A maioria do eleitorado elegeu um extremista despreparado para a Presidência da República. Assim, lançou o país em uma aventura de altíssimo risco. Dominante há tempos, a incerteza atingiu agora seu paroxismo. Ameaças, arbitrariedades, discriminações, violências e manifestações de intolerância, ao que tudo indica demarcarão o novo governo e nossa vida a partir de agora.
O cinema brasileiro deu contribuição discreta para esse quadro desconcertante poder se impor. Os filmes produzidos no Brasil, em seu conjunto, foram incapazes de detectar, narrar e expor tendências de opinião majoritárias, inclusive a rejeição radical às práticas políticas e empresariais corruptas denunciadas a partir de 2005. Dessa forma, deixaram de cumprir um de seus principais papéis – o de antecipar conflitos e sentimentos dominantes.
Filmes isolados podem ter abordado temas correlatos, mas de forma geral tiveram alcance inexpressivo ou chegaram ao mercado com tamanho atraso que se tornaram anacrônicos. Em alguns casos, glorificando a polícia ou avacalhando os políticos, contribuíram para fortalecer convicções de direita consolidando o pensamento afinal vitorioso na eleição presidencial.
Acomodado e omisso, o setor audiovisual foi incapaz de reagir às deformações resultantes da hipertrofia burocrática que controla cada vez mais a atividade cinematográfica, desde a criação da Agência Nacional de Cinema (Ancine), em 2001. Produtores, diretores, técnicos, prestadores de serviço etc. se deixaram cooptar, mais uma vez, pelo aceno de recursos disponíveis, cada vez mais fartos. Processo semelhante ao que ocorreu, em escala reduzida, na década de 80, e levou à extinção da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), em março de 1990, depois que os mecanismos de financiamento então existentes perderam sua legitimidade social.
O pacto entre os gestores culturais, incluindo a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, e os profissionais da atividade incluindo distribuidores, exibidores e o Sindicato das Empresas de Telecomunicações, as chamadas teles, camufla a perene fragilidade institucional da atividade audiovisual, mina o senso crítico e relega a segundo plano impasses estruturais que impedem filmes brasileiros de serem competitivos em seu próprio mercado.
Reflexo exemplar da desconexão existente entre cinema e sociedade, além da carência de público da maior parte da produção, é o artigo de André Klotzel, “Regras sob demanda”, publicado em 28 de outubro no caderno Ilustríssima da Folha de S.Paulo. Embora sem reparo à substância do texto, o que o torna desconcertante é seu teor extemporâneo, sem conexão direta com a gravidade do que estava em jogo no dia em que foi publicado – a eleição do futuro presidente da República.
Ao ser publicado nesse domingo fatídico, talvez por infeliz casualidade, o artigo de Klotzel realçou a separação existente entre, de um lado, interesses corporativos legítimos, no caso, e de outro os anseios da população, da qual pequena parcela forma o público espectador destinatário dos filmes que realizamos.
Seria demais esperar que cineastas brasileiras e brasileiros tivessem feito, nos últimos anos, filmes que captassem de alguma maneira o que vinha ocorrendo no país de modo pouco subterrâneo? E durante a campanha, em especial no segundo turno, seria querer muito que houvesse manifestações coletivas como as de outros setores? Devem ter sido tomadas posições individuais, mas, até onde pudemos observar, a categoria profissional permaneceu muda.
E agora? Como reagir? Não estamos diante de uma alternância de poder usual. Será preciso, em primeiro lugar, estar alerta, marcar posição em defesa da democracia, dos direitos civis e da liberdade de expressão. Os primeiros sinais que foram dados assim que o resultado da eleição foi anunciado, e também nos últimos três dias, são inquietantes.
As bravatas do presidente eleito incentivam manifestações isoladas, mas nem por isso menos graves, de intolerância e fazem pensar na atitude de Fritz Lang (1890-1976), depois de seu filme O Testamento do Dr. Mabuse (1933) ser interditado por Joseph Goebbels, ministro da Informação e Propaganda da Alemanha nazista.
Segundo versão de Lang, consagrado diretor de Os Nibelungos – A Morte de Siegfried (1924), Metropolis (1927) e M – o Vampiro de Dusseldorf (1931), entre outros clássicos, Goebbels lhe teria dito pessoalmente não gostar “nada do final: – O final deveria ser mudado. Mabuse não deve enlouquecer. Ele deve ser morto pela fúria do povo”. “– Sim, Herr ministro”, Lang teria respondido: “– Eu reconheço isso. Durante todo o tempo [da conversa] eu olhava pela janela para a praça em frente com aquele grande relógio, pensando para mim mesmo: Não resta nada a fazer se não sair daqui. Eu sabia que não podia ficar na Alemanha. Com minha insolência habitual eu provavelmente acabaria mal. […] – Naquela mesma noite eu deixei a Alemanha e nunca mais voltei.”
Não sendo conhecidas outras fontes dessa conversa, além da que Lang deixou, e tendo sido comprovado que, na verdade, ele só saiu da Alemanha em definitivo quatro meses depois, convém colocar entre parênteses esse relato do grande diretor austríaco, favorável em excesso à sua própria imagem póstuma. (Dois depoimentos filmados de Lang em que ele trata desse assunto estão disponíveis aqui.)
Inegável é o fato de que O Testamento do Dr. Mabuse foi proibido e Lang ter começado uma nova etapa de sua carreira nos Estados Unidos, onde Fúria, em 1936, produzido pela Metro-Goldwyn-Mayer, foi seu primeiro filme americano. Se, em O Testamento do Dr. Mabuse havia desagradado a Goebbels, ao estrear na América tratou de outro tema controverso – linchamentos.
Ao apresentar O Testamento do Dr. Mabuse, em Nova York, em 1943, sempre cultivando imagem positiva para a posteridade, Lang declarou: “Esse filme queria mostrar, como uma parábola, os métodos terroristas de Hitler. Os slogans e os credos do IIIº Reich estão na boca de criminosos. […]” (Lotte H. Eisner, Fritz Lang, 1984).
Depois de esperar um ano, recebendo salário da MGM sem filmar, Lang admite ter recebido das mãos de Eddie Mannix, produtor executivo do estúdio, a sinopse de quatro páginas com o título Mob Rule (Reino da Turba), escrita por Norman Krasna, na qual o cachorrinho do personagem principal que está preso é morto durante “o tumulto ou o incêndio ou alguma coisa – não sei”, Lang disse a Peter Bogdanovich, em 1965 (Fritz Lang in America, 1967).
A partir de recortes de jornal sobre linchamentos, em especial um caso ocorrido em São José, na Califórnia, alguns anos antes, Lang começou a escrever o roteiro com Bartlett Cormack, designado pela Metro. Por imposição do estúdio, o personagem principal deixou de ser de classe alta, conforme previsto na primeira versão do roteiro, e se tornou Joe Wilson, mecânico de automóvel, homem comum, branco, interpretado por Spencer Tracy.
No início da década de 30, o número de linchamentos havia aumentado depois de passado o pior período da Depressão. Na grande maioria dos casos as vítimas eram negros, judeus, comunistas e líderes sindicais que também foram mortos por turbas formadas, em geral, por pessoas conservadoras, brancas, de classe média. Mas, para a Metro, não era admissível confiar o personagem principal, herói do filme, a um ator negro “para não ofender os estados do sul”.
“Eu vi a possibilidade de dizer algo contra linchamentos – mesmo se não fosse da maneira como deveria ser”, Lang disse a Bogdanovich.
Lang é um cineasta exemplar, mesmo ao fazer de Fúria, por inclinação pessoal ou imposição do estúdio, uma história ingênua com final feliz. Seus melhores filmes, alemães ou americanos, permitem identificar traços que compõem um retrato do seu tempo.
Esse já foi, creio, o projeto do cinema brasileiro. Em qual curva do caminho terá sido abandonado? Convém resgatá-lo se ainda for possível.