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    Ilustração de Paula Cardoso

questões político-sanitárias

Cloroquina acima de tudo

Até Trump já revogou uso da cloroquina na pandemia de Covid-19, mas secretária do Ministério da Saúde diz em reunião com promotores e procuradores que não dar o remédio é "crime contra a humanidade"

Malu Gaspar | 16 jun 2020_15h48
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O governo americano revogou nesta semana a autorização emergencial para uso da cloroquina em pacientes de Covid-19, mas o brasileiro continua apostando na medicação como alternativa prioritária de tratamento da doença. E não só investe na distribuição do remédio na rede pública, como pretende convencer procuradores e promotores a cobrarem de estados e municípios que deem cloroquina aos pacientes, assim que o coronavírus for diagnosticado. Ontem, o Ministério da Saúde informou que estendia a orientação para grávidas e crianças. Na última terça-feira, dia 9, o Tribunal de Contas da União (TCU) atendeu a um pedido do Ministério Público e deu dez dias para o Ministério da Saúde explicar sua política para a cloroquina. A julgar pelas declarações que os dirigentes do Ministério da Saúde têm dado nos bastidores, o assunto ainda vai render bastante polêmica.  Em reunião com procuradores e promotores de vários estados do Brasil, no início de junho, a secretária de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde do Ministério, Mayra Pinheiro,  afirmou que não dar cloroquina a pacientes de Covid-19 é “crime contra a humanidade”. Disse Pinheiro: “Não podemos fazer uma inação de orientar um medicamento que pode salvar vidas somente porque os estados se reservam o direito de não concordar e de não distribuir. Muitos de nós, médicos,  serão julgados daqui a algum tempo por inação, por omissão de socorro, como crime contra a humanidade.”  Nesta segunda (15), em Brasília, a secretária disse que a decisão do Food and Drug Administration (FDA), o equivalente americano da Anvisa, refere-se apenas ao uso de cloroquina em pacientes graves e se baseiam em estudos de “péssima qualidade”. 

A prescrição de cloroquina logo no início da infecção por coronavírus foi autorizada no fim de maio por uma nota técnica do Ministério da Saúde, segundo a qual o paciente precisa concordar por escrito com a  administração do remédio.  A  orientação dividiu o Ministério Público. Enquanto procuradores de Goiás, do Piauí e de Minas Gerais  exortaram os governos de seus estados a prescreverem a cloroquina, um grupo com integrantes do MP em  São Paulo, Rio de Janeiro, Sergipe e Pernambuco entrou com uma representação no Tribunal de Contas da União pedindo a suspensão da medida por falta de evidências científicas sobre a eficácia do remédio. Os procuradores também pediram à Procuradoria-Geral da República que enviasse ao ministério uma recomendação para que a nota fosse suspensa.  A PGR, porém, ainda não encaminhou o documento ao ministério. A subprocuradora Célia Delgado, que monitora o combate à pandemia por delegação do procurador-geral Augusto Aras, preferiu realizar primeiro a reunião com o Ministério da Saúde, para “esclarecer dúvidas”. Mas os procuradores saíram insatisfeitos da conversa, que ocorreu por videoconferência. “Eles mais falaram do que ouviram, e passaram o tempo todo insistindo na administração da cloroquina sem apresentar evidências”, afirmou um dos presentes. 

Segundo os procuradores, é a primeira vez que o Ministério da Saúde compra e distribui à rede pública um medicamento de eficácia ainda não comprovada no tratamento para o qual está sendo indicado. “Não foi colocado como vai ser o acesso a esses testes clínicos e os posteriores para o encaminhamento do paciente. Me surpreende que toda a política de saúde sempre foi desenhada nesse sentido, de você garantir toda a linha de cuidado, e nessa orientação não está definindo como vai garantir isso”, disse na reunião Roberta Trajano, do Rio de Janeiro, uma das procuradoras que contesta a orientação do Ministério da Saúde.  O ministério, por sua vez, prometeu enviar um documento com um resumo das afirmações feitas na reunião, mas, segundo a assessoria de imprensa da PGR, isso ainda não foi feito. Diante do impasse, a subprocuradora Célia Delgado pautou para a semana que vem, na reunião do colegiado que avalia esse tipo de medida, a decisão sobre a recomendação contra a autorização para uso da cloroquina. 

A reunião com o Ministério Público foi conduzida por Mayra Pinheiro, remanescente da gestão de  Luiz Henrique Mandetta. O ministro interino, Eduardo Pazuello, participou rapidamente no início, para explicar que o objetivo da medida era “dar cobertura” a equipes médicas, porque  “talvez nossas equipes médicas não estivessem com liberdade de prescrever esse ou aquele medicamento”. Ex-presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará, Pinheiro teve uma passagem pelo PSL, mas candidatou-se a senadora pelo PSDB em 2018. Ficou em quarto lugar, mas seus 882 mil votos, a boa performance nas redes sociais, o combate ao programa Mais Médicos e o apoio a Jair Bolsonaro no segundo turno a credenciaram para a vaga no ministério. Hoje, é filiada ao Partido Novo.  Internamente, é tida como uma das mais influentes e alinhadas seguidoras do presidente na Saúde, participando mais de entrevistas coletivas do que o próprio ministro Pazuello. Na reunião com os procuradores, passou a maior parte do tempo com a máscara pendurada no queixo. 

Embora tenham afirmado mais de uma vez que o uso precoce da medicação é sustentado por evidências, nem os técnicos nem os representantes do ministério mostraram que evidências são essas. Apresentado por Pinheiro como “um dos pesquisadores que está conduzindo os estudos de segurança e eficácia das medicações citadas, já com resultados inclusive do uso profilático dessas medicações”, o pesquisador Manoel Odorico de Moraes Filho, diretor do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (UFC), admitiu que não tinha resultados para apresentar. E  informou que seus ensaios não tinham ido adiante, porque não tinham sido aprovados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) do próprio Ministério da Saúde.  “Infelizmente a gente já está há cinquenta dias com o trabalho na Conep, que ainda não foi liberado definitivamente para que a gente possa iniciar este ensaio clínico.” 

Segundo o próprio site do conselho de ética, há dezenove estudos  sobre uso de cloroquina para o tratamento do novo coronavírus. Ainda não houve nenhum resultado conclusivo.   Mesmo assim, Moraes Filho disse ter “ligação direta” com “vários profissionais” que trataram mais de quinhentas pessoas com sucesso, sem que nenhum tenha tido pacientes intubados ou na UTI.  “Existem evidências clínicas mostrando isso [que a cloroquina funciona]. Mas trabalhos, ainda não foi possível mostrar os trabalhos sobre a fase precoce.”  Para o professor,  “é muito difícil” fazer trabalhos clínicos neste momento da pandemia.  “Essa história de dizer, não tem evidência científica… nenhum medicamento que está  sendo usado tem  evidência científica!”, afirmou o professor.   Frases semelhantes foram repetidas ao longo da reunião pela chefe de gabinete da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde, Maria Inez Gadelha, e pelo  diretor do Departamento de Gestão e Educação na Saúde, Hélio Angotti Neto. 

 Também foram feitas críticas ao estudo que apontava danos à saúde dos pacientes tratados com cloroquina e foi publicado em maio pela revista científica The Lancet, levando a Organização Mundial da Saúde a suspender os estudos com cloroquina e hidroxicloroquina.  Dias depois da decisão, a OMS teve de voltar atrás, porque os próprios pesquisadores e a The Lancet admitiram problemas na base de pacientes utilizada.  Em contrapartida,  outro estudo bastante controverso, esse de autoria de um pesquisador francês chamado Didier Raoult, que propaga os benefícios da cloroquina, foi citado por um dos especialistas como trabalho consistente. “Saiu na mídia que foi suspenso. Mentira!”, afirmou o professor da UFC Heitor Gonçalves, informando que o estudo foi ampliado e seus resultados publicados na revista Travel Medicine and Infectious Disease, que, segundo ele, tem um bom impacto no meio científico. A avaliação de impacto atribuída à revista citada por Gonçalves é de 4,86.  A medida de impacto da The Lancet é de 43.  Na entrevista coletiva de ontem, Pinheiro continuou citando “estudos clínicos circunstanciais” realizados no Ceará como base para a defesa da cloroquina. “Seguimos tranquilos, serenos, seguros quanto à nossa orientação.” Segundo o site do Ministério da Saúde, até 9 de junho haviam sido distribuídos 4,3 milhões de comprimidos de cloroquina em todo o Brasil.  

Na  ânsia de convencer os procuradores, Pinheiro chegou a passar a eles, na reunião virtual, uma informação falsa: a de que a cloroquina havia sido recomendada em 2016 pelo ministério para uso em gestantes atingidas pelo zika vírus.  “Essa mesma medicação que é objeto da discussão foi orientada pelo Ministério da Saúde e não por meio de uma única nota, mas de boletins e documentos epidemiológicos para que ela fosse prescrita para gestantes visando a neuroproteção fetal”, disse Pinheiro. No entanto, não há registro de nenhuma nota ou boletim sobre o assunto no site do ministério. Segundo pesquisadores envolvidos em estudos sobre o zika ouvidos pela reportagem,  foram realizados estudos in vitro que pareciam promissores, mas como os testes em humanos não deram bons resultados, não houve nenhuma recomendação ou protocolo para o uso da cloroquina em gestantes. Até as 15h, o ministério não informou à reportagem quais eram as normas e boletins a que a secretária se referia. 

Pinheiro também apelou ao Ministério Público para que tomasse providências quanto a  denúncias de que alguns estados que haviam recebido cloroquina do governo federal não estavam repassando o remédio a municípios e hospitais. “Os senhores sabem que isso não é uma atitude correta e que ela vai privar milhares de brasileiros do seu direito a autonomia de receber esses medicamentos, mas nós não temos como interferir”, disse. “Apelo às Defensorias Públicas estaduais e da União, aos diversos órgãos que podem legislar e proteger o cidadão, que eles possam sim ter acesso à medicação já garantida para as pessoas que possam adquiri-las por outros meios que não as farmácias do SUS.” 

A sugestão da secretária foi rejeitada pelos membros da reunião. Quando o promotor Alexandre Guedes, do Mato Grosso, questionou como a  secretária pretendia que o Ministério Público agisse, se ela mesma dizia que a orientação não obrigava o uso da cloroquina, Pinheiro recuou. Disse que não tinha querido sugerir nenhuma ação judicial contra os estados, mas apenas sugerido atenção “aos direitos da pessoa humana”. O promotor mato-grossense afirmou temer que o Ministério da Saúde esteja querendo forçar uma judicialização do assunto, com ações tentando obrigar estados e municípios a dar cloroquina aos pacientes. “Toda vez que alguém fala que a gente tem que passar em cima de leis porque estamos em situação excepcional, isso causa em qualquer operador do direito um arrepio muito grande. A maior parte dos males da humanidade se faz em situações de emergência”, reclamou Guedes.  Na entrevista coletiva de ontem, porém, Pinheiro afirmou que teve “uma imensa alegria” de ter feito o encontro com o  Ministério Público e que “ficou claro que nós apenas estamos respeitando a autonomia conferida pelo Conselho Federal de Medicina para que os médicos prescrevam essas medicações”. Nem parece que todos participaram da mesma reunião.

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