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debate

Ciência política regulamentada

Em resposta ao artigo “Deixa a moça trabalhar”, autores  defendem regulamentação da profissão de cientista político

Vítor Sandes, Bruno Bolognesi, Robert Bonifácio, Leon Victor de Queiroz Barbosa, Soraia Marcelino Vieira e Helga Almeida | 14 set 2020_18h02
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No artigo “Deixa a moça trabalhar”, publicado no site da piauí, o colega e professor Cláudio Gonçalves Couto defende a liberdade de expressão e de atuação profissional de Gabriela Prioli, uma figura pública criticada nas redes sociais por estar oferecendo um curso de política. De fato, temos que zelar pela liberdade de expressão que não ultrapasse os limites constitucionais do estado de Direito, mesmo que o conteúdo da mensagem não nos agrade ou com o qual não concordamos. Não é sobre isso que queremos tratar aqui, porém. O que nos interessa discutir é a última parte do artigo, na qual nosso colega se posiciona contra o reconhecimento da profissão de cientista político. 

Existem posicionamentos os mais diversos a respeito do reconhecimento profissional da ciência política, seja no âmbito da comunidade acadêmica, seja no ambiente não acadêmico, no dito mercado político. Trata-se de um tema polêmico. Em nome da livre expressão, não podemos nos furtar a levar adiante esse debate sem as amarras de preconcepções. Ao contrário de Couto, somos a favor do reconhecimento de nossa profissão. 

Cientistas políticos são, cada vez mais, requisitados para falar à imprensa, fazer consultorias,  desenvolver pesquisas, atuar no mercado de diversas maneiras. A área, como um todo, cresceu de maneira expressiva nos últimos anos, e já contamos, inclusive, com pelo menos dezesseis cursos de graduação específicos de ciência política, seja em instituições privadas ou públicas, tais como UnB, Unirio, UFPE, UFPI, Unipampa (RS), Republicana (DF) e Uninter (PR). Essa expansão corresponde à perspectiva de que um profissional formado na área é altamente capacitado para contribuir, de forma distintiva, com a melhoria das práticas políticas no país, inclusive por meio da assessoria técnica aos representantes nos três níveis federativos, tanto no Executivo como no Legislativo. Além disso, o cientista político pode exercer papel crucial na operação do mercado eleitoral, na formação e na gestão de políticas públicas, assim como em diversas atividades da sociedade civil. 

No entanto, muitos desses espaços têm sido ocupados por profissionais do direito, da comunicação social e da administração. Não por acaso, três áreas com profissão regulamentada. Isso é esperado, afinal, quem pode ser considerado cientista político? Em princípio, qualquer profissional. Basta ligar a tevê ou o rádio para ver exemplos de cientistas políticos que nunca, na verdade, tiveram nenhum treinamento na disciplina. Em suma, o cientista político existe, mas não é reconhecido. Por isso, já há algum tempo, professores e pesquisadores da área têm debatido formal e informalmente, tanto nas universidades como em eventos científicos, o estado atual e os rumos da profissão, ainda não regulamentada. Pensamos que cabe ao Estado, por meio do Legislativo, regulamentar, delimitar sua atuação e a formação exigida, dando garantias aos profissionais da área. Isso não é nenhuma proposta exótica, pois é preciso lembrar que a ciência política já é regulamentada como profissão em vários países, como Itália, México, Austrália e Suíça, entre outros, e, obviamente, os Estados Unidos, onde a própria profissão foi inventada no século XIX e onde foi fundada a primeira associação acadêmica e profissional, em 1903.

Porém, o reconhecimento e a regulamentação profissional poderiam, como disse Couto, produzir o resultado indesejável do “surgimento e o encastelamento de cartórios”? Seria apenas uma ação corporativista por parte de seus defensores? Pensamos que essa conclusão tão peremptória não procede. Há diversos modelos de organização profissional, e nem todos significam o estabelecimento de um rígido controle burocrático e oligárquico da área, como sugere a menção que Couto fez a Robert Michels. A regulamentação de uma profissão não precisa de ser sinônimo de corporativismo ou de criação de “cartórios” que controlam com mãos de ferro o seu exercício. Basta ver o exemplo da sociologia (regulamentada pela lei n° 6.888/1980), que permite que os sociólogos exerçam as suas funções no mercado acadêmico e/ou não acadêmico sem a interferência de um “conselho de classe” nas suas atividades – observe-se, aliás, que um Conselho somente é criado por Projeto de Lei com iniciativa do Executivo Federal. Por outro lado, os formados em ciências sociais, sociologia ou sociologia política, em qualquer nível (graduação, mestrado ou doutorado), podem ser contratados como sociólogos por entidades públicas ou privadas e ter os seus direitos defendidos por organizações de interesse, como os sindicatos. 

Recentemente, a profissão de historiador foi reconhecida (lei nº 14.038, de 17 de agosto de 2020) após décadas de constante empenho. Sem essa lei, não haveria uma regulamentação clara a respeito da contratação de historiadores para serviços especializados, como o trabalho em arquivos e museus, tão importantes para a preservação da história do país. De fato, o processo de regulamentação de profissões sempre foi relevante para assegurar as condições mínimas para a melhor formação e a dignidade no trabalho – por um lado, a regulamentação sinaliza as qualificações desejáveis para a atuação responsável e competente no mercado de trabalho e, por outro, quem contrata o profissional tem maior segurança a respeito dos serviços e produtos que receberá. Isso é justo para com o trabalhador e o empregador.

Isso não quer dizer, entretanto, que um profissional que se graduou em algum nível em outra área está automaticamente excluído da profissão. O mercado acadêmico é e deve permanecer aberto à interdisciplinaridade, algo previsto como diretriz em concurso público e na contratação por empresa privada. Mas não podemos ignorar que a especialização na área ocorre, assim como em outras áreas. E isso é sinal de profissionalização de fato, que demanda sua regulamentação. Quando alguém precisa de um arquiteto, não espera ser atendido por um médico, o que não quer dizer que não se possa estudar urbanismo e saúde pública ou discutir sobre esses assuntos livremente. O diletantismo não pode ser justificativa quando se exige responsabilidade, e quando tal responsabilidade deve se apoiar em formação específica. Não faz sentido, sobretudo, formar pessoal com graduação, mestrado e/ou doutorado em ciência política e, ao mesmo tempo, dizer que qualquer um pode ser cientista político, independentemente de sua formação. Se for assim, para que serve a formação na área? Economistas, sociólogos, engenheiros, psicólogos, historiadores, entre outros, podem perfeitamente estudar, analisar e discutir temas de política, afinal, a política abrange todos os aspectos da vida humana; eles podem até atuar como professores e pesquisadores em departamentos e programas de pós-graduação, agregando suas abordagens a uma área que é multidisciplinar desde o seu surgimento. Contudo, não faz sentido ser considerado um cientista político sem ter qualquer formação na área. 

Este é o debate a ser empreendido: temos que definir o que é um cientista político profissional, bem como os seus direitos e deveres profissionais. Essencialmente, esse debate deve ser realizado de maneira esclarecida, focada e sem pré-noções. De preferência, dentro da própria área. Diversos modelos que podem ser adotados; a regulamentação da profissão, vale repetir, não necessariamente criará obstáculos à atuação de qualquer profissional que queira tratar da política, ministrar cursos e oferecer serviços profissionais na área. Como bem disse Couto, a política não é propriedade da ciência política, assim como a saúde não é propriedade da medicina. A regulamentação de uma profissão não tem por objetivo facultar o monopólio num assunto, tema ou objeto de estudo, mas sim garantir que o profissional formado em determinada área seja responsável por aquilo que diz e assina. Que existam espaços onde o mais adequado é um profissional com treinamento especializado. Qualquer graduado, ou mestre, ou doutor em ciência política merece ter reconhecimento e os respectivos direitos estabelecidos. Esse debate vale a pena. Há prós e contras que devem ser sopesados, sabemos disso; só não podemos fazer objeções a priori. Esperemos o processo deliberativo.

Por fim, a ciência política como simples vocação é um modo de viver a disciplina que confere status aos portadores dos títulos e limita o espaço de atuação de um contingente muito grande de pessoal qualificado. A realidade brasileira mudou drasticamente nas últimas décadas. Os jovens que chegam à Universidade e à ciência política hoje são de origens sociais as mais diversas e têm necessidades e demandas que só podem ser satisfeitas por meio de uma formação profissional que os habilite à atividade científica tanto no mundo acadêmico, público ou privado, como nas instituições do mercado e da sociedade civil. Sim, a ciência política ainda deve ser uma vocação, mas já estamos atrasados na necessária discussão sobre torná-la, também, uma profissão – reconhecida e regulamentada.  

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