Foram 21 horas de viagem divididas em quatro modalidades de transporte: primeiro um avião entre São Paulo e Goiânia (1 hora), depois um ônibus de Goiânia até a cidade de Canarana, no Mato Grosso (12 horas) e, dali, um carro 4×4 em estrada de terra (5 horas), atravessando campos e mais campos de soja até chegarmos a um oásis verde: o Xingu. Já dentro da reserva ambiental, mais uma hora de carro rumo ao rio de mesmo nome, onde um barco motorizado nos aguardava. Três horas navegando com o sol quente sobre a cabeça até atracarmos.
Percorrer esse trajeto nos dá uma dimensão concreta do que é o Xingu, terra indígena situada bem no centro do Brasil, parte no Mato Grosso, parte no Pará. Foi a primeira a ser homologada no país, em 1961, durante o governo de Jânio Quadros, quando ainda não existia a Funai. A reserva tem 26 vezes o tamanho de Belém e uma população estimada em 8 mil pessoas, que vivem entre a Amazônia e o Cerrado. O rio organiza a vida da região. Fornece comida, banho, transporte. As águas são o caminho para chegar à maioria das 162 aldeias existentes ali.
Quando nosso barco ancorou no Polo Diauarum, que fica na área conhecida como Baixo Xingu, vários barcos já estavam atracados. Tinham trazido pessoas que, como nós, iriam acompanhar a Assembleia Geral do Movimento Mulheres do Território Indígena do Xingu, evento que acontece bianualmente desde 2003 e teve sua nona edição em novembro de 2023, entre os dias 5 e 8. Compareceram cerca de trezentas pessoas, representando os dezesseis povos xinguanos. Traziam consigo redes, barracas e mosquiteiros para pernoitar fora de casa.
Eu e a fotógrafa Patrícia Cançado, que me acompanhou na viagem, destoávamos do público, composto quase todo de moradores da região. Muitas mulheres chegaram ao evento acompanhadas dos filhos e maridos. Alguns caciques suspenderam suas atividades habituais para prestigiar a assembleia. Na pauta, os deveres e direitos das mulheres indígenas. Eventos desse tipo – que eu considero feministas, embora as organizadoras não vejam muito sentido na palavra – ainda são novidade por ali. Talvez por isso atraiam tanto a atenção dos homens. “Eles têm medo de que as coisas mudem. Ficam perguntando se a gente sabe o que as mulheres pretendem discutir”, me contou um profissional de saúde que trabalha no Xingu.
Quem criou o encontro foi Watatakalu Yawalapiti, artesã indígena de 43 anos que coordena o departamento de mulheres da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix-Mulher). Watatakalu não se considera feminista porque, segundo ela, “cabe tanta coisa nessa palavra…”. Do seu ponto de vista, o feminismo pode soar hostil aos homens.
Ela é filha de Pirakumã Yawalapiti, um dos principais líderes da história do Xingu – brilhante diplomata, ele conseguiu manter a harmonia entre os povos da região, que por muito tempo viveram em guerra. Antes dele, seu pai havia feito o mesmo, trabalhando ao lado dos irmãos Villas-Boas. No convívio com Pirakumã, Watatakalu foi aprendendo o ofício de ser uma liderança. Mostrou aptidão para o trabalho desde criança: era hábil na oratória e nas negociações. O pai logo percebeu seu talento e, por isso, embora tivesse um primogênito, apostou na filha para ser sua sucessora. Ensinou a menina a mediar conflitos, incentivou que aprendesse as cinco principais línguas xinguanas e apresentou-a ao mundo dos brancos. Quando se mudou para Brasília, convidado a trabalhar na Funai, levou consigo Watatakalu. A filha cursou os três anos do ensino médio na capital, parte na rede pública, parte na privada.
Foi também durante três anos que Watatakalu viveu a “reclusão” – como os indígenas do Xingu se referem ao período em que as meninas, logo após a menarca, se recolhem à oca, ficando distantes de toda a aldeia, contactadas somente pelos idosos, que as visitam de tempos em tempos e repassam ensinamentos ancestrais. Tradicionalmente, essa fase dura de seis meses a um ano. A imersão de Watatakalu se prolongou muito além do normal porque, sendo ela uma liderança em ascensão, foi orientada pela família a aprender a fundo a história de sua gente. Permaneceu reclusa dos 12 aos 15 anos de idade.
Watatakalu idealizou a Atix-Mulher depois que, em conversas com o pai, compreendeu a importância de envolver as mulheres na defesa do território e da floresta. Tradicionalmente, são os homens que participam da vida política, viajam para encontros e manifestações, dialogam com os brancos. São eles que saem pelo mundo. Ou “mundam”, como me disse um pequeno indígena, ao me contar que seu pai havia “mundado” de casa. O neologismo acidental resume bem as preocupações de Watatakalu: no Xingu, as mulheres indígenas raramente “mundam”.
Watatakalu Yawalapiti, criadora da assembleia (Foto: Patrícia Cançado)
O salão estava cheio na manhã do dia 5, um domingo. Os participantes da assembleia sentaram-se em cadeiras de plástico brancas e azuis apontadas para a frente, onde os oradores se alternavam. Watatakalu fez um discurso introdutório, agradecendo a presença de todos. Seguiu-se uma sequência de apresentações de danças, conduzidas pelos Kawaiwete, os Ikpeng e os Kayapó. As mulheres eram maioria, mas também havia homens.
Na pauta, debates sobre a crise climática e workshops em torno de temas como alimentação (que cuidados devem ser tomados ao comer alimentos industrializados produzidos pelos brancos?) e saúde emocional (organizadas em grupo, as participantes foram convidadas a listar os problemas que mais as preocupam). O encontro mostrou que os assuntos que tiram o sono das indígenas são mais ou menos os mesmos que os das mulheres brancas: sobrecarga de trabalho, problemas de saúde, crianças que passam tempo demais olhando para telas.
Mal teve início o evento, no entanto, instaurou-se um momento de luto. Os representantes dos Trumai informaram, no microfone, que uma de suas parentes tinha acabado de morrer. Pediram então licença para se ausentar. Em respeito a ela, parte da plateia se despiu de seus colares e pulseiras. Apesar das diferenças étnicas, é comum que os povos indígenas enxerguem uns aos outros como parte de uma mesma família. São a “parentada”. A dor de um é a dor de todos.
Watatakalu também se despiu de seus apetrechos. Em seguida, propôs às lideranças presentes que fosse dada continuidade ao evento. O cacique Mairawê Kaiabi aconselhou que se fizesse “apenas reunião, sem nenhuma alegria”, e que pautas não essenciais fossem suprimidas da programação. Kowo Trumai, que conhecia a indígena morta, fez um apelo à plateia: “Quero que vocês busquem o motivo dessa morte e reflitam juntas sobre tudo de ruim que está acontecendo com as nossas mulheres, nas aldeias e nas cidades.” Descobriu-se, mais tarde, o motivo desse recado: a jovem, que vivia em Canarana (MT), tinha se suicidado.
A taxa de suicídio entre indígenas é mais que o dobro da média brasileira. Esse problema afeta principalmente os mais jovens. Aproximadamente 64% dos suicídios indígenas ocorrem na faixa etária de 10 a 24 anos, segundo um levantamento feito pela pesquisadora Jacyra Paiva, da Fiocruz, com base em informações colhidas entre os anos 2000 e 2020.
Esse alto índice decorre, em parte, do choque cultural que os indígenas vivem ao se integrar ao mundo dos brancos. A assimilação nunca é total, e assim eles se veem divididos entre dois universos muito distintos. Os mais jovens, sobretudo, lidam com desejos de consumo ao mesmo tempo em que têm dificuldade de achar um espaço no mercado de trabalho. Sonham vestir roupas de grife, mas não encontram meios para obtê-las. Essa angústia também ajuda a explicar o consumo de álcool e drogas por indígenas, problema antigo e ainda presente.
Impactadas pelo luto, as participantes da assembleia falaram de suas preocupações com a saúde emocional dos filhos e a dificuldade de dialogar com eles. A agressividade dos jovens e a violência entre casais – problemas que, segundo os presentes, não existiam há pouco tempo atrás – foram discutidos timidamente. Nem todos se sentem à vontade para tratar do assunto. Profissionais de saúde brancas palestraram, na assembleia, sobre os riscos da gravidez precoce e os efeitos que isso pode ter na saúde emocional das jovens indígenas.
“Junto com as novelas e a bebida, veio da cultura caraíba esse comportamento de bater”, disse Wisio Kaiabi, de 60 e poucos anos (ela não se lembra de sua idade exata). “Caraíba” é um termo usado para designar as pessoas brancas. “Antigamente, ciúme a gente resolvia conversando. E se não resolvia com conversa, separava”, ela explicou. Uma das indígenas pioneiras na vida política, Wisio é uma liderança respeitada no Xingu, conhecida hoje como cacica. Esse papel já foi interditado às mulheres, mas desde os anos 1990 as mais influentes vêm recebendo o título, seja porque são casadas com um cacique, seja porque se aventuraram a fundar novas aldeias e comandá-las. “Tradicionalmente é papel das cacicas liderar as mulheres apenas”, me explicou Watatakalu. “Mas agora há cacicas chefiando povoados inteiros.”
O Polo Diauarum, onde foi sediado o evento, é um dos três pontos de apoio logístico à terra indígena do Xingu. Conta com escola, posto de saúde e espaço para grandes reuniões. Mais recentemente, passou a ter um mercadinho, montado em uma oca que também serve de moradia para os donos do negócio (um homem indígena e sua mulher branca). Nas poucas prateleiras, há arroz, biscoitos e refrigerantes trazidos da cidade mais próxima, um motivo de preocupação para os médicos da região. Os diagnósticos de diabetes e pressão alta são cada vez mais comuns no Xingu.
Na geração das indígenas mais velhas, que hoje são avós, muitas não aprenderam a falar português, condição que dificulta a participação na vida política. Com as assembleias, Watatakalu pretende mudar esse cenário. Ela argumenta que, para que as mulheres possam se engajar na defesa do território e dos direitos indígenas, é preciso que antes elas aprendam os caminhos da democracia brasileira e a cultura dos brancos, a exemplo de mulheres como Sônia Guajajara, deputada federal e hoje ministra dos Povos Indígenas do governo Lula.
Os exemplos de Guajajara, Watatakalu e Wisio motivaram Joana Ikpeng, 37 anos, mãe de três filhos, a voltar para a escola e concluir o ensino médio. Seu objetivo era um só: dominar o português para se comunicar mais facilmente com médicos e se inteirar melhor de seus direitos civis. Aos poucos, no entanto, Ikpeng foi ampliando seus horizontes. Passou a atuar nos projetos de defesa da cultura xinguana. Na assembleia, em novembro, ela trabalhou como tradutora das idosas de seu povoado. Venceu a timidez ao falar para a plateia de mulheres.
Durante os quatro dias de encontro, pouco importava quem fosse o orador – a plateia escutava atentamente. Numa cultura em que o conhecimento é transmitido pela oralidade, falar e ouvir são coisas sérias. Mesmo que alguém se alongasse ou se repetisse no microfone, ninguém interrompia. Além do palestrante, só se ouvia o burburinho do choro dos bebês, as birras e os risos de crianças, quase todas filhas das mulheres que participavam da assembleia.
“Os membros da ONU teriam muito a aprender com os indígenas sobre como construir, se não o consenso, ao menos a convergência de ideias”, brinca Giorgio Cristofani, um jovem de 25 anos, coordenador das ações em campo do projeto Conexão Saúde Alto Xingu, da Fiocruz. Mestre em relações internacionais, Cristofani enveredou pelo trabalho indigenista. De tão engajado no povoado dos Yawalapiti, recebeu recentemente o apelido indígena de Nalá e foi adotado como filho por uma das famílias, ganhando com isso uma segunda mãe.
Cristofani assistiu à assembleia. Ele me contou que, depois de conhecer a cultura indígena, passou a ter uma nova visão de mundo e de tempo. “Na cultura do branco, a noção da história é progressiva. Buscamos sempre algo mais para que o futuro faça sentido. Para os indígenas, a chave para o futuro está sempre no passado, porque é lá que eles vão buscar o conhecimento. Com o Ailton Krenak [filósofo e ambientalista], aprendi que ‘o futuro é ancestral’”, ele disse.
O trabalho da assembleia ainda é incipiente, mas já tem consequências palpáveis. Um de seus maiores méritos talvez seja inspirar as mulheres de diferentes etnias a entrar na luta política. A delegação dos Kayapós, por exemplo, compareceu com o objetivo de aprender como se organiza um evento desse tipo. Esse povo é conhecido por sua natureza combativa, brava. Entrou para a história a imagem feita em 1989 da jovem Tuíra Kayápo (ela tinha 19 anos, na época) encostando um facão no rosto do então presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz, em protesto contra a instalação da usina de Belo Monte. A cena foi registrada durante o primeiro Encontro das Nações Indígenas do Xingu, realizado naquele ano em Altamira (PA). As Kayapós seguem sendo guerreiras – e agora buscam outras formas de lutar.
Como tudo na história, elas vêm mudando. E, principalmente, “mundando”.