Durante a infância, na Carolina do Norte, a música era um hobby. Uma válvula de escape para a imensa ansiedade do garoto John Coltrane. Tocava sax alto na banda da escola, e aqueles que o ouviram nessa época disseram que sua musicalidade nada tinha de especial. Foi quando, em 1943, Coltrane assistiu a um show do saxofonista Charlie Parker. Não sabia que a música podia ir tão longe. Nesse tempo, o jazz havia se tornado uma celebração da individualidade. Músicos como Charlie Parker fizeram dos solos o elemento central das composições. Era nos solos que cada um exprimia sua personalidade singular, única. Parker tinha um jeito de “cantar” através do saxofone, como se o instrumento tivesse se fundido com a própria voz. Era possível, através de seus sons, captar com precisão o que ele sentia. Ao ouvi-lo, Coltrane experimentou uma iluminação. Passou a seguir as pegadas de Parker. Sabia que ele estudava intensamente todos os tipos de música e praticava o instrumento com um ardor sem paralelos. Foi o que Coltrane passou a fazer. Sendo por natureza um lobo solitário, nada o agradava mais do que estudar. Começou a tomar lições de teoria musical. Treinava dia e noite o instrumento, com intensidade maníaca. Quando não estava tocando, ia para a biblioteca pública ouvir música clássica, ávido por absorver todas as linguagens musicais que estivessem ao seu alcance. Pegava exercícios de escala concebidos para o piano e transpunha para o saxofone. Começou a fazer gigs nas bandas da Filadélfia, até chegar à orquestra de Dizzy Gillespie. O bochechudo fez Coltrane mudar para o sax tenor. Assim, argumentou, podia tirar melhor proveito da influência de Charlie Parker. Horas sem fim de treinamento e em poucos meses Coltrane já tinha dominado o novo instrumento. Nos cinco anos seguintes, passou por outras tantas bandas, cada uma com seu repertório próprio de músicas. Sentia que precisava internalizar todos os estilos musicais disponíveis. Disso adveio um problema. Na hora dos solos, Coltrane se atrapalhava. Sua ideias musicais permaneciam algo indefinidas. Possuía um senso rítmico diferente, um estilo nervoso, sobressaltado, que não se adequava à musicalidade geral das bandas nas quais atuava. Nessas horas, a solução encontrada era continuar imitando os estilos dos outros. Mesmo assim, inquieto, experimentava incessantemente com novos sons que ia ouvindo. Os músicos o notavam, curiosos. Alguns pensavam que no meio de tanto estudo e andança o jovem Coltrane havia se perdido.
Foi quando, em 1955, Miles Davis, então líder do mais famoso quarteto de jazz da época, apostou na arriscada decisão de chamar Coltrane para o seu grupo. Miles sabia que ele era o instrumentista tecnicamente mais brilhante à sua volta, moldado por intermináveis horas de obsessão. Mas não era apenas isso. Com insuperável faro para a novidade, detectou algo estranho no trabalho de Coltrane, como se uma voz nova estivesse surgindo, lutando pra se afirmar na frenética torrente de som. Aconselhou-o a seguir seu próprio caminho, sem jamais olhar para trás. O conselho rendeu a Miles alguns momentos de arrependimento. Coltrane era indomável. Difícil integrá-lo ao grupo. Atacava as notas nos momentos mais desconcertantes. Alternavas passagens rápidas e pontilhadas com longos sons, dando a impressão de que muitas vozes atravessavam a um só tempo seu sax. Até o timbre era peculiar: tinha uma embocadura própria, que dava origem, no instrumento, a uma voz grave, diferente. Tudo isso somado, sua musicalidade era atravessada por um sentido de agressiva ansiedade, por uma sentimento de urgência. A crítica começou a notá-lo. O reconhecimento era cada vez maior. Ainda assim, Coltrane permanecia agitado, cheio de dúvidas. Procurava algo que sequer conseguia pôr em palavras. Almejava uma sonoridade pessoal ao extremo, que fosse a encarnação exata do que ele sentia – de modo geral, emoções de natureza espiritual e transcendental, avessas às generalizações das palavras. Em 1959, depois de participar da gravação do antológico Kind of Blue, deixou Miles Davis para formar seu próprio quarteto. Era hora de levar a experimentação aos últimos limites, até encontrar o que tanto perseguia.
Seu primeiro grande álbum, Giant Steps, jogava de modo astuto com as convenções do jazz. Com progressões harmônicas diferentes, com acordes movendo-se por terças em constantes modulações (conhecidas até hoje no vocabulário do jazz como “Coltrane changes”), a música era lançada num movimento contínuo pra frente. Apesar do sucesso, Coltrane não ficou satisfeito. Intencionava um retorno à melodia, a algo mais livre e expressivo. Buscou a fonte mais atrás, nos Negro spirituals que ouvia quando criança. A retomada de tal influência foi sentida em seu primeiro hit de sucesso, My favorite things, em 1960 – o sax soprano tocado com um toque de “spirituals”, junto com sua famosa tendência a executar escalas em rápida velocidade. Era uma estranha mistura de música popular e experimental. Coltrane tornava-se quase um alquimista. Jogava-se numa busca impossível pela própria essência da música, tencionando-a para que fosse capaz de expressar mais profunda e diretamente suas emoções. Em 1963, compôs Alabama, uma balada que respondia ao bombardeio de uma igreja em Birminghan, pelo Ku Klux Klan. Parecia uma síntese sonora, viva, do desespero e da tristeza vividas naquele momento. Um ano depois aparece A Love Supreme. Gravado em apenas um dia, o álbum foi vivido por Coltrane como uma espécie de epifania religiosa. Seus extensos movimentos sonoros, sentidos de modo tão natural e ao mesmo tempo tecnicamente brilhantes, afiados, ainda hoje são capazes de conduzir o ouvinte a um estado de transe hipnótico. Expressava aquele elemento espiritual que ele não conseguia colocar em palavras. A Love Supreme tornou-se um sensação. Mas não era apenas isso. Cada vez mais a experiência musical de Coltrane ganhava plenitude em suas performances ao vivo. Mesmo pelos registros audiovisuais temos a perfeita impressão de um homem engajado, até o âmago do ser, na busca do inexprimível – um homem que se contorce ante os limites. O público delirava. Com a intensidade do som, algumas pessoas começavam a gritar. É do saxofonista Joe McPhee uma ótima descrição das performances de Coltrane nessa época: “Eu pensava que ia morrer de emoção…eu pensava que ia explodir naquele lugar. O nível de energia não parava de crescer, e eu pensava, ai meu Deus, não posso aguentar isso”.
Nenhum outro jazzista conseguiu causar tamanho impacto em seus ouvintes. O sax de Coltrane parecia diretamente conectado com os sentimentos mais profundos e obscuros. Com sua consagração, tudo aquilo que ele havia introduzido de esquisito no jazz, logo tornou-se a última voga – músicas mais longas, sons orientais, etc… E foi tudo muito rápido: em 1967, aos quarenta anos, ele morreu, vítima de um câncer no fígado.