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    "Quando vocês pegam a imagem de uma pessoa, essa imagem não acaba. Mesmo depois de muito tempo após sua morte, a imagem continuará preservada. [...] e isso é ruim, isso nos faz sofrer", disse Márcio, agente de saúde yanomami

questões cinematográficas

Como Fotografei os Yanomami – transgredindo interdições

Filmar indígenas que veem as imagens como fontes de sofrimento é conflito central do documentário

Eduardo Escorel | 23 ago 2018_15h28
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Só espectadores em estado de alerta poderão ter conseguido assistir a Como Fotografei os Yanomami, documentário de Otavio Cury que estreou em 9 de agosto, no Rio, teve passagem vertiginosa por um cinema, com uma sessão diária, e após a primeira semana em cartaz foi expelido do circuito, tudo indica que para sempre. É uma pena. O sumiço impediu o acesso a outra face do drama de Roraima, bem mais antiga do que o recente conflito entre brasileiros e venezuelanos que está na manchete dos jornais.

Pacaraima, cidade na fronteira com a Venezuela, de onde 1 200 imigrantes foram obrigados a sair depois de terem seus barracos destruídos e queimados, é terra de Macunaíma, personagem de Mário de Andrade. O herói de nossa gente nasceu há cento e poucos quilômetros dali, no fundo do mato-virgem, quando se fez um silêncio tão grande que foi possível ouvir o murmurejo do rio Uraricoera.

A floresta densa da região, vista do alto no documentário de Cury em longo plano gravado de helicóptero, é morada de yanomamis. Palavras de um xamã, em legendas superpostas à imagem, nos dizem que “quando os brancos sobrevoam a floresta em seus aviões não veem nada. Devem pensar que seu chão e suas montanhas estão ali à toa e que ela não passa de uma grande quantidade de árvores. Entretanto, os xamãs sabem muito bem que ela pertence aos xapiri [espíritos ou ancestrais animais que se apresentam aos xamãs dançando e cantando]. Antigamente, antes dos brancos chegarem à nossa floresta, morria-se pouco […]. Apesar de os xapiri saberem curar, hoje em dia os xamãs também precisam contar com o auxílio dos remédios dos brancos para manter essas doenças longe de nós” – palavras que explicitam a relação contraditória dos yanomami com o homem branco, por viverem divididos entre liberdade e dependência, autonomia e submissão, mitologia ancestral e convivência forçada com cultura material diversa da sua etc.

Vítima de doenças que desconheciam e lhes foram transmitidas pelo homem branco, os yanomami dependem do soro para se curar, das vacinas e dos antibióticos que chegam de helicóptero, trazidos pelos técnicos de enfermagem, conforme vemos no início de Como Fotografei os Yanomami.

A floresta é fria, nos diz em voz off Marcio, agente de saúde yanomami da comunidade haxiú: “Aqui na cidade tem gripes, diarreia e epidemias. É assim. Eu não tenho vontade de ficar na cidade. Eu venho rapidamente para fazer algumas compras [de lapiseira, anzol, facão etc.] e volto logo. Eu não fico pensando – ‘ah, eu quero voltar logo para a cidade’. Eu gosto mesmo é da minha floresta saudável, eu moro perto das raízes das árvores. Lá eu me sinto bem. Aqui, nesta cidade [Boa Vista], é muito quente, este lugar é muito quente, dentro das casas faz muito calor. Nas nossas casas não, as nossas casas são frescas e ventiladas por dentro.”

Como Fotografei os Yanomami deixa claro que uma das barreiras que mantém esse povo indígena à parte do homem branco é a concepção do que seja e para que serve a floresta. Mas não apenas isso. A própria língua os separa, já que os agentes de saúde não falam, nem entendem bem, a dos yanomami. Outras restrições, muitas vezes ignoradas, contribuem para o afastamento: há interdição de dizer o nome de pessoa que morreu, assim como de lembrar dela através de fotografia – “um momento feliz que não existe mais” –, o que os leva a destruir fotos de falecidos: “a imagem pertence à pessoa, ela é parte da pessoa. Estarei desrespeitando a pessoa se tirar sua foto e trocá-la por uma lã ou uma bolacha”.

O conflito central expresso em Como Fotografei os Yanomami, igualmente contraditório, é esse: como fazer um documentário sobre indígenas se eles consideram que “quando você está filmando alguém, você está tirando algo que é essencial para aquela pessoa, que tá dentro dela”?

Márcio, o agente de saúde yanomami, retoma a questão em outros termos: “[…] quando um não indígena pega nossa imagem, a imagem de uma criança ou de uma pessoa idosa. Assim como vocês estão fazendo [se referindo à equipe de Como Fotografei os Yanomami], pegando a nossa imagem. Quando morrermos a nossa imagem continuará, quando morrermos a nossa imagem não acabará. Quando estamos com saúde vocês pegam as nossas imagens. Nós yanomami não somos iguais a vocês, não indígenas. Quando uma pessoa morre, nós não ficamos olhando a sua imagem. Não gostamos de ver as imagens dos mortos. Quando vocês pegam a imagem de uma pessoa, essa imagem não acaba. Mesmo depois de muito tempo após sua morte, a imagem continuará preservada. […] e isso é ruim, isso nos faz sofrer. Por isso não queremos que vocês peguem nossa imagem. Depois que entendemos isso, ficamos mais atentos e não queremos que vocês peguem imagens de pessoas mais idosas, que essas imagens permaneçam após suas mortes. Porque isso nos faz sofrer. Não queremos que vocês peguem nossas imagens de forma aleatória, de qualquer pessoa, pois mesmo depois de ter passado muito tempo da morte a sua imagem continua preservada. […] Nós não fazemos isso, não queremos que peguem as nossas imagens. Os moradores de Koxixinape têm medo, eles não querem que peguem suas imagens e por isso eles fugiram […].”

A câmera, em seguida, detêm-se longamente sobre o rosto de Márcio em silêncio; depois, faz panorâmica para a direita até enquadrar um indígena gravando com um celular a câmera de Cury. Mais uma vez, o plano se estende por um bom tempo.

Sem poder “pegar imagens”, Como Fotografei os Yanomami não poderia ter sido feito. Cury, porém, não tomou a interdição de forma literal. Afinal, os yanomami não só se deixam gravar como eles mesmos gravam, subvertendo desse modo a proibição. Vivem nesse aspecto, como em tantos outros, imersos em contradição.

De volta às proximidades do Uraricoera, Macunaíma termina no abandono completo: “Que enfaro! E principalmente, ah!… que preguiça!”. Vítima de impaludismo, não tinha coragem para nada. Passava os dias enfarado e se distraía fazendo o pássaro repetir na fala da tribo os casos que tinham sucedido pro herói desde a infância.

E os yanomami, qual é seu destino? A julgar pelo final de Como Fotografei os Yanomami, as perspectivas não são nada animadoras. Submetidos desde sempre a toda sorte de violência, sobrevivem se equilibrando entre opostos, mas as agressões não cessam. A arbitrariedade final que o filme nos mostra é a inauguração, em 28 de julho de 2015, da primeira unidade básica de saúde indígena construída em terra yanomami.

Na cerimônia, todos, inclusive yanomamis, cantam o hino nacional brasileiro que prossegue em imagens gravadas de um helicóptero voando acima das nuvens. A sequência é estranha, mais parecendo uma incompreensível exaltação nacionalista. Vários celulares gravam a inauguração da unidade básica de saúde que prossegue com a reza coletiva do Pai-Nosso.

A prosseguir assim – constrangidos a cantar o hino nacional e rezar o Pai-Nosso – os yanomami não terão como evitar serem esfacelados e, ao contrário do herói sem nenhum caráter, não terão sequer a glória de se tornarem uma constelação. Erradicados da face da terra, terão sido vítimas do mesmo tangolomango que acabou com a tribo Tapanhumas, como escreveu Mário de Andrade.

Como Fotografei os Yanomami trata de questão relevante e reúne uma série de informações valiosas. Tem, de outro lado, aspecto bruto, carente de polimento. Parece não ter encontrado uma estrutura narrativa adequada para tornar o filme mais acessível ao espectador leigo.

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