos seis auditores florestais e consultores da área de certificações que, em entrevista aos veículos parceiros do ICIJ, disse que, em geral, os padrões de certificação ambiental são inadequados e os procedimentos, ineficazes.

Os auditores – que fazem parte de uma indústria bilionária em franco crescimento – raramente são responsabilizados por minimizar ou ignorar sinais de irregularidades na operação de madeireiras. Isso porque falta regulação nesse mercado. O universo da auditoria ambiental difere muito do universo da auditoria financeira, por exemplo, que é um nicho de mercado altamente regulado e submetido a um número muito maior de regras e diretrizes. Segundo Jonathan White, advogado da ClientEarth, instituição voltada para o direito ambiental, as auditorias ambientais não têm praticamente nenhuma regulação.

“Em ambientes onde não há regulamentação, é difícil estabelecer quem é responsável pelo quê”, afirmou White. “Para que órgãos de auditoria possam desempenhar um papel relevante na área do meio ambiente, eles precisam ter um grau de ceticismo e checar as afirmações feitas pelas empresas. Precisam conferir toda informação que recebem.”

 

Nos últimos vinte anos, grandes e pequenas empresas correram atrás de certificados florestais para mostrar aos seus consumidores e acionistas que estavam comprometidas com diretrizes ecológicas e sociais. Essas certificações, oferecidas por entidades privadas, não são uma exigência legal, mas se tornaram praticamente uma necessidade para empresas que lidam com madeira e outros produtos florestais. O selo de boas práticas ambientais facilita a exportação de produtos (já que muitos compradores exigem o certificado) e a captação de investimentos, além de melhorar a imagem das companhias.

Algumas das principais certificadoras do mundo são a FSC, o PEFC (Programme for the Endorsement of Forest Certification) e o RSPO (Roundtable on Sustainable Palm Oil). As três se tornaram referência em auditoria ambiental. Em 2007, por exemplo, a autora britânica J.K. Rowling, criadora da saga Harry Potter, exigiu que a editora que publicava seus livros usasse papel certificado pela FSC no último volume da série. A editora acatou.

O ramo de auditorias ambientais é parte de uma indústria que movimenta bilhões de dólares por ano com testagem, inspeção e certificação de empresas. Fazem parte desse setor gigantes como a KPMG e a PwC e empresas menores como a PT Inti Multima Sertifikasi, da Indonésia. De modo geral, os auditores fazem avaliações de risco para seus clientes, inspecionam fábricas, entrevistam funcionários das empresas e se certificam de que as operações respeitem padrões ambientais instituídos por organizações como a FSC. Essas ONGs dizem trabalhar para “proteger as florestas do planeta” e “mitigar o desmatamento”.

Com o agravamento da emergência climática, o mercado das certificadoras vem crescendo em ritmo acelerado. Diante da inércia do poder público em muitos países, essas empresas de auditoria se tornaram uma alternativa para tentar garantir uma economia mais limpa.

Especialistas ouvidos pelo ICIJ avaliam que, em países onde há muito desmatamento e as políticas ambientais são incipientes, como o Brasil, a certificação por empresas privadas é uma solução mais eficaz do que a lei, que costuma ser simplesmente ignorada. Nos últimos anos, um número cada vez maior de empresas brasileiras recorreu à chancela de entidades como a FSC – não porque tenham subitamente se dado conta da emergência climática, mas sobretudo porque mercados como os da Europa vêm se tornando mais exigentes e não querem adquirir produtos associados ao desmatamento e outros crimes ambientais.

Segundo o auditor florestal Marcos Planello, no entanto, são poucas as empresas realmente dispostas a mostrar seus livros contábeis e pagar por certificações caras e eficientes. Isso acaba abrindo margem para um mercado de certificações pouco exigente e pouco transparente. “Se uma empresa quiser fazer algo errado, vai fazer”, frisou Planello.

 

Durante os nove meses da investigação, 140 repórteres parceiros do ICIJ seguiram os rastros de madeireiras em diferentes cantos do planeta: desde as áreas de conservação da Finlândia até as terras desmatadas da Coreia do Sul e os territórios indígenas da Columbia Britânica, no Canadá. Os jornalistas ouviram membros de comunidades nativas, ativistas que defendem a preservação da floresta, auditores florestais e pessoas que conhecem a indústria por dentro. Examinaram centenas de processos judiciais, dados de infrações e documentos vazados em mais de uma dúzia de idiomas. O projeto cobriu o mundo todo.

Na Romênia, um país conhecido por suas imensas florestas virgens, autoridades investigam os fornecedores de uma madeireira austríaca por terem usado documentos falsos para cortar árvores em áreas protegidas. Os produtos de madeira desse conglomerado foram certificados por uma empresa de auditoria ambiental, que garantiu que os padrões ambientais estavam sendo respeitados. Enquanto isso, na Finlândia, duas madeireiras certificadas por boas práticas ambientais omitiram, em seus relatórios, multas que receberam na Justiça por terem derrubado árvores em áreas de conservação. A prática é ilegal. Mesmo assim, as empresas não perderam seus certificados de sustentabilidade.

Na Indonésia, um dos países que mais exporta madeira tropical no mundo, ambientalistas da organização independente Rede de Monitoramento Florestal relatam que, na última década, empresas de auditoria fizeram vista grossa para violações ambientais de ao menos 160 empresas. Jornalistas parceiros do ICIJ na Tempo, uma revista indonésia, confirmaram que, em alguns desses casos, os auditores não pediram aos clientes que parassem com as infrações, que abarcavam desde o uso de documentos falsos até o desmatamento ilegal e a destruição de habitats naturais de tigres e elefantes. A abordagem laissez-faire dos auditores – para dizer o mínimo – possibilitou que, com o selo de sustentabilidade, empresas indonésias obtivessem licença de exportação para a Europa e outros mercados.

Mesmo quando os infratores são punidos, as punições não compensam a destruição de florestas primárias, de habitats naturais e de terras indígenas, de acordo com Danial Dian Prawardani, um dos pesquisadores da Rede de Monitoramento Florestal. “O cálculo do prejuízo ecológico e do impacto ambiental nunca pode ser medido”, afirmou Prawardani.

 

Organizações de certificação florestal como a FSC e a PEFC foram fundadas na década de 1990 depois que ambientalistas e autoridades chegaram a um acordo para a criação de um arcabouço legal internacional para a conservação das florestas. Desde então, surgiram mais de uma dúzia de organizações do gênero, cada uma com seus próprios critérios. Mas a FSC e a PEFC continuam sendo as mais influentes. As duas organizações dizem ter chancelado práticas “sustentáveis” em mais de 790 milhões de acres de floresta pelo mundo. O logotipo das duas entidades está presente em itens do dia a dia, como notebooks vendidos na loja Target em Washington, embalagens de balas nos supermercados de Berlim, copinhos plásticos em hotéis canadenses e móveis vendidos na Amazon.

Há algumas diferenças entre a FSC e a PEFC. Ambientalistas e especialistas em silvicultura avaliam que os padrões da FSC são, de modo geral, mais rigorosos. Fato é que, nos últimos anos, tanto uma quanto a outra entidade tiveram suas reputações manchadas pela falta de transparência em seus processos de auditoria e certificação, por escândalos envolvendo empresas que obtiveram o certificado e por falta de supervisão das empresas que executam, na ponta da linha, as auditorias. No Brasil, há onze empresas desse tipo que emitem o selo FSC de sustentabilidade. Cada país tem suas próprias certificadoras.

Os problemas são reconhecidos pelos próprios funcionários dessas empresas. Três ex-auditores florestais ouvidos pelo ICIJ contaram ter se desiludido com o trabalho. Segundo eles, tanto FSC quanto PEFC diminuíram o rigor de suas auditorias à medida que um número cada vez maior de empresas se mostrou disposta a pagar por selos verdes. “As pessoas ficam aliviadas quando veem um selo verde no mercado. Acham que isso é bom e ficam com a consciência tranquila de comprar”, disse Bob Bancroft, biólogo e ex-auditor florestal da província da Nova Escócia, no Canadá. “Isso acaba sendo um problema.”

O diretor-geral da FSC, Kim Carstensen, respondeu a essas críticas numa entrevista ao ICIJ e à emissora alemã WDR. “Achamos que somos um bom selo segundo vários critérios. Temos um sistema de governança. Temos regulações ambientais rigorosas. Também temos regras sociais rigorosas”, afirmou. Num mundo ideal, disse o executivo, o Estado desempenharia um papel maior na proteção florestal. “Mas não temos um mundo ideal. Portanto, numa situação em que um governo permite desmatamento numa área onde não sabemos se há um uso responsável da floresta, a certificação tem sua importância.”

Por ser uma “ferramenta voluntária”, a FSC “não afirma que possa resolver sozinha problemas complexos como o desmatamento”, disse um porta-voz da empresa. Já o responsável pela área de comunicação da PEFC, Thorsten Arndt, afirmou que o sistema de certificação da entidade já foi revisado várias vezes e que a ONU reconheceu o trabalho da empresa “como um indicador de progresso” na busca por melhorias sociais e ambientais.

Arndt escreveu ainda que a PEFC estabelece e revisa seus padrões de análise com base no “mais atualizado conhecimento científico, em pesquisas e em questões relevantes que estejam surgindo” para garantir que florestas sejam “manejadas de maneira sustentável”.

Empresas ouvidas pelo ICIJ admitiram que pode haver casos em que um auditor faça vista grossa, não compreenda que determinada ação é irregular ou mesmo ceda à pressão dos clientes. Mas, segundo eles, isso representa apenas uma pequena porcentagem dos casos auditados. “Aos críticos que afirmam que a certificação é apenas propaganda ambiental, eu diria que eles estão tentando usar a exceção para provar a regra”, disse Linda Brown, cofundadora da empresa de auditagem SCS Global Services, sediada nos Estados Unidos.

 

A profusão de casos de greenwashing nos últimos anos entrou no radar de órgãos governamentais. Em 2021, entidades ligadas à defesa do consumidor no Reino Unido e na Holanda examinaram centenas de sites de empresas e concluíram que 40% das afirmações sobre sustentabilidade “podem enganar os consumidores”. Uma comissão anticoncorrencial na Austrália começou a fazer uma análise semelhante no final do ano passado. 

A Comissão Europeia, braço executivo da União Europeia, vem avaliando projetos de lei que têm como alvo o greenwashing. A minuta de um projeto ainda não divulgado propõe que os países europeus imponham penalidades “efetivas, proporcionais e dissuasivas” a empresas que fazem afirmações ambientais sobre seus produtos sem respaldo na realidade. Segundo essa proposta, o poder público iria recorrer a “verificações independentes” para fazer as avaliações. Ainda não está claro, no entanto, como seria inspecionado o trabalho feito por empresas de auditoria privadas, como a FSC e a PEFC.

Grant Rosoman, consultor sênior do Greenpeace, afirmou que as certificadoras ambientais costumam fugir dos holofotes quando escândalos vêm à tona envolvendo seus clientes. “Essas organizações têm a tendência de sumir no cenário”, afirmou, “embora, num certo sentido, elas sejam uma das maiores responsáveis pelo problema que estamos vendo.” Por isso, quando uma auditoria ambiental é mal feita, “várias práticas danosas deixam de ser conhecidas”, disse Rosoman, que pesquisou sistemas de certificação e auditagem. “Esses problemas permitem que o desmatamento continue acontecendo, que [abusos contra] os direitos humanos continuem acontecendo, que ilegalidades continuem acontecendo.”

 


 

Repórteres participantes: Agustin Armendariz, Jelena Cosic, Emilia Diaz-Struck, Miguel Fiandor, Karrie Kehoe, Brenda Medina, Delphine Reuter, Margot Williams (ICIJ), Anne-Laure Barral (Radio France), Allan de Abreu (piauí), Bernardo Esteves (piauí), Luiz Fernando Toledo (Fiquem Sabendo), Attila Biro (Context), Petra Blum (WDR), Krisna Pradipta (Tempo), Stefan Melichar (Profil), Francisca Skoknic (LaBot), Kirsi Skön (YLE), Lina Verschwele (Der Spiegel).

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