No 60º episódio do podcast Luz no Fim da Quarentena, José Roberto de Toledo e Fernando Reinach explicam como um estudo vai usar voluntários infectados com o Sars-CoV-2 para ajudar os cientistas a responderem perguntas cruciais sobre o vírus que permanecem sem resposta. Ouça o episódio completo aqui.
José Roberto de Toledo: Neste episódio, a lanterna do Fernando Reinach mira as perguntas sobre os Sars-CoV-2 que permanecem sem resposta desde o primeiro dia da pandemia e que, graças a modelos científicos inovadores ou mesmo polêmicos, começam a ser respondidas. Pelo menos tem alguma chance de receber uma resposta. Por exemplo, qual quantidade mínima do vírus é necessária para infectar um ser humano e para ele desenvolver Covid-19? A carga viral é determinante na gravidade da doença? Quanto tempo o vírus demora para ir do nariz até o pulmão humanos e começar a provocar estragos? Os modelos para responder essas perguntas não são triviais, passam por crescer mini pulmões humanos nas costas de camundongos e agora por infectar propositalmente noventa pessoas. A gente pode chamá-las tanto de cobaias voluntárias quanto de heróis.
Fernando Reinach, depois de mais de um ano de epidemia a gente descobriu uma quantidade enorme de informações sobre o vírus até para criar uma vacina contra ele, mas tem perguntas que, como você diz, foram feitas no primeiro dia e que continuam sem resposta.
Fernando Reinach: O problema do cientista sempre é que você precisa do que a gente chama de um modelo para estudar uma doença. Gerar um modelo é um outro ser vivo qualquer que funciona como se fosse um ser humano, e você estuda nesse organismo e finge que é no ser humano. Mas, infelizmente, o ser humano é único. Então não tem jeito de você ter um modelo perfeito a não ser usar um ser humano. Então o que esses sujeitos fizeram: tem uns camundongos que têm um defeito genético e eles não rejeitam transplantes, ao contrário de qualquer outro ser vivo. Aí você pega uma biópsia do pulmão humano, pega um pedacinho de pulmão humano, põe embaixo da pele desse camundongo e espera um tempo. O que acontece é que esse tecido de pulmão vira um pequeno pulmão nas costas do camundongo e é um pulmão humano.
José Roberto de Toledo: Ele se conecta com o camundongo, cria vias de se alimentar de sangue, seja lá o que for, e passa a crescer.
Fernando Reinach: Exatamente. A única diferença é que ele é um pulmão sozinho. Aqui não tem uma boquinha, um narizinho nas costas para ele respirar, e ele fica fechado lá dentro. Mas ele tem os alvéolos igual ao pulmão humano, são as mesmas células. Ele tem uma espécie de brônquios e bronquíolos, que são os tubinhos dentro do pulmão, e você pode usar isso como um modelo experimental. Você pode colocar o vírus lá dentro e ver se ele infecta. Eles demonstraram nesse trabalho que ele funciona igualzinho a um pulmão humano. O vírus entra lá, ataca as mesmas células, a célula morre e solta, forma um líquido, que é o que aparece depois no raio X dos seres humanos. O tempo que leva para infectar é igual. Ou seja, você pode estudar o vírus interagindo num pulmão humano fora de um ser humano, o que é melhor do que você estudar o vírus num pulmão de camundongo mesmo, porque aí é diferente.
José Roberto de Toledo: E eles usaram nesse caso para fazer o quê?
Fernando Reinach: Primeiro, eles passaram um tempão demonstrando que é igual. Tudo funciona como se fosse um pulmão humano e agora eles estão usando para testar novos remédios. O caso que eu contei na coluna lá é um desses antirretrovirais novos. Você põe o vírus dentro do pulmão, deixa o vírus desenvolver e injeta o remédio. Você pode estudar o efeito de remédios, você pode estudar efeito de anticorpos. É quase tão bom quanto um ser humano. Esse pulmão não está ligado num fígado humano e a gente sabe que o vírus ataca o fígado. Também não está ligado num rim. O sistema imune é o sistema imune do camundongo. Então tem vários problemas, mas é o mais próximo que dá sem usar humanos.
José Roberto de Toledo: Esse modelo pulmão humano no camundongo você acha que vai ser usado então para várias outras pesquisas, não apenas para testar o retroviral.
Fernando Reinach: É exatamente isso que a gente chama de um modelo da doença. Lembra que eles tentaram durante muito tempo achar o mamífero mais parecido com um ser humano? Você tenta achar um animal para fazer esses testes, são os modelos, e esse é um modelo que vai pegar porque ele é fácil de fazer. Você vai ter uma espécie de uma fábrica de ratinhos de camundongos com pulmões humanos. Aí eu vou lá no biotério falar: me dá vinte pulmões humanos. Aí saio com uma gaiola lá com vinte pulmões humanos e faço meu experimento.
José Roberto de Toledo: Agora a pergunta número 1 continua sem resposta: quantos raios de partículas de vírus é necessário para infectar um ser humano? É preciso estar a que distância da pessoa infectada para você se infectar também? Uso uma máscara ou duas máscaras? Essas perguntas permanecem sem resposta até agora. É isso?
Fernando Reinach: O que é interessante é que essas perguntas surgiram lá no primeiro dia. E como é que o vírus passa? Ah, ele passa pelo ar, tal. Que distância precisa estar? O cara precisa tossir em cima de mim? Essa discussão nós tivemos aqui no nosso programa várias vezes, discutimos vários experimentos e o fato é o seguinte: não tem jeito, essa coisa você tem que fazer experimentalmente com seres humanos, porque o vírus tem que entrar por um nariz humano que tem pelinhos humanos, chegar numa garganta humana, a respiração tem que ser humana… é muito difícil de você mimetizar. Então o que tem sido feito até agora, a partir de várias evidências indiretas, foram feitas recomendações de que distância tem que estar, ou que a máscara diminui, tudo isso. Mas ninguém fez um experimento clássico que é o seguinte: eu vou borrifar no nariz do Toledo dez vírus e ver se ele pega.
José Roberto de Toledo: Que é aquele programa que a gente fez daquela pesquisa que foi feita em Tuskegee, nos Estados Unidos, no Alabama, com negros e sem que eles soubessem, para fazer estudos ao longo de décadas.
Fernando Reinach: Exatamente. Agora o que surgiu e que agora deu fruto é que, logo no começo da pandemia, que estava aquele caos generalizado, teve um grupo de pessoas que se organizou e se autodeclarou cobaias da Covid. E eles falaram: nós somos voluntários, pode nos infectar.
José Roberto de Toledo: Deixar bem claro que não é cobaia para testar a vacina, é cobaia para ser infectado pela Covid mesmo, pelo vírus, para ficar doente.
Fernando Reinach: Uma das ideias originais era testar a vacina. Eu pego uma pessoa, infecto ela e depois testo uma droga, ou dou uma vacina e depois infecto ela, ver se ela está protegida. Você pode testar tudo.
José Roberto de Toledo: Mas o que aconteceu lá na Inglaterra então?
Fernando Reinach: Então, no começo teve uma discussão. Os Estados Unidos falaram que não podia, porque mesmo que o sujeito estivesse se voluntariando, ele não sabe das consequências. Será que a pessoa está bem informada mesmo dos riscos, será que é eticamente aceitável, não é… Essa discussão veio durante o ano passado inteiro e agora na Inglaterra finalmente eles aprovaram em todos os comitês de ética e vai começar a ser feito um estudo com voluntários; vão ser noventa voluntários que já estão escolhidos e nas próximas semanas esses estudos vão começar.
José Roberto de Toledo: São noventa pessoas de 18 a 30 anos, saudáveis, que vão ser infectadas pelo vírus.
Fernando Reinach: Isso, de propósito. Os cientistas vão estar monitorando o tempo todo, se eles tiverem algum problema, vão receber o melhor tratamento possível. Mas é impossível dizer que essas pessoas não vão ter risco porque não é que zero pessoas de 18 a 30 morrem. Existe uma pequena probabilidade de alguém passar mal, morrer etc. Mas no fim, como as pessoas eram voluntárias, como cientistas acharam que valia a pena, passou nas comissões de ética, foi e voltou, foi e vai acontecer.
José Roberto de Toledo: E o que eles vão estudar? A gente já sabe?
Fernando Reinach: Eles fizeram uma lista de um monte de coisas que eles vão estudar: a cinética, ou seja, a partir do momento da infecção. Quanto tempo aparece o vírus na garganta para fazer PCR. Eles vão estudar se tanto tempo depois da infecção aparece, por exemplo, vírus no pulmão, porque você vai saber exatamente o segundo em que infecta o cara, que é uma coisa que na vida prática não acontece. Você que teve Covid, por exemplo. Se eu falar: ‘Eu (tive Covid), foi porque fulano de tal aqui em casa.” Mas foi no começo da noite, foi no meio da noite. Nesse caso você vai ter uma coisa absolutamente controlada, é o que eu achei mais interessante lá: é que eles vão investigar um problema que a gente vem discutindo desde o primeiro dia, que é o problema da carga viral. Qual a quantidade de vírus que precisa entrar, eu preciso respirar, sei lá, para eu me contaminar? E será que a carga viral determina doenças de seriedade diferentes?
José Roberto de Toledo: Ou seja, mais vírus, uma doença mais perigosa, mais séria.
Fernando Reinach: Em teoria um vírus é suficiente. Em teoria ele entra na célula e começa a se reproduzir, mas na prática não é assim, porque você respira um vírus, ele pode grudar no muco do seu nariz e morrer ali atolado no muco. Então na prática tem uma quantidade mínima de vírus que gera infecção. Os caras por exemplo já mediram: quando você dá uma tossida e você é PCR positivo, quantos vírus saem. Mas ninguém sabe, e já mediram também os vírus que saem, que distância eles viajam. Então eu sei que se você tossir x vírus, vai ter um décimo de x na distância tal, tudo isso eu sei. Mas eu não sei quantos precisam para me contaminar, e agora vão poder fazer isso.
José Roberto de Toledo: Ou seja, você vai poder combinar pesquisas que já foram feitas com a parte que estava faltando.
Fernando Reinach: Esse dado atormentava todo mundo lá no começo, porque você falar “eu passo o vírus pela máscara”, na máscara retém 95% ou 99% do vírus. Se eu ponho, sei lá, mil vírus, passam dez vírus. Os dez vírus que passam são suficientes para infectar? Aparentemente não, porque no hospital pouca gente com máscara pega. Ah, mas tem gente que pega. Ah, mas será que ele não foi descuidado? É muito difícil você estabelecer essas coisas sem fazer um experimento controlado.
José Roberto de Toledo: Agora é um experimento que mesmo depois de aprovado ele continua um dilema, né. Se eles quiserem eventualmente tentar descobrir se o volume de carga viral, como você disse, impacta a gravidade da doença, significa que eles vão ter que dar uma carga viral diferente para cada um dos voluntários e vai ter um foco todo lá que vai receber uma dose cavalar.
Fernando Reinach: O que eles fazem em geral é tentar desenhar um experimento para evitar esse tipo de problema. Eu dou bem pouquinho, vejo que não aconteceu nada. Dou um pouco mais, o cara fica doente. Um pouco mais, fica mais sério. Aí reúne o comitê de ética que fala assim: vamos dar dez vezes mais. Aí o comitê de ética fala: Não, eu acho que a gente já viu que cresce a seriedade, acho que não é eticamente aceitável a gente dar dez vezes mais. Ou seja, você está andando em cima de uma faca, entendeu? Você está lidando com uma doença potencialmente letal usando pessoas que são voluntários.
É uma tradição longuíssima na ciência: cientistas usarem o próprio corpo para fazer experimentos. O bacilo da tuberculose… o Koch, me lembra. Ele descobriu assim que o bacilo causava tuberculose. O cara que descobriu a bactéria que causa úlcera estomacal também, ele tomou a bactéria, viu que ele ficou com úlcera, tomou antibiótico, matou a bactéria, a úlcera curou e foi demonstrado que é a bactéria que causa. Então tem essa tradição.
Já o uso de voluntários é muito raro em doenças sérias. Em coisas triviais, você pode até ter um experimento ou outro, mas passa por um escrutínio ético enorme. E você tem, no passado, esses exemplos horríveis de usar seres humanos, escravos etc, para fazer esse tipo de experimento.
José Roberto de Toledo: Mengele.
Fernando Reinach: Mengele, exatamente. Então é assim, do ponto de vista do progresso médico, a gente vai ver daqui um tempo o que de fato descobriram. Porque hoje é feito assim: Olha, eu acho que esses caras vão correr o seguinte risco, mas eu vou obter essa informação que tem um valor enorme. Por exemplo, testar uma vacina em ser humano é muito mais rápido. Você pega dez pessoas, vacina, mede os anticorpos, depois infecta as pessoas com o vírus. Pega outras dez, dá placebo e infecta com o vírus. Você não precisa fazer um clinical trial com milhares de pessoas. Com amostras muito menores e muito mais rápido você pode testar vacinas, que era ideia original lá atrás.
José Roberto de Toledo: Será que eles vão aproveitar esses voluntários para testar as variantes?
Fernando Reinach: Então, não tá escrito lá tudo que eles vão fazer. E o problema é que isso abriu uma porta. Quer dizer, isso pode andar para, no futuro, você ter milhares de pessoas como voluntárias e você ter um forte programa de pesquisa e ninguém morrer, porque tudo muito bem cuidado. Da mesma maneira que você tem voluntários que tomam vacinas na fase 1, 2 e 3, você vai ter voluntários para fazer isso. Mas você tem um risco também desses primeiros noventa. Imagina que alguém morra: provavelmente esse programa vai ser extinto, porque não tem informação valiosa o suficiente para justificar uma perda de vida e é uma conta complicada, entendeu?
José Roberto de Toledo: Estão morrendo 420 pessoas por dia na Inglaterra, no Reino Unido.
Fernando Reinach: Exatamente. Quer dizer, cada dia que eu adianto uma cura eu salvo 400 pessoas. Mas eu estou matando uma e isso é um dilema seríssimo, entendeu? Porque a maioria das pessoas não acha aceitável, na sociedade ocidental não é aceitável. Então eu acho que é uma coisa que a gente vai acompanhar de perto porque é muito interessante.
José Roberto de Toledo: Que pode dar uma boa notícia no final, pode ajudar muito o progresso das pesquisas sobre o Sars-Cov-2 e a Covid-19.
Fernando Reinach: Tem uma coisa interessante também, é que é nesses momentos de desespero que grandes progressos são feitos. A gente aprendeu muito, por exemplo, sobre quanto o corpo humano aguenta radiação através dos caras que entraram em Chernobyl para desmontar o negócio. Em muitos casos desses, a necessidade e a premência levam as pessoas a fazerem essas coisas que, em tempos normais, você nunca faria. Aí isso pode levar a um progresso. Quer dizer, você pode demonstrar que não é factível, vamos fazer mais. Rompe uma certa resistência das pessoas.
José Roberto de Toledo: Sem dúvida, dr. Fernando Reinach. Muito obrigado mais uma vez. Semana que vem a gente volta?
Fernando Reinach: Voltamos, é claro!