A imensa fila que se formava aos sábados e domingos na frente do balcão de carnes do supermercado da Casa Verde, bairro da Zona Norte de São Paulo, já não existe mais. O quilo do contrafilé que, três semanas antes, era vendido por 27 reais tinha passado, em 1º de dezembro, para inacreditáveis 42 reais, um aumento de 55,5%. Em alguns açougues da cidade, numa evocação dos reajustes diários do período de hiperinflação pré-Plano Real, placas e etiquetas de preço foram retiradas das vitrines. Num açougue de Mongaguá, litoral de São Paulo, o quilo da picanha passou de R$ 29,90 para R$ 40 em um mês, um aumento de 33,77%. Em um mês, num supermercado da Tijuca, no Rio, o kg da picanha subiu de R$ 37,90, em outubro, para R$ 49,90, um aumento superior a 30%. O preço para o consumidor no Brasil varia por região e de acordo com o corte. Em média, segundo o IBGE, a carne subiu 8,09% em novembro – ela já vinha em alta desde setembro – e foi a responsável pela maior inflação para o mês desde 2015: 0,51%, de acordo com o Índice de Preço ao Consumidor Amplo. Na fila do açougue, os 8% se multiplicaram.
O responsável pelo fenômeno da multiplicação dos preços está agora no Extremo Oriente, desfilando por países como Camboja, Coreias do Norte e do Sul, Filipinas, Laos, Mongólia, Mianmar, Timor Leste, Vietnã e, principalmente, China. Trata-se de um vírus super-resistente e de alto poder de contágio, capaz de dizimar rebanhos suínos em algumas semanas – embora não cause danos à saúde humana.
Além do vírus da Peste Suína Africana (PSA), outro fator que ajuda a esvaziar as prateleiras brasileiras é o apetite chinês por proteína animal. Pelo menos 30% de todo o rebanho suíno chinês, que chegou a 700 milhões de cabeças em 2017, foi afetado pelo vírus. Estima-se que a população de porcos da China não passe de 440 milhões. Para efeito de comparação, o rebanho suíno brasileiro era um décimo disso, 41,4 milhões de cabeças em 2018, segundo o IBGE. Conforme dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos – com base na média de consumo dos últimos cinco anos –, ainda que os chineses importassem todos os demais porcos do mundo, a China não conseguiria suprir sua demanda por carne suína.
Mas se o foco da crise é o mercado da carne suína, por que, no Brasil, os preços que subiram mais rapidamente foram o da carne bovina? Uma das razões, explica o economista Rodrigo Moliterno – sócio da Veedha, corretora especializada em mercado de commodities – está no timing do ciclo de produção. “O mercado da carne bovina já estava aberto, e a produção pronta para ser dirigida à exportação”, afirma. Em outubro, a venda de carne de boi do Brasil para a China cresceu 65% em relação a setembro. “Mas é importante notar que os contratos futuros do mercado suíno também estão com forte viés de alta.”
Moliterno observa que a atual crise vai causar impacto no preço de todo o setor de alimentos por um longo período, de cinco a dez anos, até que o mercado volte a se acomodar. “Este certamente é um evento que vai alterar alguns de nossos hábitos; o churrasquinho do fim de semana vai ficar menos acessível do que era algumas semanas atrás”, afirma.
A arroba (15 kg) do boi, que era negociada em contratos futuros entre 160 e 170 reais, passou a ser cotada em até 222 reais – seguindo uma tendência mundial. Com a carne vermelha menos acessível, a demanda por proteínas de outras origens deve aumentar em efeito cascata, e o preço da carne suína, de aves e peixes também deve subir. O ciclo de produção bovina, do nascimento ao abate, é de cerca de dezoito meses, o que mantém seu preço alto por mais tempo do que o da produção de frango, por exemplo – cujo ciclo completo é de aproximadamente 45 dias.
A transmissão do vírus entre suínos e javalis se dá por meio do contato direto com os animais doentes, consumo por parte do rebanho de alimentos descartados infectados ou pela contaminação em equipamentos, veículos, roupas e sapatos. A transmissão também pode ocorrer por meio de carrapatos. O vírus é resistente, permanecendo nas fezes dos animais por até três meses e, em alimentos maturados, até nove meses. A primeira ocorrência da PSA foi registrada na década de 1920, no Quênia. Em geral, o animal morre semanas após contrair o vírus. Em 2007, países do Leste Europeu enfrentaram um surto da doença após um foco inicial ter sido registrado na Geórgia.
Há sinais, ainda mais sombrios, de que o aumento de preços irá além do mercado de proteína animal. O efeito psicológico da escassez – o medo da fome – em países de alta demanda como a China deve elevar a cotação de outros produtos agrícolas. O preço mais alto de grãos, como soja, milho e trigo, certamente reduzirá o acesso das populações mais pobres a produtos alimentícios. E, ao redor do mundo, isso deve intensificar a pressão para substituir áreas de preservação ambiental por campos de cultivo ou pastos.
Outro sintoma de um eventual aprofundamento da crise de alimentos pode ser a redução de barreiras sanitárias à importação de commodities agrícolas por parte dos países desenvolvidos. A isso se atribui, por exemplo, a decisão da Rússia, anunciada na segunda-feira, de retirar o veto de importação da carne brasileira – que vigorava desde 2017 em razão do uso de um aditivo que acelera a engorda do gado bovino.
Embora os economistas assegurem que o preço no mercado interno só vai diminuir depois de a China normalizar seu mercado de consumo e reduzir a importação da carne brasileira, o governo brasileiro prefere apostar num cenário de equilíbrio espontâneo e ignorar um princípio comercial óbvio: na situação atual, vender para o exterior é mais atrativo para o produtor do que abastecer o mercado doméstico.
“A carne aqui, internamente, daqui a algum tempo, acho que vai diminuir o preço”, disse na semana passada o presidente Jair Bolsonaro, esclarecendo que não fará nenhuma intervenção no mercado. “Eu não posso tabelar, inventar. Não vai dar certo”, afirmou o presidente.
Procurado pela piauí, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento reiterou a confiança na acomodação natural do mercado: “O ministério avalia que o mercado vai se estabilizar, não havendo portanto necessidade de nenhum plano de contingência. Atualmente, 25% da produção brasileira é destinada à exportação, sendo o rebanho brasileiro estimado em mais de 215 milhões de cabeças de gado.”
O órgão também anunciou medidas para evitar – e eventualmente enfrentar – a ameaça da Peste Suína Africana ao rebanho brasileiro. Uma portaria baixada pela ministra Tereza Cristina criou uma comissão técnica, composta por entidades de produtores e organismos de saúde animal, para supervisionar as ações. Entre elas estão o fortalecimento dos controles sanitários nos estados e a proibição expressa de se alimentar os animais com restos de alimentos; a intensificação da fiscalização do descarte de aeronaves e navios provenientes do exterior; o reforço na inspeção das bagagens de passageiros de voos internacionais e o cadastro de pequenas criações de subsistência nos rincões do país. O ministério sublinha, no entanto, que considera “baixo” o risco de a doença chegar ao Brasil, uma vez que não há notícias de contaminação em outros países do continente.