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Cinemateca Brasileira em chamas – II

Foi preciso um fogaréu para comover quem ignorou o abandono da instituição

Eduardo Escorel | 04 ago 2021_09h02
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Retomo o assunto do texto publicado aqui na quinta-feira passada (29/7), enquanto o fogo ardia, fora de controle, no galpão da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, em São Paulo.

Conforme escrevi, a primeira fotografia do que estava acontecendo chegou às 18h30, vinda pelo WhatsApp, e era assustadora. Em primeiro plano, um homem de costas, vestido de jaqueta, parecia se dirigir para uma edificação baixa e longa, do outro lado da rua deserta, diante da qual havia dois carros estacionados. Erguendo-se acima do telhado e tendo ao fundo o céu azul escuro do fim da tarde, a luminosidade do fogaréu e a fumaça escura não deixavam dúvida quanto à gravidade da situação. Passado um minuto, chegou o texto: “Cinemateca, será verdade???”

Soube depois que a fotografia havia sido feita pelo freelancer Marcelo Naddeo ao chegar antes dos bombeiros diante do galpão com térreo e um andar que estava em chamas. Graças à série de fotos de Naddeo, disponíveis no Instagram, estão documentados não só os preparativos para iniciar o combate ao fogo, mas também, vista de cima, a amplitude do incêndio naquele momento.

Foto: Marcelo Naddeo

 

Três minutos depois de a primeira fotografia ter chegado veio outra, cuja autoria desconheço. Feita de longe e do alto, mostra as janelas iluminadas dos prédios ao fundo, o fogo e a fumaça parecendo estar acomodados em um ninho, envoltos pelas paredes da construção. Logo depois a notícia foi confirmada: “Verdade, Vila Leopoldina” – unidade da Cinemateca na Zona Oeste, distante do edifício-sede na Vila Clementino, onde ficam depósitos climatizados, salas de projeção, laboratório de restauro atualmente desativado, biblioteca etc.

No dia seguinte, às 14h30, foi possível ver gravação de 24 segundos, feita de um drone pelo fotógrafo Paulo Rapoport. As instalações da primeira área focalizada estavam a céu aberto, mas pareciam preservadas; em seguida, após parte destruída da cobertura de zinco, podia-se observar os bombeiros trabalhando entre escombros; depois, outro telhado aparentemente preservado.

Mesmo a distância, a sensação ao acompanhar o evento foi de estar testemunhando a tragédia em tempo real, ao vivo, o que acentuou sua dramaticidade enquanto mensagens desoladas de colegas não paravam de chegar. A pesquisadora Eloá Chouzal escreveu palavras que acredito representam o sentimento de muitos de nós naquele momento (30/7, 15h48): “Ontem morri um pouco!… Desculpe o comentário, mas estou muito revoltada, triste, desolada, e muitos outros sentimentos difíceis. A sensação de luta perdida, de impotência, é devastadora! O que mais fazer, pra onde ir, como lutar para reverter, mudar uma vírgula em tudo isso. Não paro de chorar… Estou no chão! Agora. Espero voltar logo a ter esperança de algo qualquer.”

Concluído o trabalho de rescaldo, peritos da Polícia Federal chegaram na sexta-feira, por volta de 16h18, para investigar a causa e as responsabilidades pelo ocorrido. Sinal de que o trabalho dos bombeiros havia terminado, o incêndio fora controlado e a possibilidade de reacender, em tese, excluída.

O impacto do ocorrido pode ser medido tanto pela reação da comunidade cinematográfica quanto pela ampla cobertura da mídia, a tal ponto que o sinistro parece ter acarretado uma espécie de celebração mórbida, da qual fizeram parte até imagens inéditas do interior do galpão exibidas no Fantástico (1/8). Algo semelhante ao que acontece quando alguém morre e é transformado subitamente em herói ou santo. Onde estavam esses jornalistas durante o longo período em que o governo federal manteve a Cinemateca Brasileira de portas fechadas, com seu acervo entregue à própria sorte? Foi preciso irromper o fogaréu, destruindo documentos e filmes, para comover muitos colunistas e formadores de opinião que ignoraram o abandono da instituição, largada em estado terminal e “sobrevivendo ligada a aparelhos”, como disse Carlos Augusto Calil, atual presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC).

Diante da avalanche de informações sobre o incêndio e a destruição divulgadas desde o final da semana passada, cheguei a me perguntar se haveria algo mais a dizer a respeito. O artigo de Ana Paula Sousa, Após o Fogo, o Remendo, publicado neste site no dia seguinte ao evento (30/7 às 12h52), praticamente esgota o assunto por enquanto. O que se coloca agora é o clássico “o que fazer?”

Em primeiro lugar, como é evidente, agir com celeridade e ressuscitar a Cinemateca Brasileira, tomando providências simples e indispensáveis, já definidas e que dependem de vontade política dos responsáveis legais pela instituição.

Há formas diferentes e complementares de atuar, evitando novas perdas. Uma, de caráter institucional, envolve a relação com a Secretaria Especial da Cultura. Outra diz respeito ao direito da comunidade cinematográfica de se manifestar livremente. Nesse sentido, é oportuna a convocação pelo Movimento Cinemateca Acesa para o ato a ser realizado em frente à sede da Cinemateca Brasileira, na Vila Clementino, no próximo sábado (7 de agosto) das 14 às 17 horas, data em que fará um ano desde que a instituição foi fechada. No mesmo dia e horário, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, haverá ato de solidariedade, em defesa da Cinemateca Brasileira, convocado pela Associação Brasileira de Cineastas (Abraci).

Em manifesto publicado no dia seguinte ao incêndio (30/7), os trabalhadores da Cinemateca Brasileira declaram que “a Cinemateca Brasileira não pode ficar à mercê de novas intempéries”. Para os signatários, “a gestão da instituição por meio de terceirização via Organização Social, da forma como foi realizada, mostrou como pode ser frágil essa relação, e que tal modelo não dá conta da complexidade de um órgão cultural desse porte. O edital prometido pelo Governo Federal, sem debate, ferramentas de transparência, a participação da população, de pessoas da área de patrimônio cultural e, principalmente, do coletivo dos ex-trabalhadores da instituição, não será a solução. Alerta-se ainda que o orçamento anunciado é significativamente inferior ao necessário. É preciso estabilidade e garantia de equipe técnica a longo prazo, oferecendo à instituição um orçamento compatível com os necessários serviços de preservação e difusão do audiovisual brasileiro.”

O Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) conclui sua nota pública, divulgada em 31 de julho, afirmando que mais uma vez “vem a público alertar para a necessidade de providências imediatas para o pleno funcionamento da Cinemateca Brasileira, com recursos financeiros e humanos adequados e especializados, para que os direitos constitucionais de acesso às informações públicas e de acesso às fontes da cultura nacional sejam garantidos”.

Estamos fadados a conviver para sempre com as enormes perdas causadas pelo incêndio de 29 de julho. Entre o que teria sido destruído, sem querer hierarquizar danos – todos são imensos –, chama atenção a notícia de que, segundo entrevista de Paloma Rocha, “ao menos cem caixas do acervo de Glauber Rocha estavam no galpão da Vila Leopoldina que pegou fogo”. Após terem sido molhadas na enchente que ocorreu em 2020, Paloma passou a ligar toda semana para a Secretaria Especial da Cultura, mas nunca conseguiu “uma solução efetiva. Até que ontem pegou fogo. Fiquei muito abalada. Ontem tive uma crise de choro e desespero sem saber o que estava acontecendo”.

Que destino comum trágico esse da Cinemateca e de Glauber, ambos vítimas de incêndios – o quinto, no caso da Cinemateca; no de Glauber, o primeiro, 40 anos após sua morte prematura.

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