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Com Deus, sem Lula

Impressões sobre o primeiro debate dos presidenciáveis

Fernando de Barros e Silva | 10 ago 2018_14h47
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“Ó artrite, ô tendinite, ó artrose, vão embora, em nome de Jesus!” Faltavam 20 minutos para dez da noite quando liguei a tevê na Band para assistir ao primeiro debate entre os presidenciáveis. Imaginei que fosse encontrar cenas de bastidores, a movimentação das claques no auditório, aquelas entrevistas enfadonhas sobre as expectativas de cada um e blá-blá-blá. Mas não havia sinal de política no ar. Quem apareceu na tela diante de mim foi um pastor de fisionomia conhecida, mas cujo nome eu desconhecia até aquele momento. Era o missionário R. R. Soares, como ele se denomina, apresentador do Show da Fé, programa da Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada por ele em 1980.

R. R. Soares perambulava pelo palco com um microfone nas mãos, invocando os poderes de Jesus para pedir a cura de fiéis que o acompanhavam no culto. Concluída a oração, seus ajudantes passaram a percorrer o auditório para colher depoimentos das pessoas sobre as graças obtidas. Uma senhora que tinha chegado na igreja com torcicolo disse que estava curada; um jovem com dores nas costas não sentia mais nada; um senhor cujo estômago costumava arder em brasas tinha, subitamente, ficado bom – e assim por diante, sempre em nome de Jesus.

De terno, gravata vermelha berrante e cabelo pintado num tom suave de acaju, R. R. Soares bem que poderia ter continuado no ar. Eu o imaginei mudando de estúdio para reaparecer minutos depois ao lado de Ricardo Boechat, na companhia dos candidatos à cadeira de Michel Temer.

O missionário não estava no debate, mas representante de Deus foi o que não faltou na noite da Band. Se não estou enganado, apenas Guilherme Boulos e Henrique Meirelles não invocaram o Senhor ao longo do programa. Na ponta oposta, o Cabo Daciolo praticamente só fez isso. “Glória a Deus” foram suas primeiras palavras, e talvez as únicas sensatas. Em suas declarações finais, concluiu lendo um trecho da Bíblia, numa pantomima exaltada capaz de fazer inveja ao missionário da Igreja da Graça de Deus. O candidato do Patriota é de tal maneira desparafusado que Bolsonaro, ao lado dele, pode até parecer uma figura razoável. Essa talvez seja a missão de Daciolo na Terra: dar a impressão de que Bolsonaro pode ser levado a sério. Nisso, o bombeiro incendiário do lúmpen da política não difere de Paulo Guedes, o liberal ilustrado da elite financeira do país que, movido por uma vaidade louca, empresta o seu prestígio à aventura do ex-capitão.

 

Praticamente ninguém falou de Lula, com exceção de Boulos, que desejou “boa noite” ao ex-presidente e disse que ele, preso injustamente enquanto Temer está solto, deveria estar ali debatendo. Depois disso, mesmo quando os governos petistas foram citados, foi como se Lula praticamente inexistisse.

Essa foi, até onde sei, a primeira vez que o PT ficou fora de um debate presidencial desde a redemocratização do país. Isso se deve, obviamente, à condenação de Lula, mas também à escolha do partido de insistir em sua candidatura fantasma. Quando Lula for alijado definitivamente da disputa, Fernando Haddad terá algo em torno de vinte dias para dizer “Oi, o candidato do Lula sou eu”. Não é uma posição confortável. E pode ser uma posição bastante ridícula.

Se Lula transferir ao pupilo, como esperam os petistas, votos suficientes para colocá-lo no segundo turno, a estratégia terá sido vitoriosa, mesmo que o partido não alcance a Presidência, o que é mais provável. Mas corre-se o risco de uma humilhação histórica nas urnas, o que fatalmente aceleraria a derrocada do lulismo e teria consequências negativas sobre o futuro político de Haddad, um dos poucos petistas que ainda pode almejar um futuro político.

Entre participar do jogo e denunciá-lo como uma farsa, o PT optou pelas duas coisas. Ontem, ausente do debate, o partido deu a nítida impressão de estar vivendo num mundo paralelo. É possível que o eleitorado cativo do PT o acompanhe nessa viagem; é possível também que as pessoas, exaustas da crise, sofrendo na pele as consequências do desmanche do país nos últimos anos e tendo que cuidar da vida, passem a procurar entre os candidatos algum que já esteja materializado.

Marina não foi mal no debate, pelo contrário, mas não consegue afastar a impressão de que lhe falta energia e de que essa baixa voltagem vai derrubá-la na reta final da disputa. Quem mais se beneficiou do encontro foi Ciro Gomes. Era clara a sua estratégia de ocupar o campo vazio deixado por Lula e de se apresentar como candidato viável da esquerda. Polarizou com Geraldo Alckmin sempre que pôde, não se destemperou em nenhum momento e conseguiu até reagir com graça a uma provocação delirante de Daciolo. Mais do que isso, a promessa que fez de limpar no SPC e no Serasa o nome de 63 milhões de brasileiros inadimplentes é dessas que grudam na mente do eleitorado. Cabe agora aos jornalistas questionar a viabilidade, custo e o eventual fundo falso disso.

Havia, nos últimos dias, o entendimento de que Lula, da cadeia, tinha asfixiado Ciro. Neutralizou o PSB e atraiu para o PT a ex-presidenciável Manuela D’Ávila, do PC do B. Isolado à esquerda e sem o Centrão, que foi com Alckmin, Ciro estaria inviabilizado. É uma hipótese. Mas isso parecia mais certo antes do debate de ontem. Não foi à toa que Ciro, em sua fala final na Band, pediu aos eleitores que não decidam seu voto agora, mas reflitam a partir do que vão ouvir de cada candidato nas próximas semanas. A briga entre ele e Lula pela hegemonia da esquerda ainda está aberta.

 

Não vou dizer que o debate foi morno e os candidatos apresentaram poucas propostas. A imprensa precisa ao menos renovar seus clichês. Os jornalistas escrevem isso há trinta anos, sobretudo nos encontros de primeiro turno, quando as falas se pulverizam e os Daciolos vivem seus instantes de glória. O fato é que já tivemos coadjuvantes e pilantras mais divertidos. Neste momento, em que um coadjuvante lidera a corrida presidencial e o líder de fato das pesquisas está preso, nada talvez possa ser considerado divertido no Brasil. Nada, a não ser Alvaro Dias.

O senador foi ao debate fantasiado de Sérgio Moro, com camisa social e blazer pretos. Disse que seria preciso implodir o sistema e refundar a República. Enquanto ele falava, eu só conseguia reparar em seu rosto carregado de botox. Ora o cover de Sérgio Moro me parecia o Coringa do Batman, ora lembrava Marta Suplicy. Alvaro Dias pode escolher. Não podendo ser Moro, ele tem a opção de virar vilão de quadrinhos ou ocupar a vaga deixada pela senadora no MDB.

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