Como talvez os poucos leitores que tenham acompanhado os textos desta coluna estejam cansados de saber, o Poder Executivo é forte no Brasil. Presidentes e governadores acumulam prerrogativas que idealmente deveriam caber ao Legislativo. Com o apoio de algumas poucas lideranças parlamentares, que também detêm largas competências institucionais, eles são capazes de ditar boa parte do que é votado – e em geral aprovado – no Congresso e nas Assembleias estaduais. Assim, há quem diga que o Executivo talvez não seja apenas forte, mas perigosamente forte, do ponto de vista dos ideais democráticos.
É o caso de perguntar: se os chefes de governo têm tantos poderes diante do Congresso e das Assembleias, se com seus recursos políticos e econômicos estão aptos a formar folgadas maiorias parlamentares, então a capacidade de fiscalização do Legislativo em relação ao Executivo não ficaria prejudicada? Quem garante que o Planalto ou os palácios locais não vão abusar de seus poderes? Críticos do nosso modelo institucional, como a pesquisadora Ana Paula Massonetto, que dedicou sua pesquisa de doutorado à relação entre o governador e a Assembleia Legislativa em São Paulo, argumentam que falta ao Legislativo, em particular nos estados, o necessário “instrumental para fiscalizar o Executivo”.
Os defensores da eficácia do presidencialismo de coalizão, contudo, têm uma resposta para esse tipo de questionamento. Dizem que boa parte dos freios e contrapesos às ações dos governos está nas mãos de instituições extraparlamentares: entre elas uma Justiça razoavelmente independente e órgãos de controle combativos, como o Ministério Público. A chave para resolver o aparente paradoxo de presidentes fortes que convivem com uma democracia estável, escrevem Marcus André Melo e Carlos Pereira no livro Making Brazil Work, está na existência de “sistemas amplos de freios e contrapesos e ‘rule of law’, que em última instância são gerados pela competição política e pela fragmentação de poder”.
Na esfera federal, é possível argumentar que esses mecanismos têm funcionado, ainda que ao custo, em anos recentes, de crises políticas. Mas o que dizer dos estados, onde os ministérios públicos nem sempre se mostram capazes de fiscalizar a ação dos governantes locais, onde a Justiça por vezes não parece tão independente quanto seria desejável, onde com frequência há menos competição política e menor fragmentação do poder?
A pesquisadora Luciana Zaffalon defendeu no ano passado uma tese de doutorado em que analisa as relações entre o Executivo, o Judiciário e órgãos de controle no estado de São Paulo. O que Zaffalon apresenta ao leitor, segundo a jornalista Maria Cristina Fernandes, que escreveu sobre a pesquisa no jornal Valor Econômico, “poderia ser resumido em uma lápide: aqui jaz Montesquieu”, o pensador francês que, no século XVIII, teorizou sobre a separação dos poderes. “Uma espiral elitista de afirmação corporativa”, a tese de Zaffalon, será publicada pela editora Hucitec agora em setembro.
No livro, ela analisa decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo em casos que dizem respeito ao governo do estado. A lei permite que o Executivo, insatisfeito com decisões da primeira instância em que se sinta prejudicado, recorra diretamente ao presidente do TJ, pedindo a suspensão da decisão até que o caso seja analisado pelos desembargadores. Provocados, os presidentes do tribunal no período analisado por Zaffalon – de 2012 a 2016 – deram ganho de causa aos governadores, contra juízes de primeira instância, em quase todos os casos que tratavam de questões de segurança pública e administração penitenciária.
Os processos cuidavam muitas vezes de direitos dos presos e de condições nas cadeias, em que a Defensoria Pública pedia, por exemplo, a instalação de chuveiros elétricos para que os detentos pudessem tomar banhos quentes, ou a constituição de equipes de saúde em penitenciárias onde presos morriam por falta de atendimento médico. Os defensores públicos demandavam providências, os juízes de primeira instância consideravam as medidas necessárias, mas o governo conseguia barrar essas determinações recorrendo aos presidentes do TJ. Em geral, os magistrados argumentavam que tomar tais medidas seria contrário ao interesse público, por não estarem previstas no Orçamento.
Gastos públicos e recursos orçamentários estão no cerne de outra parte da pesquisa de Zaffalon. Ela mostra, no livro, como a grande maioria dos integrantes das carreiras jurídicas no estado de São Paulo – aí incluídos promotores e juízes – ganham acima do teto salarial do funcionalismo, definido pela Constituição. Usam como subterfúgio, para burlar a regra, benefícios extras e penduricalhos, auxílios de todo tipo. Como os recursos para esses gastos extraordinários muitas vezes não estão previstos no Orçamento, o Executivo providencia e distribui suplementos orçamentários, viabilizando as demandas financeiras de juízes e promotores.
“Houve uma decisão judicial, por exemplo, que garantia a instalação de uma equipe mínima de saúde numa unidade prisional em que, no ano anterior, mais de 60 pessoas haviam morrido por falta de atendimento médico”, me disse Zaffalon, numa entrevista recente. “A suspensão de segurança”, nome técnico da decisão do presidente do TJ, quando provocado pelo Executivo, “vem e diz: isso representa um risco para o interesse público, por prever novos gastos que não estavam previstos no Orçamento. Ocorre que, no mesmo período, o Tribunal de Justiça chegou a ficar com 21% de todos os créditos adicionais criados no estado. Isso não é um prejuízo para o interesse público? O maior beneficiário dos créditos adicionais está tirando o direito à vida de pessoas sob o argumento de que os gastos necessários para criar uma equipe médica são uma afronta ao interesse público”.
De um lado, observam-se decisões judiciais que permitem ao govenador implementar sua política de segurança pública sem alterações ou impedimentos. De outro, o Executivo providencia recursos para que os servidores que deveriam fiscalizá-lo recebam salários generosos. O que essa justaposição de ações, que em tese podem ser independentes, nos diz da relação entre o Palácio dos Bandeirantes, de um lado, e a Justiça e órgãos fiscalizadores, de outro? “É difícil refutar que haja um imbricamento de favorecimento mútuo nessa dinâmica”, afirma Zaffalon.
E o Legislativo, onde entra nessa história? “Ele é a peça que fecha o quebra-cabeças”, diz a pesquisadora. É esse poder, em geral formado nos estados por amplas maiorias governistas, que permite a operação de um aparente “favorecimento mútuo” entre o Executivo e órgãos que deveriam fiscalizá-lo, ao garantir a transferência de recursos para as carreiras jurídicas.
“As atribuições das Assembleias Legislativas no Brasil são bastante residuais. Uma das poucas atribuições que a assembleia tem de relevante, de realmente impactante, é a de debater e decidir sobre o orçamento público. Seja na lei orçamentária principal, seja na abertura de créditos suplementares. São atribuições da assembleia e não se discute. O que a gente observa, contudo, é que a Assembleia Legislativa, quando aprova a lei orçamentária anual, já insere um capítulo por meio do qual ela transfere para o governador o seu poder de analisar os créditos adicionais.” Exatamente os créditos que serão destinados a pagar os benefícios extras a juízes e promotores.
Os deputados abrem mão de um poder que deveria ser seu, transferindo-o para o Executivo. “Isso impacta não só a forma como esses recursos vão ser distribuídos. Porque quando o Legislativo se retira dessa tramitação, da discussão das verbas que serão transferidas às carreiras jurídicas, a gente passa a ter essa tramitação feita sabe-se lá como. Não existe uma agenda pública disso. Perde-se por completo a transparência. A negociação de recursos entre o governador e as carreiras jurídicas é feita a portas fechadas. Cria-se um claro déficit democrático.”
E assim completamos a viagem ao redor da frágil divisão de poderes no país. Eis como a Justiça e órgãos de fiscalização, que deveriam se somar a um débil Legislativo no papel de oferecer freios e contrapesos à atuação de um Executivo forte, terminam por também se mostrar fragilizados nessa tarefa. Pelo menos no caso dos estados, onde parece estar um dos principais nós para o bom funcionamento da democracia no Brasil.