A reportagem “Cobra criada”, publicada na 83, relata um episódio de alimentação de surucucus mantidas em cativeiro no Núcleo Serra Grande, serpentário criado no sul da Bahia pelo médico Rodrigo Souza. O trecho segue reproduzido adiante. Assinantes têm acesso à íntegra da reportagem; a 83 segue nas bancas.
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Quando estive no Núcleo Serra Grande, no fim de abril, a maior parte das 35 serpentes do plantel não estava nos grandes viveiros cercados, mas em observação no chamado sistema intensivo de criação. É um procedimento comum nessa época do ano, quando os animais são recolhidos para acompanhamento individualizado, enquanto é feita a manutenção do serpentário.
Este ano, outro fator recomendava que as cobras fossem observadas de perto: o estoque de comida estava a perigo. No biotério do prédio anexo, havia naquele momento 240 ratos, que mal dariam para alimentar o plantel por um mês – cada cobra come em média um roedor por semana. “Está crítico”, disse Rodrigo Souza, franzindo a testa. Os roedores vivem em gaiolas empilhadas em várias estantes metálicas num galpão amplo. Alguns animais ficam soltos num grande espaço cercado por uma mureta de azulejos.
O sistema intensivo de criação é formado por uma série de barracas de camping da mesma marca das que Souza tem em casa. As barracas estão espalhadas por mais de um cômodo e comportam até três serpentes cada uma. “Colocamos as cobras nesses recintos para que a gente possa ficar atento ao seu estado nutricional e preparar a vermifugação”, justificou o médico.
Numa das barracas, ele exibiu Gisele Bündchen, a única cobra que tem nome no serpentário. “Ela tem um azulado no desenho que nunca tinha visto em outra cobra”, explicou. “É a surucucu mais bonita que já vi.”
Mais adiante, ele soltou três ratos numa barraca, um para cada animal ali dentro. A cobra do fundo foi a primeira a dar o bote. Certeira, provavelmente perfurou o coração ou o pulmão do rato com uma das presas e ele não tardou a morrer. Ela seguiu com a cabeça erguida, prendendo o animal com a boca enquanto aguardava a ação do veneno. A surucucu é o único viperídeo brasileiro com esse comportamento: jararacas e cascavéis dão o bote e soltam a presa, esperando queela agonize no chão. Souza acredita que seja um comportamento adaptado ao ambiente úmido da Mata Atlântica. “A surucucu não pode se dar ao luxo de deixar o rato sair para morrer a 40 metros dali e se perder numa poça.”
Quando a cobra sentiu que o rato estava morto, colocou-o no chão, aproximou-se para identificar os dois lados do animal e começou a engoli-lo pela cabeça. As serpentes não têm dentes adequados para partir ou triturar os alimentos e digerem os animais por inteiro. Ao cabo de alguns minutos, a surucucu já havia engolido praticamente todo o rato – só restava o rabo, escapando de sua boca como um espaguete.
A segunda cobra se alimentou sem problemas. Mas a serpente mais próxima da porta da barraca não tinha sido tão ágil. Seu bote foi menos preciso e o rato demorou mais tempo para morrer, esperneando na sua boca. Ela ainda não pousara o roedor no chão quando a primeira surucucu terminou sua refeição. Aparentemente insatisfeita, a cobra que já havia comido aproximou-se da colega menos hábil com sua presa. Quando suas fossetas loreais identificaram o rato ainda quente na boca da outra, ela não hesitou e avançou. Só que errou o bote e acertou a cabeça da parceira. Imediatamente as duas se enroscaram num novelo ruidoso. Alvoroçado, Souza entrou na barraca e trouxe o par engalfinhado para um canto do quarto onde pudesse manejá-lo com mais liberdade. Só então conseguiu desenganchar as presas de uma surucucu da cabeça da outra.
A cobra ferida tinha recebido o equivalente de uma punhalada no crânio e sangrava nas mãos de Souza, mas provavelmente não sofreria os efeitos do envenenamento – viperídeos e outras serpentes têm no sangue substâncias que neutralizam sua própria peçonha em caso de inoculação acidental. Souza levou a serpente acidentada à maternidade, que funciona também como sala de emergência. Ali, tratou o ferimento da serpente com iodo e, segurando-a pela cabeça na vertical, forçou-a a engolir o rato que ela não conseguira comer mais cedo. Guardou-a num aquário para observação. “Ela está correndo risco de vida nas próximas 48 horas”, disse, consternado. A serpente sobreviveu.
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Num post publicado na semana passada, Rodrigo Souza deu novidades sobre o estado de saúde da surucucu atacada: “passados 60 dias do incidente, [a cobra] emagreceu e está recebendo alimentação forçada. Seu crânio está visivelmente perfurado e permanecerá no regime intensivo de criação – nosso CTI – por período indefinido.”
(fotos: Bernardo Esteves)
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