Rosset é filósofo, foi professor na faculdade de Letras e Ciências Humanas de Nice, e entre inúmeros livros escreveu L’École du Réel [A Escola do real], reeditado em 2008, de interesse especial para quem lida com cinema documentário. Na edição de 1976, o primeiro capítulo, O real e seu duplo (publicado também em separado e editado, no Brasil, pela José Olympio, em 2008), tem Ensaio sobre a ilusão por subtítulo, e traz como epígrafe citação de E. A. Poe: “Quero falar da mania dele de negar o que é, e de explicar o que não é.”
Transcrevo a seguir alguns excertos de :
Flaherty é a meu ver um dos maiores cineastas de toda a história do cinema. Subscrevo inteiramente a avaliação feita dele por S. Kracauer, situando-o entre Homero e Hesíodo. Um dos meus ‘primeiros filmes’ foi “Nanook, o esquimó”.
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A psicanálise sempre teve vocação para tentar iluminar os ‘mistérios’ da ‘alma’; o cinema, ao contrário, – como de maneira geral toda arte – a acentuar seu aspecto impenetrável.
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Só existem dois tipos de críticos de cinema. Há os que escrevem nos grandes jornais e semanários e que dão tais demonstrações de incompetência que chegamos às vezes a nos perguntar se sequer viram o filme que pretendem comentar. E há os outros, que escrevem nas revistas de cinema, que são competentes mas também, quase sempre, preconceituosos: não existe em geral para eles senão um tipo de cinema ou um certo tipo de cineasta, todo o resto sendo pura e simples nulidade. De maneira que nos encontramos, a maior parte do tempo, divididos entre a legião dos incapazes e a corte dos críticos competentes mas intolerantes e sectários.
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O barulho feito pelos espectadores frequentemente acaba com o prazer de ver um filme numa sala de cinema, e sublinha a diferença existente entre o mundo real e o mundo paralelo do cinema; diferença que constitui, a meu ver, a essência do cinema. Basta uma conversa entre duas pessoas que contam animadamente suas férias praticando esportes de inverno, sem darem uma olhada para a tela, como os mendigos que se diz frequentam os jardins do Collège de France, para anular de um golpe a essência do efeito cinematográfico.
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A visão de um filme pode ser considerada de um certo ponto de vista como um prazer essencialmente ‘solitário’.
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Ao contrário das outras artes, o cinema é uma arte sem autor único e submetida aos caprichos das circunstâncias que acompanharam a filmagem.
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O cinema nos põe na situação eu diria de um ‘voyeur’ tranquilo (enquanto na vida real o ‘voyeur’ está sempre angustiado), seguro de ver tudo e de não ser surpreendido por ninguém. Prazer garantido, portanto, no duplo sentido do adjetivo. Ora, creio que esse prazer é universal. Quem nunca sonhou possuir esse poder de Cléofas?
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Você conhece a frase de Nietzsche no final de Zaratustra: ‘a alegria é mais profunda que a tristeza’. Mahler musicou essas palavras num trecho admirável da ‘Terceira sinfonia’. A meu ver eu diria, paralelamente, que o cômico é mais profundo que o sério, – eu ia dizer: mais sério que o sério. Sem mencionar o fato, para voltar ao cinema, que o sucesso de um filme cômico é mais raro e mais difícil do que o de um filme dramático.
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Disfarçado pela ação e vastas paisagens, o western sempre serviu para fazer engolir uma poção envenenada. Estou me referindo à poção moralizante, que catequiza e infantiliza o espectador impondo sua adesão a uma distinção pueril entre bem e mal, justo e injusto, gentis e maus. Nada me é mais incômodo que esse encorajamento dado à estupidez que é indiretamente um encorajamento ao fanatismo e ao crime, pois ele logo leva, se surgem circunstâncias favoráveis, à mobilização para eliminar os ‘maus’ em favor dos ‘bons’, como pudemos observar, por exemplo, no Cambodia no tempo dos Khmers vermelhos. […] Os valores exaltados pelo western americano eram os mesmos nos quais se apoiava o imperialismo americano que invadia na época o Vietnam; e que, naturalmente, não tardariam a fazer de John Wayne o diretor e principal herói de ‘Boinas verdes’.
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A fraqueza de Wittgenstein pelo western não me surpreende. Eu o considero o maior filósofo do século vinte junto com Bergson, mas também como um moralista indestrutível, como demonstram inúmeras de suas anotações publicadas postumamente. Não é também por acaso que ele detestava Shakespeare, autor alheio precisamente a toda noção de moral, de bem ou de mal.
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Os dois volumes de Deleuze sobre cinema me decepcionaram um pouco (e me entediaram um pouco) por causa de seu extremo intelectualismo e falta, a meu ver, de sensibilidade estética. Mas isso é assim com frequência em Deleuze.
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Não gosto, de maneira geral, de obras com mensagens qualquer que seja o gênero da obra e a natureza da mensagem (seja mística, metafísica ou outra). Gosto que um filme suscite emoções em mim, não que as dite para mim. Gosto que me inspire reflexões, não que as faça por mim. As mensagens e o simbolismo de autores como Bergman ou Ozu são claras demais para que eu me interesse por elas: é precisa deixar alguma coisa para o espectador digerir. De outro lado, filmes que evoluem propositalmente na vaguidão (Bergman) ou que optam pela lentidão (Ozu, e muitos cineastas japoneses e escandinavos) tem tendência natural a me entediar.
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Quem diz cinema diz em grau maior ou menor grande orçamento, quem diz orçamento diz, mais ou menos, grande público para ao menos recuperar os gastos, quem diz grande público propõe certa facilidade para ver e entender; a infantilização ameaça assim necessariamente o cinema (como no caso do western).
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é um pequeno volume de 137 páginas. Reúne referências ao cinema publicadas entre 1977 e 1999 – uma perspectiva pessoal, repleta de pequenas provocações e ideias estimulantes.