A dona de casa Joice Domingos de Souza, de 35 anos, atendia o filho Kaik, de 8 anos, que assistia a uma aula pela tevê do quarto e que, sentado em uma almofada no chão, franzia o rosto diante de um exercício de português. Da sala, Marcos Matheus, de 9 anos, chamou a mãe. O menino caiu aos prantos porque não conseguia entender a explicação da professora, que ele tentava acompanhar por outro televisor. Enquanto Joice acalmava o garoto, Maique, de 6 anos, também reivindicou ajuda: o celular em que ele assistia à aula parou de funcionar. “Desde que começou o ensino a distância, é assim. Preciso fazer rodízio para atender todo mundo”, resignou-se a dona de casa, que mora com o marido, Marco Antônio Soares, e sete filhos (entre eles, cinco netos de Soares, que o casal adotou legalmente) em uma casa simples de madeira no bairro Santa Felicidade, em Curitiba.
Os cinco meninos da família em idade escolar enfrentam dificuldades de aprendizagem, que Joice diz ter sido agravada pelo ensino remoto adotado na rede municipal desde 13 de abril do ano passado, época em que a pandemia do novo coronavírus começou a se intensificar na capital paranaense. Eles fazem parte de um grupo definido como alunos “em risco”, identificados pela pesquisa “Educação não presencial na perspectiva dos estudantes e suas famílias”, divulgada em junho pela Fundação Lemann, Itaú Social, DataFolha e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Segundo o estudo, 43% dos alunos de escolas de baixo nível socioeconômico não evoluíram na aprendizagem, não estão motivados e manifestaram possibilidade de desistir dos estudos.
Apesar de quase ter esmorecido no fim do ano passado, Joice agora tenta incentivar os filhos. Em todo início de tarde, logo depois de lavar a louça do almoço, a dona de casa reúne os filhos e anuncia, tentando manter a animação: “Ok, galerinha! É hora de aprender!” Kaik se instala num dos quartos, enquanto os gêmeos Marcos Matheus e Wallison permanecem na sala, com os cadernos sobre o colo. A uma mesinha colocada no corredor, fica Maique. Kauan, de 14 anos, assiste às aulas pelo celular, no quarto dos pais. Os filhos menores, Giovana e Henrique, ficam em um canto, rabiscando papéis ou colorindo desenhos. Joice se reveza atendendo as demandas dos filhos, esforçando-se para mantê-los motivados. Ela, que concluiu o Ensino Fundamental (9º ano) somente depois de adulta em um curso supletivo, tem que puxar pela memória para ajudar as crianças. O cansaço é inevitável.
O revezamento não se restringe ao apoio da mãe. Os filhos costumam estudar dividindo-se entre as três tevês da casa (em Curitiba, as aulas são transmitidas por três canais abertos e pela internet). Há aulas complementares pelo YouTube, atividades extras que chegam por grupos de WhatsApp e videochamadas para tirar dúvidas com os professores. Como os Souza não têm computador, os filhos se alternam para usar os dois celulares de que a família dispõe. Todos vivem de forma modesta, com os rendimentos que o marido de Joice consegue como jardineiro e 205 reais que a dona de casa recebe do Bolsa Família, além do auxílio emergencial do governo federal.
No início da pandemia, a família até parcelou a aquisição do terceiro televisor para que os meninos pudessem assistir às aulas, mas não sobrou dinheiro para comprar um notebook ou outro celular. O smartphone mais antigo – um Motorola G2, que pertence a Joice – já tem mais de cinco anos de uso e vive travando. A solução foi estabelecer uma espécie de escala, já que as crianças recebem vídeos e atividades extras de três disciplinas por dia.
“Por serem de séries diferentes, fica mais complicado. Tenho que ficar correndo daqui pra lá e fazer esse rodízio de celulares. Pela tevê, o ruim é que não dá pra pausar a aula, tirar uma dúvida deles. Me vejo louca às vezes. E tem muita coisa que eu não lembro mais. É muito difícil, mas a gente vai dando um jeito”, disse Joice. “A gente só não desiste porque as professoras dão muita força. Ligam pra explicar até fora do horário, fazem atendimento individual, se precisar. Elas ajudam mesmo”, apontou Joice, afinando-se a tendências reveladas pela pesquisa “Educação não presencial”: 76% dos responsáveis recebem orientações da escola para continuar apoiando os estudantes; 72% das famílias têm professores disponíveis para tirar dúvidas; e 76% dos entrevistados recorrem aos profissionais da escola quando algo os incomoda na educação dos filhos.
Apesar disso, as crianças estão com deficiências educacionais básicas na casa dos Souza. O choro de Marcos Matheus relatado no início desta reportagem, por exemplo, tinha um motivo: apesar de estar no 4º ano, não é capaz de ler e escrever. Os irmãos Wallison (4º ano), Kaik (3º ano) e Maique (1º ano) também esbarram na leitura e na escrita. Mal sabem juntar as sílabas. Apaixonado por animais, Marcos Matheus fala com entusiasmo de um casal de tucanos que começou a aparecer na mata atrás de casa e sonha em “trabalhar com bichos”. (“Em ser veterinário”, ensinou Joice). Apesar de criança, o menino sabe que a realização da aspiração profissional depende da educação formal. “A mãe fala que [para ser veterinário] tem que estudar bastante. Tenho que melhorar. A lição tá muito difícil. Eu não tô conseguindo ler ainda”, disse o garoto, entre triste e envergonhado. Joice tem a justificativa: “A pandemia mudou muito a rotina de todo mundo aqui em casa. Eles estavam no auge para aprender a ler, tavam deslanchando. Agora, parece que voltaram para trás. Estão com bastante dificuldade”, contou.
A pesquisa “Educação não presencial” apontou que mais da metade dos alunos não obteve progresso na aprendizagem, segundo a percepção dos responsáveis: 29% permaneceram no mesmo estágio que estavam no início da pandemia, enquanto 22% desaprenderam coisas que já sabiam. Em famílias negras, como a de Joice, o estrago é ainda maior: 29% tiveram perda de aprendizagem, e 30% estagnaram no mesmo nível. De acordo com a pesquisa, a falta de progresso na alfabetização é a principal preocupação de 39% dos responsáveis residentes na região Sul. Para minimizar o prejuízo educacional dos filhos, Joice matriculou Marcos Matheus, Wallison, Kaik e Maique no Leia +, um programa da prefeitura de Curitiba lançado em maio para alunos com dificuldades na alfabetização. Uma vez por semana, cada um deles recebe atendimento individual, por videochamada. O programa mostra que as dificuldades essenciais com leitura e conceitos básicos de matemática têm se tornado comuns: são mais de 9,6 mil alunos com problemas de alfabetização atendidos pelo programa de reforço.
“A necessidade desses alunos foi identificada a partir de treze indicadores que apontam que eles precisam receber essas ações de forma compensatória e transitória, em uma perspectiva equânime, para que tenham igualdade de oportunidades de aprendizagem”, disse a secretária de Educação de Curitiba, Maria Sílvia Bacila. “Todos sofreram com a pandemia. Consideramos legítimo o sofrimento de todas as famílias, sejam as de menor ou de maior poder aquisitivo, sejam as famílias enlutadas. Todos tiveram que adaptar seu cotidiano para a educação das crianças”, acrescentou.
Enquanto auxilia Wallison em um exercício de matemática, Joice se preocupa com o prejuízo educacional que o ensino remoto tem legado aos filhos. “Eu me pergunto quanto tempo vai demorar para eles recuperarem o que perderam”, disse. Uma pesquisa feita pela Fundação Getulio Vargas (FGV) a pedido da Fundação Lemann mediu os impactos da pandemia no nível de aprendizagem, ao longo do ano letivo passado. O estudo considerou o período de março a outubro, em que os alunos ficaram sem aulas presenciais, e traçou três cenários. Na perspectiva mais pessimista, os alunos do Ensino Fundamental tiveram um índice de aprendizado 72% menor no período, em relação a um ano típico. No cenário mais positivo, as perdas educacionais foram de 14% e no intermediário, de 34%. Segundo o estudo, os alunos podem voltar ao mesmo patamar que estavam em 2015, no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que afere a proficiência dos estudantes em português e em matemática, estabelecendo um índice em pontos.
“Houve uma perda de aprendizagem ocorrida por causa da interrupção de aulas presenciais nesse intervalo [de março a outubro de 2020]. A gente pode, certamente, afirmar que essas perdas continuaram ao longo deste ano [2021], com a continuidade do ensino remoto”, disse um dos coordenadores da pesquisa, André Portela de Souza, doutor em economia e diretor do Centro Regional para Aprendizagem em Avaliação e Resultados para o Brasil e África Lusófona, da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Únicos dados consolidados no país que se tem até agora, uma avaliação feita pelo governo de São Paulo com uma amostra de 7 mil estudantes por ano escolar da rede pública estadual comprovou a perda de aprendizagem. Em 2019, um aluno do 5º ano chegava ao final do ano letivo, em média, com índice de proficiência Saeb de 223,4 pontos em português e de 242,6 em matemática. Na amostra de 2021, o índice caiu para 193,8 e 196,4, respectivamente. No 9º ano do Ensino Fundamental e no 3º ano do Ensino Médio também houve queda do índice de proficiência, mas em intensidade menor, o que sugere que a dificuldade é maior para alunos em fase de alfabetização. “Mais do que corroborar o que a nossa pesquisa previa, o levantamento feito pelo governo de São Paulo revela cenários ainda piores”, disse Portela de Souza, da FGV.
As dificuldades, é claro, também se estendem aos professores. Na Escola Maria Augusta Jouve, localizada em uma área de vulnerabilidade social, no bairro Alto Boqueirão, em Curitiba, a equipe teve que contornar o problema de famílias que não dispunham sequer de um televisor em casa. “Uma delas, por exemplo, teve a televisão furtada por ladrões. Outra perdeu a tevê numa enchente”, contou a diretora Carla Aparecida Cavichioli. A comunidade escolar se organizou e conseguiu arrecadar e doar três aparelhos usados. Mas a equipe pedagógica teve dificuldade em adaptar a nova rotina às deficiências estruturais dos alunos. “Os professores fazem videochamadas, pensam em conteúdos que possam aplicar à distância. Mas as dificuldades são muito grandes. Tem casos em que a criança não tem nem luz em casa ou que convive com cinco ou seis irmãos, que precisa dividir computador. Para essa criança, a retomada na aprendizagem vai ser mais demorada”, avaliou a diretora.
Nesta segunda-feira (19), alunos de cinquenta Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e cinquenta escolas municipais de Curitiba voltaram às salas de aula. Nessas unidades, a rede funcionará de forma híbrida: os pais e estudantes poderão optar pelo formato presencial (com aulas presenciais e videoaulas) ou remoto (com videoaulas e atividades em kits pedagógicos individuais). Apesar de a Escola Júlio Moreira, onde os filhos de Joice estudam, estar nessa lista, os meninos vão continuar nas aulas a distância: como as crianças teriam que permanecer em turnos diferentes e em meio período, a mãe não conseguiria levar e buscar todo mundo no colégio e ainda cuidar da casa e dos filhos mais novos. Com o celular em mãos, Kauan, o mais velho dos irmãos, se resignou ante o ensino remoto. O menino quer fazer do mundo digital sua opção profissional, mas preocupa-se com a concorrência. “Eu queria ser hacker da Polícia Civil e ajudar a investigar crimes da internet. Mas nem sei se tem curso pra isso”, disse. “É difícil, porque quem estuda numa escola particular, por exemplo, tem muito mais chance. A gente perdeu tempo nesta pandemia”, lamentou.
Com a rotina exaustiva de atuar como uma espécie de professora dos filhos, Joice espera por um momento de respiro e pela retomada definitiva das aulas presenciais, para que os filhos consigam reverter as perdas educacionais que tiveram ao longo da pandemia. No curto prazo, a aspiração dela é básica: que os meninos sejam capazes de ler e escrever. Para o futuro, a dona de casa se permite “pensar alto”. “Eu não pude estudar. Meu sonho é ver eles se formarem, terem faculdade, serem alguém na vida. Vai ser muito difícil, porque eles já começam de trás, por causa das dificuldades, mas eu acredito que eles vão conseguir”, disse. “Espero que logo eles estejam lendo bem. Vai ser emocionante”, acrescentou.