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China, Kassin e a música brasileira pós-industrial

China, Moto Contínuo e Kassin, Sonhando Devagar. Dois discos recém-lançados que representam o momento de reflorescimento da música brasileira. À luz da derrocada da indústria fonográfica, a música pós-industrial brasileira tem a cara do país. Integrada com sua diversidade de sotaques e tons, miscigenada da raiz ao talo, ramifica as cores mestiças da música contemporânea. Revisa o conceito do genuíno brasileiro para além dos limites continentais das nossas fronteiras.

Carlos Freitas | 15 set 2011_14h18
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China, Moto Contínuo e Kassin, Sonhando Devagar. Dois discos recém-lançados que representam um momento de reflorescimento. À luz da derrocada da indústria fonográfica, a música pós-industrial brasileira tem a cara do país. Integrada com sua diversidade de sotaques e tons, miscigenada da raiz ao talo, revisa o conceito do genuíno brasileiro para além dos limites continentais das nossas fronteiras.

China e Kassin reiteram, em seus novos trabalhos, a força da inteligência e obra coletiva, fazendo dela brotar um sentido de liberdade autoral. Moto Contínuo e Sonhando Devagar são frutos da reconfiguração das relações de poder e dos padrões estéticos antes ditados pelo mercado. Ouvem-se, nestes discos, reconstruções de linguagens sob uma dinâmica em que o autor também é produtor. Ele é o meio.

Além de cantor e compositor, China porta na sua assinatura atributos de produtor, VJ e proprietário de gravadora – a Joinha Records. Moto contínuo, conceito da física para uma máquina que reutiliza a própria energia em movimento, é uma declaração de princípios. Esse modo de produção baseado na sensibilidade do coletivo permitiu a cada uma das 11 músicas do disco um conjunto diferente de músicos e, consequentemente, de nuances tão distintas quanto diversas. Foram 13 músicos. Dentre eles, velhos parceiros do Mombojó, Felipe S e Chiquinho, o pródigo pianista Vitor Araújo e o baixista da Nação Zumbi, Dengue.

O extrato é uma música caleidoscópica com camadas de rock, punk, hardcore, surf music, disco, jovem guarda e subgêneros derivados. Coube a China harmonizá-las como recortes de suas crônicas cotidianas. Chama atenção o uso do hardcore como recurso harmônico para reforçar o impacto do bordão popular “chapéu de otário é marreta” utilizado no final de “Espinhos”. Nesse aspecto harmônico, também vale destacar a orquestração na valsa bela e delicada “Anti-Herói”, composta para seus filhos Mateus e Tom.

Moto Contínuo ainda teve a participação de Pitty na balada rocker “Overlock”. Outra cantora, a Ylana Queiroga, filha do maestro Spok, da Spok Frevo Orquestra, acrescentou o sotaque e sofisticação pernambucana para “Mais um sucesso pra ninguém”. A faixa “12 quedas” traz Lenine para salientar sua vocação de crooner de hits, enquanto Tiê faz dueto aveludado com China em “Terminei indo”.

Kassin segue a mesma linha colaborativa. E contou com um conjunto primoroso de músicos que garantiram uma instrumentação notável. Sonhando Devagar conta com Alberto Continentino no contrabaixo, Stephane San Juan na bateria, Donatinho (filho de João Donato) nos teclados, Gabriel Muzak na guitarra, Marlon Sette no trombone e trompetista Rob Mazurek, nome referencial da cena vanguardista de Chicago e que adotou o Brasil como casa, já tendo trabalhado com Hurtmold e Maurício Takara entre outros.

Músico, produtor, compositor, catalizador de linguagens musicais, Kassin adquiriu o leque “geomusical” do Brasil nos últimos dez anos, assinando a produção de discos de Caetano Veloso, Los Hermanos, Nação Zumbi, Orquestra Imperial, entre outros. Sua carreira se estabelece no limite do pop à fronteira do experimentalismo, desde os tempos do Acabou La Tequila, passando pela não música do Artificial produzida a partir de sons de game boy e do projeto +2 com Moreno Veloso e Domenico Lancelotti. Agora, finalmente lançando um disco solo, atinge sua excelência autoral. .

Sonhando Devagar sublinha fragmentos e conflitos bem resolvidos da nova música popular brasileira. Kassin dialoga com linguagens populares e extrai delas o humor que exala das situações nonsense das letras, interpretadas com um timbre de voz suave, quase suspirante. Fragilidade que soa totalmente encaixada nas texturas, por vezes mais como elemento harmônico do que puramente melódico. Contrasta leveza com a temática absurda, sacana, por vezes até escatológica, do disco. Faz o riso substituir a perplexidade que pode causar frases como “quero transar com você no banheiro dos paraplégicos” de “Calça de Ginástica”, ou “Minha glande fica enorme, quando o fundo é desfocado”, de “Quando você está sambando”.

Não, China e Kassin não integram um movimento de ruptura – talvez de enfrentamento natural aos modelos antes estabelecidos, tamanha a liberdade autoral que ambos expressam. Mesmo assim, as influências são notáveis. Surgem até como tributos.

As referencias à jovem guarda aparecem escancaradas em China, que tem no projeto Del Rey, de releitura de músicas de Roberto Carlos, em parceria com o Mombojó, uma fonte de inspiração. Já Kassin não nos permite duvidar da influência de João Donato em “Mundo Natural”, Jorge Benjor em “Quando Você Está Sambando” e Marcos Valle em “Calça de Ginástica”. Ambos os discos resultam num vigoroso produto pop que reedita o passado para subverter noções de presente e futuro.

A estes discos somam-se tantos outros de uma produção intensa, boa parte disponiblizados de forma gratuita pelos próprios autores ou selos os quais são sócios ou parceiros. Um fato revelador. Dá a entender que existe uma demanda que dá alicerce à cena musical. Contudo, longe das leis de mercado estabelecidas pelas gravadoras, seus contratos aprisionantes e padrões de estilo.

Hoje, em vez de uma onda uníssona, temos modulações que formatam novos sons e estilos que assim compõem um sentido mais próximo de genuíno da música popular nacional. Uma música compartilhada, produzida e cantada alegremente entre amigos.

Ouça os discos

Sonhando Devagar

No vídeo abaixo, o clipe de “Só serve pra dançar” de Moto Contínuo

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