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    INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DE KARLA MONTEIRO

questões ambientais

A cidade onde o tempo parou

“Seria melhor que estourasse logo. A expectativa é que está matando a gente”, diz morador de Barão de Cocais sobre barragem que ameaça romper

Karla Monteiro | 27 maio 2019_13h51
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Não sou filho de pai assustado. Sabia, desde o princípio, que este trem não ia estourar”, disse o aposentado Tarcísio Rodrigues, conhecido como Tarcísio do Saxofone, ao chegar para a missa das nove, na Matriz de São João Batista, Centro de Barão de Cocais. Corria a azulada a manhã de domingo, 26 de maio, o dia seguinte ao fim do prazo, iniciado no dia 19, alardeado pela Vale para o desmoronamento da parede de contenção da mina do Gongo Soco, o que poderia ocasionar o rompimento da barragem Sul Superior. Se a previsão tivesse se confirmado, em uma hora e doze minutos, a cidade mineira, localizada a cerca de 90 quilômetros de Belo Horizonte, teria sido atingida. Mas, em Barão de Cocais, há algo que pesa tanto quanto o medo do desastre: a incerteza da espera. E muitos moradores dizem preferir que a barragem estourasse logo, para acabar com a expectativa do pior.

A missa de domingo, ao contrário das últimas semanas, estava lotada. Um grupo de crianças, vestidas de anjo, iria coroar Nossa Senhora. “Foi uma semana horrível, a pior de todas. Só se falou disto. Hoje parece que o ar está mais leve”, comentou outra fiel, Aline Ferreira, técnica em metalurgia, enquanto a vizinha de banco, Priscila Giovane, pontuou: “Passar, não passou. Mas estamos mais tranquilos. Tinha medo até de vir na igreja, hoje eu vim.” No entorno da velha Matriz, construída em meados do século XVIII, o meio-fio pintado de laranja, a cor escolhida pela Defesa Civil para demarcar o perímetro a ser impactado, não permitia, porém, esquecer: área de risco.

Segundo a Defesa Civil de Minas Gerais, o perigo prossegue. O prazo fora apenas uma projeção. A movimentação do talude, a parede de contenção da mina, chegou, no fim de semana, a 20 centímetros de descolamento em pontos isolados. Ao meio-dia do domingo, a velocidade de deformação na base da estrutura era de 15,7 centímetros. No dia 19, quando começara a correr o relógio, esta variação estava entre três e quatro centímetros. Caso o paredão despenque, o que deve acontecer nos próximos dias, 5,3 milhões de metros cúbicos de terra vão cair na cava de mineração, o buraco que se forma na montanha escavada. Com 100 metros de fundura e 60 metros de espelho d’água, o impacto na cava poderá gerar uma onda vibratória capaz de provocar o rompimento da barragem Sul Superior, localizada a 1,5 quilômetros do local do desmoronamento. Nela há 6,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos, metade do volume que vazou da barragem de Córrego do Feijão, em Brumadinho. O tempo calculado para esses rejeitos atingirem Barão de Cocais é de uma hora e doze minutos.

Ao mesmo tempo, o talude também pode não se romper. Ou pode se romper, mas num deslizamento lento da terra, sem provocar o rompimento da barragem Sul Superior. Mas há a chance de que a terra seja contida pela cava. “Só teremos paz quando a Vale descomissionar a barragem. Descomissionar significa secar a água e retirar o rejeito. Para isso, coloque dois, três anos”, disse o prefeito Décio Geraldo dos Santos (PV). “Meu pedido para todo mundo é: continue alerta.”

Aos 47 anos, no primeiro mandato, o prefeito circula por Barão de Cocais de moto. Dentista de formação, atende num consultório na avenida Getúlio Vargas, a principal da cidade. Os problemas se acumulam. Na última quinta-feira, 23 de maio, deparou-se com as agências bancárias fechadas: Itaú, Bradesco e Caixa Econômica Federal transferiram os atendimentos, temporariamente, para a vizinha Santa Bárbara. Os caixas eletrônicos não tinham dinheiro durante todo o fim de semana. Até o caixa 24 horas, instalado dentro de um supermercado, encontrava-se fora de serviço. O único hospital, o Hospital Municipal Waldemar das Dores, tem estado permanentemente superlotado. No segundo semestre de 2018, registrou 11 mil atendimentos. De janeiro até o dia 13 de maio, somaram-se 17,5 mil. A superlotação decorre, de acordo com a Secretaria de Saúde do município, do aumento de casos de insônia, pânico e depressão.

Sobretudo, falta dinheiro. Até 2015, quando a Vale anunciou o fechamento da mina de Gongo Soco, a arrecadação de Barão de Cocais girava em torno de 95 milhões, segundo a prefeitura. Em 2018, caiu para 71 milhões. De acordo com Santos, a Compensação Financeira por Extração Mineral (CFEM) varia entre 1,5% e 3,5%. No último ano de funcionamento, a Gongo Soco rendera 21 milhões ao município. “Em países como o Canadá, por exemplo, esta porcentagem chega a 15%”, comparou. “O impacto social é imensurável. O nosso comércio caiu 50%. A mineradora também está apoiando muito pouco”, disse. A Vale, de acordo com ele, destinou 100 milhões de reais a dez municípios mineiros impactados pela paralisação de minas afetadas pelo risco de rompimento de barragens. Deste total, Barão de Cocais ficou com apenas dois milhões. “Sendo Barão uma das mais impactadas, não podemos receber apenas 2% do valor.”

A esperança está no futuro. “Em 30 de novembro do ano passado, nós, enfim, conseguimos o licenciamento para a exploração da mina Cava da Divisa”, informou o prefeito. Localizada entre os municípios de Barão de Cocais e São Gonçalo do Rio Abaixo, a Cava da Divisa pertence ao complexo Brucutu, operado pela Vale, segundo maior complexo minerário do Brasil. Usando a técnica a seco, que dispensa barragens de rejeitos, a nova mina deve render 5 milhões de toneladas de minério por ano. Além disso, a mineradora MR, que hoje produz 300 mil toneladas por ano na mina do Baú, está em processo de licenciamento para expandir a produção para 4,5 milhões. “Teremos algum fôlego. Quero ressaltar que ambas as minas, tanto a Cava da Divisa quanto a mina do Baú, vão usar o método a seco. Não queremos mais barragens na nossa região”, diz Santos.

Em nota, a Vale afirmou que o talude da mina de Gongo Seco e a barragem Sul Superior estão sendo monitorados 24 horas por dia e que não há elementos técnicos para dizer que o eventual deslizamento poderia romper a barragem. Reiterou, porém, que as medidas preventivas estão sendo tomadas e que segue à disposição das autoridades.

Na tensa noite de sexta, 24 de maio, véspera do deadline, a praça Nossa Senhora Aparecida, a principal da cidade, estava cheia, com as barracas de comida exalando cheiros, o sertanejo universitário ecoando nas caixas de som e os moradores enrodilhados. “O tempo parou. Eu queria que estourasse isso, e a gente poderia tocar a vida”, disse Denise Maria do Carmo. Ela vende massas italianas congeladas de porta em porta: “Ninguém mais compra. As pessoas não querem encher o freezer sabendo que de uma hora para outra terão que deixar tudo para trás. Nossa vida agora é isto: esperar.” O problema da prima, Patrícia do Carmo, era outro: convencer o filho Lucas do Carmo, de 17 anos, a voltar a frequentar as aulas. O garoto estuda na Escola Estadual Odilon Behrens, localizada à beira do rio Santa Bárbara. “Os corredores são estreitos. Se tocar a sirene, vai todo mundo se empurrar nas escadas, cair, machucar. Não quero estar lá. A gente chega e não tem certeza se vai voltar para casa”, pontuou ele, enquanto a falante Patrícia ralhava: “Tem isso não, Lucas, tem que ir. A gente não pode deixar de viver.”

“A morte marca Gongo Soco desde sempre. Em 1856, por exemplo, morreram soterrados 33 escravos”, comentou o vereador Leonei Pires, do Partido Verde, sentado na varanda da casa dos pais, na rua Capitão Soares, bairro Viúva, também marcado pela cor laranja. Na noite de sexta-feira, uma romaria de amigos passava por ali, em busca de notícias. Estudioso da história de Barão de Cocais, Léo Pires, como é conhecido na cidade, tem na cabeça nomes e datas: “Até Dom Pedro já esteve no Gongo. Visitou a mina em 10 de março de 1881.” O primeiro explorador fora o Barão de Catas Altas, João Batista Ferreira Chichorro de Souza Coutinho. Depois, vieram os ingleses, cerca de 600 famílias, com a venda da propriedade para a Imperial Brazilian Mining Association. Até então era uma mina de ouro. A exploração de minério de ferro só começara mais tarde, já em 1900. No começo do ano 2000, após a privatização, a Vale, enfim, encampara Gongo Soco, explorada até 2015, quando a mineradora anunciou o esgotamento do veio de minério.

“Por que não iniciaram o descomissionamento, então? Poderiam ter começado a desativar a barragem lá, em 2015. Simplesmente a Vale abandonou a mina do Gongo”, disse Léo Pires. “Defendemos a mineração a seco, que não utiliza barragem de rejeito. Nossa luta tem sido esta: acabar com as barragens. Não com a mineração. Precisamos da mineração.”

Na sexta-feira de manhã, moradores da região se reuniram com os senadores Carlos Viana (PSD-MG) e Fabiano Contarato (Rede-ES), além de representantes da Vale e da Agência Nacional de Mineração (ANM). Cobraram uma solução para o problema que se arrasta há meses. Após sobrevoar a mina de Gongo Soco, os senadores estavam ali para uma reunião pública. Morador da vila do Gongo Soco, evacuada em 8 de fevereiro, quando a mineradora elevou o risco de rompimento da barragem Sul Superior para o nível 3, o professor Nicolson Pedro de Rezende está morando num hotel de Barão de Cocais desde então. “Fizemos perguntas válidas. Se não responde ao povo vai responder a quem? Faço parte da comissão dos moradores evacuados de Socorro, Piteiras, Tabuleiro e Gongo Soco. Queremos saber quem é quem.” E segue: “Seria melhor que estourasse logo. A expectativa é que está matando a cidade.”

Rezende tinha nas mãos uma edição do jornal O Tempo, de Belo Horizonte, informando que, em 2014, último ano em que as empresas puderam realizar doações para campanhas políticas, as mineradoras despejaram recursos nas campanhas de 102 deputados federais e estaduais eleitos pelo Estado. “Temos muitas perguntas a todos que veem aqui. A Vale está fazendo hora com a gente”, disse o professor. “Por ser solteiro, sou o último na lista de prioridades da mineradora. Aluguei um lugar para colocar os meus quatro cachorros e moro no hotel.” De acordo com ele: “Somos 459 evacuados. Estamos cansados deste circo. Rompendo ou não rompendo o talude, a saga continua. O prazo que a mineradora nos deu para voltar para casa, isso se a barragem não romper e se conseguirem fazer o descomissionamento, é de três a cinco anos.” 

Pelo menos aparentemente, foi um sábado como outro qualquer em Barão de Cocais, com comércio funcionando e muita gente nas ruas. Naquele 25 de maio, porém, encerrava-se o tempo previsto para o desmoronamento da parede de contenção da mina. “Sem informações oficiais, as pessoas ficam nas esquinas fazendo conjecturas. Parece que está tudo normal, mas já não está normal há quatro meses”, comentou o jornalista Felipe Jacome, do Diário de Barão. A sede do jornal fica na rua Geraldo Cleofas Alves, com vista para o Centro de Eventos José Furtado, um dos sete pontos de encontro estabelecidos pela Defesa Civil. “Ali vai se concentrar o maior número de moradores em caso de evacuação”, apontou. “A Vale virou as costas, não conversa, só emite nota. O pânico poderia ser menor se houvesse mais diálogo. Não rompeu a barragem ainda, mas há muita lama invisível abalando a saúde da cidade.”

A aposentada Sylvia Duarte, de 82 anos, não quer mais saber de esperar. Na manhã de sábado, deixou sua casa, na rua Doutor Moura Monteiro, na zona laranja, para morar com amigas no bairro Lagoa, parte alta da cidade. Na velha casa, construída nos anos 30, onde mora há mais de setenta anos, abandonou o que tem de mais precioso: mais de 300 vasos de plantas. “Levar para onde?”, perguntou. A vida coube em quarenta e poucas caixas. Pela segunda vez, estava sendo despejada pela Vale. A primeira vez fora em 1942, quando tinha 5 anos e a recém-criada Companhia Vale do Rio Doce desapropriou a residência de sua família, no bairro Campestre, em Itabira. “Moro aqui desde esta época. Viemos para Barão corridos da Vale. Naquele tempo não tinha indenização direito, nada. Meu pai penou. Isso parece a repetição do pesadelo”, suspirou. “Não durmo direito há não sei quanto tempo. Não como. Vivo numa afobação danada. Não aguento mais não.”

 

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