Não há dúvida de que as eleições de 2018 no Brasil serão polarizadas. São tantas as rixas que é difícil perceber qual a antinomia mais relevante. Esquerda x direita? Intervencionismo x liberalismo? Lulismo x antipetismo? Podemos elencar dezenas de antagonismos que dividem as opiniões de eleitores brasileiros, mas há uma disputa maior que todas, uma polarização tão polarizante que ofusca as demais: civilização e barbárie.
Não me refiro à versão clássica dessa oposição, que deu o tom da expansão colonial no Brasil, servindo como justificativa da escravidão e da exterminação de povos indígenas. Refiro-me a uma nova barbárie, gestada e incubada pela própria civilização, que agora cria asas e quer sair do casulo.
Na América Latina, “civilização” e “barbárie” demarcaram muitas disputas durante o processo de construção das identidades nacionais, como retratado pelo clássico Facundo, escrito por Domingo Faustino Sarmiento em 1845. Que modelo de sociedade deveria ser seguido? O das elites citadinas, escolarmente qualificadas, adoradoras da Europa? Ou seria o das elites campesinas, caudilhescas, ancoradas no uso da força e desprovidas de qualificação técnica?
Nos termos de Sarmiento, a civilização ganhou. Nossos países adotaram, ao menos formalmente, o modelo iluminista das sociedades ocidentais. Nele, aquilo que se entende como verdade é verificável e demonstrável por meio da ciência e dos fatos; nele, a racionalidade é um princípio básico e compartilhado, que fundamenta as decisões das atividades políticas e econômicas; nele, os Poderes devem ser divididos e balanceados, para evitar excessos de uma esfera de poder sobre as outras; nele, o governo deve ser eleito pelo povo e deve ser criticável por qualquer pessoa; nele, o valor fundamental e inalienável é a liberdade individual, adquirida através do respeito aos direitos humanos e sempre associado, desde sua criação, ao direito de propriedade. Ninguém, nem mesmo o Estado, pode estar acima da lei. Eis o modelo de sociedade burguês, liberal, iluminista que brotou na Europa a partir do século XVIII e foi importado para a América Latina ao longo dos últimos dois séculos.
A vitória da civilização, no entanto, só foi possível graças às barbaridades que ela cometeu. Foram as mesmas elites civilizadas que permitiram o genocídio indígena na Argentina e no Chile e a manutenção da escravidão no Brasil até 1888. Já no século XX, foi no bojo da civilização que surgiram os regimes militares responsáveis pela tortura e aniquilação de adversários políticos. Ao longo da nossa história, em diversos momentos, a civilização recorreu ao bárbaro. De dia, os belos discursos, os valores fundamentais dos citadinos. De noite, as atrocidades, o uso arbitrário da força e a crueldade dos caudilhos. Nos últimos anos, é possível perceber movimentos na sociedade por meio dos quais os carrascos – que fizeram o trabalho sujo da civilização – saíram do armário. Agora, querem que suas ações já não se deem mais às escondidas, e sim que sejam vistas como valores. Ao transformar em bandeira algumas das práticas atrozes cometidas na surdina pela civilização, reconfiguram a antinomia clássica e se tornam os novos bárbaros.
A nova barbárie é isso: a negação de todos os valores professados pela civilização. Em face dela, os demais antagonismos clássicos contidos no paradigma iluminista – socialistas, democratas-cristãos, liberais, conservadores – praticamente se equivalem. Esquerda, direita e centro se encontram no mesmo front.
Nas eleições deste ano, o fenômeno se cristaliza no Brasil. As mais diferentes candidaturas situam-se, no fundo, no mesmo polo. De João Amoêdo a Guilherme Boulos, de Marina Silva a Geraldo Alckmin, passando por Fernando Haddad e Ciro Gomes – todos eles são passíveis de críticas, por diferentes lados do espectro ideológico, mas operam a partir do paradigma clássico da civilização. São defensores do estado democrático de direito, dialogam a partir da lógica racional. Alguns podem até esticar e torcer a interpretação dos fatos, inclusive mentir quando convém, mas todos compartilham minimamente os valores do Iluminismo.
Existe, no entanto, um candidato que surge dos grotões da história, saído do fundo das contradições do nosso sistema político, e que encarna a nova barbárie como alternativa para o país. Jair Bolsonaro desafia o modelo de sociedade iluminista que se construiu no Ocidente nos últimos três séculos.
Ao invés da lei, Bolsonaro prega a ordem. Prefere a força às instituições, a tortura aos direitos humanos, a negação da alteridade à liberdade individual. Com Bolsonaro, a liberdade de expressão é algo muito relativo: se veículos comunicam fatos que não sejam do seu agrado, são chamados por ele de “mídia fake news”. Ele afirma que não pagaria a mulheres salários que se equiparam aos dos homens, que “ninguém gosta de gays” e debocha abertamente da tortura sofrida por brasileiros e brasileiras durante a ditadura. Em sua página do Facebook, já postou, orgulhoso, um vídeo em que diz ao filho da jornalista Miriam Leitão, torturada com uma jiboia numa sala do Exército: “Coitada da cobra.”
Bolsonaro lembra os caudilhos descritos por Sarmiento: seu discurso nega o que já parecia estar sedimentado na civilização como conquista coletiva. A superstição, a apologia da violência, as conspirações delirantes, sem lastro na realidade, e a burrice, sobretudo, são valores em torno dos quais gravita seu discurso.
Um hipotético governo de Bolsonaro abriria a porteira para uma onda de execuções públicas, de linchamentos, de uma violência fratricida na sociedade. Além de representar o retorno dos militares a posições estratégicas e com decisões públicas tomadas em cima de rompantes delirantes, não de evidências.
O único líder ligeiramente parecido com ele no continente é o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. Não à toa, Bolsonaro já disse que, se eleito, aumentará o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, para poder nomear a maioria – o mesmo estratagema adotado por Hugo Chávez e seu sucessor para atropelar a lei e as instituições em nome de uma ordem definida por eles mesmos.
Nada é mais equivocado, portanto, do que tratar o ex-capitão como um candidato entre outros, ou associá-lo a algum perfil ideológico. Mais do que encarnar uma ideologia específica, Bolsonaro é a pura expressão do ódio irracional. Tratá-lo como uma opção entre outras equivale a normalizá-lo para confundir as pessoas. A tal ponto que é possível ouvir eleitores de esquerda afirmarem que não veem diferença entre Alckmin e o ex-capitão, e eleitores de direita considerarem seriamente votar em Bolsonaro, caso a outra opção seja Ciro Gomes.
A polarização definidora das eleições de 2018, e que precede todas as outras, se dá entre Bolsonaro e a civilização. Em outros termos, Bolsonaro contra todos os outros candidatos. Ele é a revanche do obscurantismo sobre as luzes, é a revanche do autoritarismo sobre os direitos do indivíduo. Diante dele, direita e esquerda se equivalem – Alckmin e Ciro se tornam quase indistinguíveis. Jair Bolsonaro não é, definitivamente, apenas um candidato a mais na disputa ao Palácio do Planalto.