Nas duas maiores democracias das Américas, os tribunais constitucionais estão na mira do sistema político. No Brasil, acaba de ser aprovada no Senado a PEC 8/2021, uma Proposta de Emenda à Constituição que, se confirmada pela Câmara dos Deputados, proibirá que decisões monocráticas do STF suspendam a eficácia de leis. É uma mudança relevante: se essa regra já estivesse em vigor, o Supremo não poderia, por exemplo, ter suspendido a lei que estabeleceu o piso nacional da enfermagem, decisão tomada individualmente pelo ministro Luís Roberto Barroso, no ano passado. Medidas como essa, ainda que tivessem urgência, teriam de ser votadas por um colegiado do tribunal.
A PEC é de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos/PR), que vem do estado onde nasceu a Lava Jato e é filiado a um partido que a transformou em principal bandeira política. A aprovação, com folga, em dois turnos, contou com empenho pessoal de Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que comanda uma casa onde a bancada bolsonarista, avessa ao STF, ganhou força na última eleição. Pacheco usou a PEC para acenar a esse grupo, de quem angariou antipatia por barrar sucessivos pedidos de impeachment contra ministros do Supremo. Sua esperança agora é emendar relações com os bolsonaristas e, com isso, assegurar alguns votos da extrema direita para Davi Alcolumbre (União-AP), que deve se lançar à presidência do Senado em 2024.
Embora se aplique a diferentes instâncias do Judiciário, a PEC tem como principal destinatário o Supremo, criticado tanto por seus pedidos de vista impróprios, cujo propósito é paralisar a conclusão de um julgamento, quanto por decisões monocráticas temerárias, que por vezes não têm clara urgência ou fundamento jurídico.
Originalmente, a PEC pretendia limitar os pedidos de vista, mas, segundo relata a imprensa, esse trecho foi suprimido do projeto, já que o próprio tribunal, sob a batuta de Rosa Weber, corrigiu recentemente a brecha que permitia aos ministros sentar em processos por tempo indefinido. A grande novidade está mesmo na limitação das decisões monocráticas, portanto. Por mais que a motivação dos senadores possa não ser nobre, a PEC corrige, de fato, um vício do Supremo. O excesso de poder individual de ministros, que divide o tribunal em onze ilhas – na expressão cunhada por Conrado Hübner Mendes –, é uma anomalia há tempos apontada por quem estuda o STF.
Como vivemos processos históricos parecidos nos últimos sete anos, pode ser instrutivo olhar o que está acontecendo nos Estados Unidos. Lá, como aqui, a Suprema Corte vem enfrentando crescentes contestações. A diferença é que, entre os americanos, a crítica vem do lado oposto do espectro ideológico: quem bate bumbo contra os abusos do tribunal é a esquerda do Partido Democrata. Eles acusam a ala trumpista do Partido Republicano, hoje majoritária, de ter abandonado o fair play político para obter, de forma ilegítima, uma maioria que vem revertendo jurisprudências em temas politicamente divisivos, como o direito ao aborto seguro e a constitucionalidade de políticas de ação afirmativa que usem critérios raciais.
Democratas mais ambiciosos, como a jovem estrela progressista Alexandria Ocasio-Cortez, sonham com um aumento de vagas na corte, de modo a anular as vantagens do que chamam de “a vaga roubada” por Donald Trump (pouco antes de ele assumir o poder, em 2016, os republicanos se recusaram a votar a última indicação de Barack Obama para a Suprema Corte, deixando-a nas mãos de Trump). A maré, nitidamente, virou: até pouco tempo, quem denunciava a Suprema Corte eram os conservadores, que a acusavam de praticar ativismo orientado à esquerda.
Esse fenômeno atualiza uma conhecida advertência da filosofia política: tribunais convivem permanentemente com ameaças vindas de outros poderes, que têm recursos financeiros e materiais – “a bolsa” e “a espada”, na conhecida imagem de Alexander Hamilton – para peitá-los. A força dos juízes, em tese, vem de sua estatura intelectual e moral, bem como da confiança na integridade de suas motivações e métodos. Nossa Constituição espelha esses ideais, ao exigir que pessoas indicadas aos tribunais de cúpula, como o Supremo, ostentem virtudes intelectuais (“notável saber jurídico”) e morais (“ilibada reputação”). Isso tem faltado ao Brasil, o que ajuda a explicar, em parte, a ofensiva que estamos vendo hoje contra o STF.
É notável o quanto uma ou duas gerações de ministros descompromissados com tais parâmetros é capaz de desacreditar esse edifício portentoso, mas essencialmente delicado. Talvez julguem que a autoridade de sua toga é um dado da natureza, incapaz de ser depreciado por suas próprias ações.
Quando o sistema político, por bons motivos ou falsos pretextos, intervém no Judiciário, há distintas estratégias para que esse último se proteja. É útil, também nesse quesito, a comparação entre os casos brasileiro e estadunidense.
Uma primeira alternativa é depurar as acusações, desconsiderando aquelas de má-fé, mas reconhecer que há problemas e indicar o que pode ser alterado para preservar, ou resgatar, a autoridade do tribunal. Uma corte que atua para corrigir suas fragilidades emite uma clara mensagem de que reconhece as normas éticas que balizam seu poder, e renova seu compromisso público com a transparência. É essa a principal estratégia em curso na Suprema Corte americana.
Uma das principais críticas feitas ao tribunal, e com razão, diz respeito às relações nebulosas entre ministros (os justices) e gente graúda do Partido Republicano. Virou rotina, na imprensa americana, a descoberta de mordomias desfrutadas por magistrados às custas de mecenas da direita. O rosto mais conhecido desse escândalo é Clarence Thomas, cuja esposa, para piorar, é uma conhecida militante do trumpismo: Ginni Thomas esteve associada, até a undécima hora, à deslegitimação da eleição de Joe Biden e à turba que invadiu o Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Mas o casal Thomas não está sozinho nos estragos à reputação da Suprema Corte: Samuel Alito, ministro que liderou a mudança na jurisprudência sobre o aborto, teve férias patrocinadas por um bilionário republicano com casos julgados em seu tribunal. A brecha para aceitar férias de luxo sem declará-las foi descoberta por outro histórico magistrado conservador, o falecido Antonin Scalia.
A resposta a esses escândalos recentes veio por meio de um Código de Conduta redigido pela própria Suprema Corte e publicado há poucos dias. É um documento sucinto e claro, que enuncia princípios de conduta que devem ser observados por todos os seus integrantes. Destaca-se o segundo cânone: “Ministros devem evitar impropriedades e a aparência de impropriedade em todas as atividades”. Há quem critique a falta de clareza quanto à aplicação dessas normas, pois lá, como aqui, ministros da Suprema Corte só são vulneráveis a pedidos de impeachment, um processo nada simples. Ainda assim, comprometer-se publicamente com comportamentos éticos, mesmo que nenhum deles em si mesmo seja inovador, é um passo relevante.
No Brasil, essa alternativa foi perseguida por Rosa Weber, durante sua presidência do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (2022-2023). Teve relativo sucesso. No tribunal, Weber conseguiu emplacar uma reforma regimental que promete acabar com a farra dos pedidos de vista. No CNJ, por outro lado, a ministra não foi capaz de aprovar uma regra para restringir o recebimento de presentes por magistrados ou o hábito de darem palestras em eventos patrocinados por pessoas que têm processos no tribunal. A proposta foi derrotada em setembro deste ano. Portanto, os magistrados que assim quiserem podem continuar achincalhando a reputação de suas togas com práticas semelhantes àquelas que o novo código de conduta da Suprema Corte fez questão de proibir.
Uma segunda estratégia, quase antagônica, para reagir aos ataques é intensificar a politização do tribunal. Em vez de reforçar seus compromissos com a ética judicial e aperfeiçoar os ritos, de modo a diminuir a ocorrência de julgamentos arbitrários, alguns ministros podem tentar proteger a si próprios estreitando relações pessoais com quem teria poder para atingi-los, notadamente agentes políticos.
Esse estreitamento pode não se dar, ou não se dar apenas, no nível institucional, através da presidência do tribunal. No país da cordialidade, muitas relações se estreitam a nível pessoal. É o nosso maquiavelismo da tubaína, ou do bacalhau com vinho alentejano: nas salas de jantar de Brasília ou nos melhores endereços de Lisboa, ministros de tribunais superiores, ao invés de guardar prudente (e proba) distância de figuras públicas, entram de corpo e alma no mundo da política miúda e partidária e dos grandes interesses econômicos. Debatem leis e atos de outros poderes, quiçá também suas próprias decisões. Traçam planos para o país, para a economia. Na prática, comportam-se como senadores de tempos pré-constitucionais, que reuniam atribuições de aconselhamento político e julgamentos de grandes casos. Parecem esquecer que esse modelo acabou faz tempo – e não foi por falta de pessoas que lhes oferecessem jantares e outros mimos.
A aposta, nessa segunda alternativa, é de que a proteção mais eficaz à integridade do tribunal virá das boas relações pessoais que seus integrantes cultivam com os donos do poder. Quem lê o recém-lançado (e excelente) O Tribunal, livro dos jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber, publicado pelo Companhia das Letras, percebe que, mesmo quando o Supremo se uniu para reagir à ameaça bolsonarista, a estratégia de usar relações pessoais para proteger o tribunal sempre esteve presente. Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes foram expoentes dessa alternativa, que não começou no governo Bolsonaro nem terminou com ele.
É essa a estratégia que ainda hoje prevalece no STF: com uma sem-cerimônia que causaria espanto em magistrados de qualquer canto do planeta, ministros negociam cargos, indicam nomes ao Executivo, emplacam aliados em tribunais, acenam a empresários – às vezes em palestras patrocinadas por esses mesmos empresários –, convidam e são convidados para jantares onde se discute sabe-se lá o quê. Essa estratégia pode funcionar no curto prazo, ou num contexto de emergência extrema e excepcional, mas evidentemente não se sustenta a médio ou longo prazo, pois não está baseada em qualquer princípio ético justificável. Pode fornecer atalhos e propiciar ganhos pessoais, mas é incapaz de fundamentar a autoridade do Judiciário. As constituições contemporâneas dão aos tribunais de cúpula o papel de arbitrar grandes conflitos políticos e conter excessos de outros poderes, tudo nos termos da lei e da Constituição. Esse papel é obviamente incompatível com a ambição de um ministro de se tornar íntimo, em convescotes à meia luz, dos atores cujos conflitos ele deve arbitrar, e cujos abusos deve conter.
Curiosamente, os mesmos políticos que enchem a boca para criticar abusos do Supremo e apoiam a PEC aprovada pelo Senado não veem problema na promiscuidade dos jantares, das palestras e agendas sociais dos ministros. Pelo contrário: quando convidados, são os primeiros a embarcar para Lisboa. É no mínimo cínico, senão diversionista, o compromisso com a integridade do Supremo expressa por quem, da boca para fora, critica pedidos de vista, mas, da porta do restaurante para dentro, desfruta da intimidade dos magistrados para discutir os grandes problemas do Brasil – e talvez seus pequenos problemas particulares, ao pé do ouvido. “Embargos auriculares”, no pior sentido que a expressão pode ter. Erra quem acredita que esse pessoal é que salvará o Supremo de cometer lambanças.