O pedido de demissão de três procuradores do grupo de trabalho da Lava Jato de Brasília, em protesto contra a tentativa da subprocuradora Lindora Araújo de obter dados sigilosos das investigações da Lava Jato em Curitiba, foi apenas a gota d’água que fez transbordar o saldo de conflitos acumulados pelos membros do Ministério Público Federal com a cúpula da instituição, comandada por Augusto Aras. Entre os episódios que fomentaram a crise estão uma tentativa de desbloquear o dinheiro do empresário de ônibus Jacob Barata na Suíça, a divergência em torno da delação do advogado e doleiro Rodrigo Tacla Duran, que acusa de corrupção um sócio da mulher de Sergio Moro, e a posição do Ministério Público quanto ao inquérito que apura a interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal. Em todos esses casos, a postura da chefia se chocou com a dos procuradores. Nos bastidores, os membros da operação falam em captura do Ministério Público por interesses privados e dizem se preocupar com a destruição da imagem da instituição. Nos últimos dias, conversei com vários membros do MP, que relataram as histórias abaixo sob a condição de anonimato. As informações foram cruzadas com diferentes pessoas relacionadas a cada situação.
O primeiro ruído entre a PGR e a Lava Jato se deu em abril, quando Araújo procurou a força-tarefa do Rio de Janeiro para sugerir o desbloqueio de uma conta da família do empresário Jacob Barata Filho no banco Safra, na Suíça, com saldo de 33,8 milhões de euros. Conhecido como o “Rei dos Ônibus”, Barata Filho foi preso duas vezes pela Lava Jato em 2017, e duas vezes foi libertado por habeas corpus concedidos pelo ministro do STF Gilmar Mendes. No ano passado, o empresário foi condenado a doze anos de prisão por corrupção ativa, no processo que apurou a distribuição de subornos a membros da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) por empresas de transporte público (a chamada “Caixinha da Fetranspor”). Barata Filho teve a pena aliviada depois de confessar ter pago propina a dois ex-presidentes da Alerj, Jorge Picciani e Paulo Mello, e um promotor de Justiça. Também devolveu aos cofres públicos 81 milhões de reais. A Lava Jato calcula que as empresas de ônibus fluminenses, incluindo o grupo de Barata, tenham desembolsado mais de 520 milhões de reais em propinas para autoridades fluminenses na gestão do ex-governador Sérgio Cabral.
A conta descoberta e bloqueada por iniciativa das autoridades suíças em 2017 está em nome de Guanabara Gestora de Participações SA. O processo corre em sigilo de Justiça. Segundo os suíços, além das notícias de envolvimento da família com denúncias de corrupção, não estava justificada a origem do dinheiro. Os documentos foram enviados ao Brasil por meio da Secretaria de cooperação Internacional da própria Procuradoria-Geral da República. Quando os papéis chegaram, os procuradores descobriram que os cinco filhos do patriarca Jacob Barata, antes donos da empresa, haviam passado suas cotas para o pai em 2014. Barata pai, hoje com 88 anos, não era réu em nenhuma ação. Ainda assim, os procuradores brasileiros pediram aos suíços para manter o bloqueio, por considerar a operação atípica (normalmente são os pais em idade avançada que passam bens para os filhos, como herança).
Quando a subprocuradora entrou no caso, os advogados de Barata já haviam pedido o desbloqueio à Justiça suíça, mas ainda esperam pela decisão. Como o MP brasileiro sempre opinou pela manutenção do bloqueio, a defesa do empresário julgava fundamental conseguir que o MP admitisse a liberação. Em abril, Lindora Araújo telefonou para os colegas do Rio e disse que o bloqueio não se sustentava, uma vez que Jacob Barata pai não é réu em nenhum processo. Disse ainda que pretendia fazer um acordo com a família: pediria à Suíça o desbloqueio e, em troca, aplicaria 10% dos recursos, ou 3 milhões de euros, no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Os procuradores recusaram. Segundo eles, acordos no âmbito penal só poderiam ser feitos mediante a confissão de crimes ou a delação premiada – caso em que Barata pai não só teria de confessar, como trazer novas informações. Ponderaram, também, que seria complicado o MP escolher para onde deveria ir o dinheiro, uma vez que não são eles os gestores públicos responsáveis pela sua aplicação. Além disso, não haveria elementos suficientes para avaliar o custo e a necessidades de um hospital desse tipo. Araújo não se conformou. Segundo testemunhas do episódio, nas conversas com os procuradores, Araújo disse que conhecia a família Barata, que o clã estava sofrendo muito e que o patriarca nada tinha a ver com os crimes dos filhos.
Para tentar dirimir o impasse, Araújo convocou uma videoconferência da qual participaram o advogado de Barata Filho, Rodrigo Mundrovitsch, acompanhado de auxiliares, e um grupo de procuradores da República de Brasília e do Rio. Na reunião, realizada no último dia 28 de abril, Araújo repetiu o argumento de que a conta tinha de ser liberada por ser do pai, que não é réu em nenhum processo. Os procuradores, mais uma vez, rebateram. Disseram que os próprios executivos da Federação dos Transportes do Rio de Janeiro haviam confessado que o esquema vinha desde os anos 1990, quando Jacob Barata pai ainda comandava o grupo empresarial, e por isso ele ainda estava sujeito à investigação, com novos bloqueios de bens. Havia, segundo eles, indícios suficientes de que a riqueza da família tinha sido amealhada à custa de corrupção. Para surpresa dos colegas, a subprocuradora interrompeu dizendo que essa não era a sua visão. Em sua opinião, o patriarca da família era um senhor de idade, contra o qual não havia acusação formal, e que portanto o bloqueio não se sustentava. A reunião terminou sem nenhuma conclusão. Entre os procuradores, a ação de Lindora Araújo foi interpretada como tentativa de interferir no processo, uma vez que não existe hierarquia funcional no Ministério Público e cada procurador tem autonomia para cuidar de suas próprias investigações.
Foi feita ainda uma última tentativa de chegar a um acordo. Os procuradores disseram que aceitariam trocar o dinheiro por bens entregues em garantia, mas os advogados da família Barata não chegaram a responder à proposta. As contas na Suíça continuam bloqueadas. Em Brasília, Araújo passou a dizer aos interlocutores mais próximos que a equipe do Rio extorque delatores e impõe sofrimento exagerado aos Barata. A PGR não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem a respeito do caso. O advogado do empresário, Rodrigo Mundrovitsch, disse apenas que lamentava o vazamento das informações para a imprensa, e afirmou que não comentaria o episódio.
Novo ruído se deu entre a chefia do MP e o GT da Lava Jato em Brasília, com a retomada das conversas para a delação de Rodrigo Tacla Duran – misto de advogado e doleiro denunciado em Curitiba por lavagem de dinheiro para as empreiteiras Odebrecht, Mendes Júnior e UTC. Embora seja réu em quatro processos no Brasil, Tacla Duran não foi condenado e hoje mora na Espanha, país do qual é cidadão. Ele emigrou em novembro de 2016, depois que o juiz Sergio Moro expediu uma ordem de prisão contra ele no Brasil. Desde então, acusa o advogado paranaense Carlos Zucolotto Junior, sócio de Rosangela Moro, de oferecer benefícios num acordo de delação que ele negociava com a força-tarefa de Curitiba em troca de 5 milhões de dólares. Também afirmava que Moro apresentou denúncias falsas contra contra ele perante o comitê da Interpol, para conseguir que ele entrasse na lista de procurados pela entidade.
Tacla Duran apresentou suas denúncias à CPMI da JBS no final de 2017, quando foram enviadas à PGR, então sob o comando de Raquel Dodge. Em 2018, elas foram arquivadas pelo vice-procurador da República Luciano Mariz, para quem o operador não forneceu provas do que dizia. Com a saída de Moro, as denúncias voltaram a ser consideradas.
No início de maio, Tacla Duran e a PGR assinaram um termo de confidencialidade oficializando a negociação para delação. Embora Moro já não tivesse mais foro privilegiado e as acusações contra ele devessem ser encaminhadas à primeira instância, em Curitiba, a delação era negociada no âmbito da PGR, porque o operador incluíra, em sua proposta, crimes de outras autoridades com foro privilegiado, entre as quais um desembargador com assento na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Os anexos de Tacla Duran, porém, foram novamente considerados fracos, dessa vez pelos procuradores do grupo da Lava Jato. Em despachos internos, avaliaram que Tacla Duran não revelou fatos novos, e que as provas apresentadas ou já haviam sido trazidas por outros réus ou eram documentos apreendidos em outras fases da operação. Recomendaram à PGR rejeitar a proposta de Tacla Duran. Depois disso, a subprocuradora retirou o assunto das atribuições do grupo de trabalho e encarregou o assessor especial de Augusto Aras, procurador João Paulo Lordelo, de cuidar do caso. Questionada pela reportagem, a PGR informou apenas que não comenta tratativas de delação em curso.
O entrevero não foi o primeiro a conflagrar o MP em torno de apurações envolvendo Sergio Moro. Enquanto tentava fazer avançar a delação de Tacla Duran, a Procuradoria-Geral da República continha, nos bastidores, a apuração sobre as denúncias feitas pelo ex-ministro ao sair do governo. Desde que a investigação começou, Aras rejeitou vários pedidos de diligências apresentados pelos subordinados – como, por exemplo, um requerimento para que a Justiça do Rio compartilhasse com a PGR os autos da operação Furna da Onça, que investigou o braço do esquema de corrupção de Sérgio Cabral na Assembleia do Rio. Foi nessa investigação que surgiu o relatório de inteligência financeira do Coaf apontando desvios praticados por Fabrício Queiroz, assessor de Flavio Bolsonaro na Alerj. Segundo o empresário Paulo Marinho, suplente de Flavio no Senado, policiais federais teriam vazado informações sobre o inquérito vpara o senador antes de se tornarem públicas. O vazamento teria sido a causa da demissão de Queiroz, entre o primeiro e o segundo turnos. Os procuradores queriam checar o conteúdo e os movimentos da ação, mas Aras não deixou. Na semana passada, os demissionários contaram a vários colegas ter ouvido do próprio procurador-geral que o inquérito seria arquivado antes mesmo de as investigações avançarem.
Na visita que fez à força-tarefa em Curitiba, na semana passada, Lindora Araújo disse que pretendia verificar os inquéritos pendentes de conclusão e pediu acesso a todos os bancos de dados em poder da Lava Jato. Disse que havia convidado para a visita a corregedora do MP, Elizeta Ramos, mas que ela não havia podido viajar por questões pessoais. Solicitou, ainda, que todos os técnicos capazes de acessar as bases de dados estivessem à disposição no dia seguinte – o que seria complicado, dado que vários deles estão afastados por serem de grupos de risco do coronavírus. A chefe do MP, Paula Thá, solicitou então uma lista dos bancos de dados a serem acessados, para que ela pudesse pedir aos funcionários em home office para comparecer ao MP. Lindora Araújo, porém, não apresentou a lista de quais arquivos pretendia acessar e nem nenhum pedido formal de compartilhamento de dados. Consultada pelos procuradores de Curitiba, a corregedora negou ter pedido ou concordado com qualquer verificação, até porque já realizara uma inspeção extraordinária nos escritórios da Lava Jato em fevereiro.
No dia seguinte, ao chegar para nova reunião, Araújo foi informada pelos colegas do que a corregedora dissera, indignou-se com o que chamou de falta de respeito e confiança dos colegas em consultar Elizeta Ramos sem a prévia comunicação e foi embora sem dizer exatamente o que tinha ido buscar no Paraná. Os procuradores, porém, relataram todo o caso num ofício à corregedora na última sexta-feira, que determinou nesta segunda-feira abertura de uma sindicância para apurar o caso.
Foi essa visita que levou à demissão três membros do grupo de trabalho da Lava Jato na PGR, na sexta-feira passada. Após a saída, a PGR divulgou nota negando que Araújo tivesse tentado acessar os dados sem um pedido formal. Afirmou que o pedido de compartilhamento havia sido feito em 13 de maio, num ofício enviado também às forças-tarefa do Rio e de São Paulo. No relato feito à corregedoria, contudo, os procuradores informam que já vêm discutindo como atender a esse pedido e fizeram até uma reunião para discutir os detalhes da transferência de dados por videoconferência com o secretário de perícia, pesquisa e análise da PGR, Pablo Coutinho Barreto, na segunda-feira, 22 de junho. Constatou-se, nessa reunião, que só os dados do escritório panamenho Mossack Fonseca demandam capacidade de rede e de armazenamento de no mínimo 40 terabytes – o que dificulta a logística da transferência. À piauí, membros da força-tarefa afirmam que o pedido de 13 de maio não foi mencionado por Araújo nas reuniões em Curitiba.
Apesar de a saída dos procuradores do GT em Brasília ter deixado a Lava Jato sem nenhum membro na PGR, a procuradoria divulgou nota dizendo que outros colegas assumirão os inquéritos e que as investigações não sofrerão prejuízo. Embora o tom da nota pública seja amistoso – “os profissionais continuarão prestando valorosos serviços às comunidades para onde retornarão”–, nos bastidores representantes da PGR vêm procurando jornalistas e outros formadores de opinião no meio jurídico para dizer que os membros da Lava Jato estavam sendo investigados por suspeitas de desvios, sem especificar quais seriam. Na sexta-feira (26), o site Consultor Jurídico afirmou que a PGR tem informação de que haveria mais de mil inquéritos parados em Curitiba. A força-tarefa teria ainda adquirido três equipamentos de localização e armazenamento de chamadas conhecidos como Guardiões, dos quais dois teriam sumido. A Lava Jato em Curitiba publicou nota negando enfaticamente todas as informações. Embora seja impossível prever o resultado final dessa guerra, parece evidente que ninguém sairá dela ileso.