Nas mensagens trocadas em grupos de procuradores no aplicativo Telegram nos tempos da Lava Jato, poucas orelhas ferviam tanto quanto a dos membros da Polícia Federal. Membros do Ministério Público Federal chamavam os colegas de desleais e os acusavam de surrupiar o protagonismo da operação, que completa dez anos neste mês.
A rivalidade apareceu logo no início dos trabalhos, e foi crescente. Em abril de 2015, quando saiu uma reportagem no jornal O Estado de S. Paulo sobre uma eventual autonomia da PF, os procuradores sentiram sinal de perigo. Temiam perder espaço e poder para a polícia. Luiz Fernando Lessa, do Rio de Janeiro, sugeriu contra-atacar: “Então é soltar os podres [da PF]. Cadê os casos de controle externo?” Depois, sugeriu que notícias negativas contra a PF poderiam ser veiculadas em programas policiais da Bandeirantes e da Record.
Houve momentos em que procuradores especulavam sobre a possibilidade de que viesse a ser instalada uma “CPI da PF”. Quando houve uma sucessão no Ministério da Justiça, a procuradora Monique Checker, do Rio de Janeiro, estava indignada com o tratamento privilegiado que vinha sendo dado à PF. Fez um desabafo: “Eu preferia alguém que tocasse o terror, mesmo aumentando a crise institucional.” Mais cedo, Checker havia criticado os delegados que “agem sem pensar” e usam a “tática do achaque explícito [que] sempre dá certo”. No dia seguinte, a procuradora espinafrou todo mundo. “No afã de atacar o governo, toda a mídia e o público estão embarcando na onda dos delegados.”
A rivalidade com a PF se inflamou com a estreia da série O Mecanismo na Netflix. Quando ainda não tinha começado a assistir aos episódios, o coordenador Deltan Dallagnol fez piada: “Eles têm que botar um galã. Vou ser eu, com certeza.” Mas logo foi informado de que seu personagem já aparecia naquela primeira temporada e era retratado “como um almofadinha”. No próprio sábado, ele viu o primeiro episódio e mudou de tom. “Foda pra gente mesmo. Louva a PF. Detona MP como soberbo, ingênuo e não ponta firme. Sobrou até pro Moro também […]. Fiquei na dúvida até se não é o caso de deixar bem claro que tem um pequeno percentual de realidade, mas a maioria é criação.”
A frustração foi geral. O procurador Orlando Martello Júnior, do MPF do Paraná, que já havia assistido a sete dos oito episódios, escreveu: “Bomba!! Assisti O mecanismo. Pinta o MPF da pior forma possível. Preocupou-me que isso irá para o mundo. A PF é mais ética que o juiz e o MPF. Se a coisa continuar assim, a defesa de Lula vai chamar o diretor para depor na ação […]. Essa temporada está perdida para nós.”
O temor de que a PF aparecesse melhor que o MPF era antigo. Ainda na fase em que os produtores da série estavam pesquisando o assunto, a dúvida angustiou os procuradores. Um deles, Alan Mansur Silva, levou o assunto a Dallagnol. “Deltan, alguém da Lava Jato está fornecendo informações ao José Padilha […]? Nosso receio é que como há consultoria dos delegados, [a série] saia muito ‘pró-delegado’.” Dallagnol chegou a procurar o jornalista Vladimir Neto, autor do livro que baseou a série.
Procurado pela piauí para comentar as críticas dos procuradores, o diretor José Padilha mandou uma mensagem em que diz o seguinte: “Sobre os procuradores reclamarem que a PF tem mais protagonismo na série: não me surpreende em nada. Durante a produção o Dallagnol me procurou para que eu assinasse as dez medidas DELE contra a corrupção. Eu achei descabido e recusei. Depois, na filmagem do documentário que estou fazendo, em parte sobre meu próprio erro crasso de avaliação da Lava Jato, pedi que a turma do Intercept desse um search nas mensagens usando meu nome. Apareceu uma mensagem dos procuradores dizendo pro Dallagnol me procurar que era certo que eu iria apoiar a sua lista! A procuradoria buscava o apoio de pessoas conhecidas para ganhar visibilidade. Queriam os holofotes.”
As conversas entre os procuradores estão relatadas na reportagem da edição da piauí de março, com base em mensagens que integram o acervo da Operação Spoofing, deflagrada pela Polícia Federal em julho de 2019. O objetivo era investigar o vazamento de contas de Telegram mantidas por participantes da Lava Jato, um escândalo que ficou conhecido como Vaza Jato. Divulgados em primeira mão pelo site Intercept Brasil, os lotes de mensagens vazadas por um hacker mostraram que os procuradores da Lava Jato – com Deltan Dallagnol à frente – faziam combinações com o então juiz Sergio Moro. Eles trocavam informações e acertavam planos de ação.
Agora, a piauí teve acesso ao conteúdo integral das mensagens do coordenador da força-tarefa, Deltan Dallagnol, apreendidas pela Spoofing. É um volume enorme de conversas, em grande parte inédito, que totaliza 952 754 mensagens, recebidas ou enviadas pelo procurador entre maio de 2014 e abril de 2019. Todas foram lidas, ao longo de cinco meses, pelos repórteres João Batista Jr., Allan de Abreu, Felippe Aníbal, Lígia Mesquita, Luiz Fernando Toledo e Matheus Pichonelli. As mensagens compõem um retrato didático sobre a conduta de Dallagnol e mostram os bastidores do Ministério Público Federal nesse período, em uma reportagem que pode ser lida por assinantes neste link.