Sentado em sua casa, numa tarde de setembro, Natã de Souza Oliveira veste camisa branca e boné, ambos da Nike. Uma indumentária típica do jovem de 21 anos que ele é, mas que, neste caso, tem mesmo razão de ser: Oliveira trabalha o tempo todo com grandes marcas esportivas. Apesar da juventude, é um profissional atarefado, responsável pelo catering de eventos de mega-empresas como Reebok, Lacoste, The North Face – e, claro, a Nike.
Sua especialidade são brownies cobertos numa fina placa de chocolate branco onde são impressos desenhos, logotipos e QR Codes. A inovação, misto de culinária e marketing, conquistou o mundo da moda. Tem feito sucesso sobretudo com as marcas queridinhas de um público jovem que deu à streetwear uma nova vida, mesclando itens caros com referências da periferia. A inspiração vem, em boa medida, de músicos do hip hop, rap e funk.
“Os brownies têm recheio de ganache de um chocolate belga, 70% ao leite e 30% meio amargo”, explica Oliveira. O jovem chef também prepara doces que reproduzem, de forma realista, tênis e camisetas. Uma de suas criações que bombou nas redes foi um bolo de chocolate no formato do tênis Air Force 1, da Nike. Até a versão brasileira do site Hypebeast, de Hong Kong, conhecido por identificar tendências internacionais de moda, divulgou a criação do brasileiro. Um tênis-chocolate como aquele leva de dois a três dias para ficar pronto. Quem faz a forma é o próprio Oliveira, usando uma impressora 3D.
Mas não foi só a originalidade dos doces que fez o confeiteiro ganhar fama. Seu apelido ajudou: Oliveira é o “chefe de quebrada”. A expressão, com a qual ele se apresenta nas redes sociais, carrega alguns significados. “Quebrada”, em algumas periferias, denota despretensão. Também é usada para se referir à própria periferia. O chef mora na Vila Guarani, distrito do Jabaquara, Zona Sul de São Paulo. “É um bairro de classe média”, ele reconhece. “O pessoal tem dois carros na garagem, viaja todo mês. Mas lá não é tudo assim. A casa da minha mãe é a pior. Fica numa parte da rua que não é asfaltada.”
A expressão, enfim, é uma subversão do “chefe da quebrada”, que remete às figuras ligadas a atividades ilícitas. A ambiguidade nem sempre é bem recebida. “Muitas marcas não quiseram se associar ao meu trabalho por conta do meu ‘vulgo’”, diz Oliveira. “Mas não me importo, não vou mudar. Aonde eu for, vou levar minhas origens.”
Natã Oliveira é detalhista ao descrever suas receitas e os episódios que marcaram sua vida. Fala com empolgação e, sem beber uma gota d’água, aguenta mais de uma hora de conversa sem parar. É, além disso, organizado com os negócios, qualidade que herdou de seu avô paterno, José Ramos de Oliveira. Conviveu com ele até a adolescência, morando numa casa vizinha à dos pais, na mesma Vila Guarani. “Ele tinha aquela carga machista de homem preto, que não se expressava bem. Dizia uma vez só: ‘Vai lavar louça, vai catar os brinquedos e limpa a panela’”, relembra o chef, que não gostava dos deveres, mas hoje valoriza o aprendizado: “Ele me criou para ser um adulto funcional. Acho isso foda demais.”
O avô morreu em 2012, aos 82 anos, acometido por Alzheimer e um câncer na próstata. Oliveira, depois disso, voltou a morar com a mãe, Fátima Oliveira, uma paraense radicada em São Paulo, e o pai, Antônio Oliveira. O chef tem dois irmãos: Sarah, a mais velha, de 23 anos, e Silas, o caçula, de 15. Para ajudar a mãe a dar conta da casa, Oliveira aprendeu a cozinhar. Desde pequeno, ele tinha o sonho de abrir uma confeitaria, tema que aparecia recorrentemente nos seus desenhos. Mas aos 12 anos, quando pegou num fogão pela primeira vez, preparou arroz. “Ficou meio borrachudo e queimou”, ele relembra. A mãe não aliviou a barra. “Ela disse na lata que ficou uma bosta. Apoio é tudo, né?”, diz, rindo.
Sua estreia na produção de doces também foi uma tentativa de se aproximar da mãe. “Aprendi a fazer biscoitinhos amanteigados de maizena para ela comer. Peguei umas dicas com as minhas primas, que são confeiteiras e tem mão boa demais.” Empenhado, ele passou a esmiuçar o site de receitas ‘Tudo Gostoso’. Os biscoitinhos amanteigados caíram no gosto da mãe, que recomendou ao filho vender os quitutes no colégio. O menino topou, mas o negócio durou pouco, porque a Escola Estadual Domingos Quirino Ferreira, onde estudava, não ficou muito feliz com o comércio informal de guloseimas.
Ainda aos 12, Oliveira fez uma parceria com a dona do mercado que ficava perto da escola. Vendia para ela um saquinho com cinco biscoitos, e o mercado ficava com parte do lucro. “Eu não fazia a menor ideia de que eu estava empreendendo, era tudo muito automático.” O que o movia não era só ambição. “Eu fazia de tudo pra ficar pouco em casa, porque o ambiente lá era meio caótico. Eu só ia pra dormir e tomar banho.” Alguns anos mais tarde, fez um curso gratuito de gastronomia brasileira numa ONG no bairro de Americanópolis. “Da hora. Queria aprender confeitaria, mas aprendi a fazer macarrão”, diz, debochado. Da experiência em restaurantes, restou um gosto amargo: “Por ser uma pessoa preta, eu não vislumbrava chances de crescimento. Só me viam como lavador de prato ou descascador de batata.”
Com os 200 reais que recebeu de um trabalho nesse tipo de estabelecimento, ele decidiu produzir bolos de pote para vender na rua. Ainda não tinha completado 17 anos. “Queria mesmo era comprar um Nike Air Force I, que era o modelo de tênis da moda, na época”, confessa Oliveira. Mas as primas confeiteiras se recusaram a ensiná-lo sobre como fazer uma massa de bolo. Desacreditado, o jovem decidiu se arriscar e vender os novos produtos longe de casa, em Mogi das Cruzes, cidade que fica a 50 km de São Paulo.
O começo foi complicado. Tímido, Oliveira tinha dificuldade de abordar os possíveis clientes. Muitos bolos perdiam a validade sem serem ofertados. Mas o jovem foi pegando o jeito, sobretudo depois de receber dicas de outros ambulantes e de meninos que vendiam no farol. “Eu já chegava dizendo: ‘Ô patrão, ô meu rei’, para exaltar a pessoa e ela se sentir confortável”, exemplica. Quando as coisas iam bem, faturava 1.500 reais por semana.
Oliveira, no entanto, queria mudar de ares – e, além do mais, não aceitava a rotina de fiscalizações violentas da polícia. Largou Mogi das Cruzes e começou a testar receitas que, mais tarde, se tornaram seu cartão de visitas. Aplicando uma placa quadrada de chocolate sobre um brownie, passou a estampar o doce com imitações de pinturas famosas, como “A Noite Estrelada” (1889) de Vincent van Gogh, e “Monalisa” (1503), de Leonardo da Vinci. Vendia na Avenida Paulista, perto do Masp, de olho num público mais interessado no mundo das artes. Era um produto ainda em versão beta, como ele próprio reconhece: “A receita era mais tradicional, ia muito chocolate meio amargo e açúcar mascavo. Eu percebia que não vendia tanto, porque a receita do brownie em si é muito europeia, vem de países mais frios.” O jovem notou que o público brasileiro, em geral, gosta de doces mais leves.
Ao mesmo tempo em que alterou a receita, Oliveira passou a se sentir mais à vontade para imprimir seu gosto pessoal nos brownies. Ao lado dos Van Goghs e Da Vincis, passaram a aparecer capas de discos de rap. O chef, com isso, foi migrando para a Praça Roosevelt, no Centro, frequentada por um público mais afeito ao estilo. As estampas de anime, uma de suas paixões desde criança, eram pensadas para alcançar os jovens que sobem e descem a Rua Augusta num indo e vindo quase infinito. Oliveira, enfim, criou sua identidade.
Boa parte do dinheiro que Oliveira faturava era reinvestido no aperfeiçoamento do produto. Assim ele pôde montar uma fôrma que lhe permitiu fazer placas de chocolates mais finas. E acertou também o ponto do doce. A clientela agradeceu. “Em duas horas, com o brownie bem mais gostoso, consegui vender 60 caixinhas que custavam doze reais cada”, ele lembra. Isso foi antes da pandemia. Quando veio a Covid-19 e as ruas de São Paulo se esvaziaram, tudo desandou. A depressão, com que o jovem lidava desde a morte do avô, se aprofundou.
Sem nenhuma fonte de renda, Oliveira tentou usar a internet a seu favor. “Mandei e-mail para um monte de podcast, me oferecendo para estampar o rosto dos convidados nos doces, de graça, porque o que me importava era divulgar a minha marca.” Um dos programas que aceitou a proposta foi o “Rap, falando”, que tem como uma de suas apresentadoras a jornalista Julia Reis, de 24 anos. “O Natã entrou em contato comigo pela DM [Direct Message] do Instagram. Disse que não tinha grana para anunciar, mas que queria deixar os doces em cima da mesa do estúdio onde a gente gravava, que isso poderia contribuir para a divulgação dele”, conta Reis. O chef, conforme prometido, retratou nas placas de chocolate o rosto dos apresentadores, entre eles o rapper NiLL, e dos convidados, os também rappers Rashid e Kamau. O episódio em que aparecem os brownies foi ao ar em maio de 2021.
“Para além da inovação e da criatividade, ele tem uma visão bem empresarial sobre o mercado em que ele atua”, analisa Reis, que conhece o gosto de seus ouvintes e dos fãs de rap. “Você não pode ficar preso à Páscoa, porque só tem uma vez ao ano. Ele conseguiu atingir um público muito específico, que é do streetwear e do lifestyle. Ele criou uma tendência.” Reis acompanhou a evolução gradual do jovem chef no que diz respeito à culinária: “Eu que comi a versão beta, vi que ele consertou várias coisas. O chocolate era grosso, ficou bem fininho. Eu, que sou chocólatra, posso dizer: tá perfeito agora.”
Oliveira tentou, na paralela, atingir também o nicho das mães que organizam festas infantis. Nesse momento, os astros conspiraram a seu favor. Num dia como qualquer outro, o chef ofereceu seus serviços a Marina Carvalho de Sousa, uma mãe que, por acaso, trabalhava como coordenadora de brand marketing da Nike Women no Brasil. A executiva o convidou para estampar nos docinhos a marca da gigante mundial de calçados, roupas e acessórios. Era março de 2022. O jovem, é claro, aceitou prontamente, e logo viu que a ideia tinha futuro. Em novembro, concluiu sua criação mais famosa: o bolo no formato do tênis Air Force I. As trinta unidades, vendidas por 300 reais cada, se esgotaram rapidamente. A ideia foi inspirada no desejo que ele próprio tinha de vestir o sapato. “Eu queria tanto esse modelo, que pensava que, quando tivesse, eu ia comer, abraçar e dormir com ele.”
O chef tornou-se um produtor meticuloso. Tendo atingido uma receita popular, passou a se especializar na aparência dos doces. Beneficiou-se do fato de que, anos atrás, trabalhou numa fábrica têxtil, onde, supervisionando a qualidade das estampas, aprendeu os processos da serigrafia. “Adaptei minha impressora pra esse trabalho, aplicando os conhecimentos de engenharia mecatrônica, que era uma coisa à qual eu me dedicava paralelamente enquanto estava no quinto ano da escola”, ele conta. Oliveira já fez vários cursos de fotografia e edição de imagem. Soma-se a isso um curso de oleiro, que agregou recentemente ao seu currículo. Mas o jovem diz que o maior aprendizado veio mesmo do colégio. “Minha identidade como cozinheiro veio das tias das cantina das escolas onde eu estudava. Elas levavam tempero escondido na bolsa pra deixar tudo melhor.”
Saber que Oliveira tem só 28% da visão, devido à ceratocone – doença que provoca redução da espessura da córnea – é surpreendente, dado o aspecto essencialmente visual de seu trabalho. O jovem diz que a doença não o atrapalha, e o sucesso dos negócios atesta isso. O Chefe da Quebrada vai bem. Vende os brownies por um preço que varia de 6 a 8 reais, mas sempre partindo de um lote mínimo de 50 brownies, que saem por 300 reais. Fora isso, Oliveira anda trabalhando como “personal chef”, segundo ele próprio diz. Isso significa que ele acompanha pessoalmente os eventos em que expõe os doces. É pago para estar lá, como um nome cada vez mais reconhecido no meio: recebe 1.500 reais por quatro horas de aparição. “Ainda não ganho tanto quanto pessoas brancas que trabalham no meio, mas tenho sim, meu trabalho valorizado.”